"A maioria das pessoas no mundo ainda depende das tradições espirituais na busca da sua visão da realidade, de significado, de valores e de orientação ética".
A opinião é de Myron J. Pereira, jesuíta de Mumbai e autor de publicações sobre temas de interesse religioso, cultural e sociopolítico. O artigo foi publicado por La Croix International, 03-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Dia Mundial do Meio Ambiente, em 5 de junho, é uma das datas mais importantes do calendário para celebrar o nosso ambiente e aumentar os esforços globais para salvar o planeta.
No Dia Mundial deste ano de 2021, a ONU lançará uma campanha para iniciar a Década da Restauração de Ecossistemas.
Comecemos fazendo duas perguntas: primeiro, o que de fato é um ecossistema? Segundo, como esse plano se encaixa nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos em 2015, para o ambiente planetário?
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Os ecossistemas são a teia da vida na Terra. Um ecossistema compreende todos os organismos vivos e as interações entre eles e com seus arredores em um dado local.
Eles existem em todas as escalas, desde um grão de areia até todo o planeta, e incluem florestas, rios, pântanos, pastagens, estuários e recifes de coral. Cidades e fazendas contêm importantes ecossistemas modificados pelo ser humano.
Os ecossistemas nos fornecem benefícios inestimáveis. Eles incluem um clima estável e ar respirável; abastecimento de água, alimentos e materiais de todos os tipos; e proteção contra desastres e doenças.
Os ecossistemas naturais são importantes para a nossa saúde física e mental, e para a nossa identidade. Eles são o lar de uma preciosa vida selvagem. Para muitos, eles são uma fonte de admiração e espiritualidade.
No entanto, em todo o mundo, os ecossistemas enfrentam ameaças massivas. As florestas estão sendo desmatadas; os rios e lagos, poluídos; os pântanos e turfeiras, drenados; as costas e os oceanos, degradados e sofrendo a pesca predatória; os solos de montanhas, erodidos; e as terras agrícolas e as pastagens, superexploradas.
A menos que mudemos os nossos hábitos e protejamos e restauremos os nossos ecossistemas, não apenas destruiremos as paisagens que amamos, mas também minaremos os fundamentos do nosso próprio bem-estar e deixaremos um planeta degradado e inóspito para as gerações futuras.
Portanto, cuidar dos nossos ecossistemas é uma parte importante da preservação do nosso ambiente e é um dos principais Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – há 17 delas – que foram negociadas como metas para o mundo.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ou ODS) foram estabelecidos em 2015, como resultado de um longo processo de deliberação. Eles refletem um consenso internacional vital para o futuro da nossa civilização, para estar à altura dos desafios que a humanidade enfrentará no século XXI.
Quais são alguns desses desafios? Citemos alguns deles: a disponibilidade de água, a proteção contra a radiação ultravioleta, a escassez de alimentos, a produtividade agrícola, a saúde pública, a estabilidade política, a segurança nacional e os padrões de migração.
Como as grandes comunidades podem ser motivadas a resolver essas questões de maneira sustentável? E, mais importante, qual é a contribuição potencial da religião para o desenvolvimento sustentável?
O aumento da temperatura global global (Foto: Nasa/NOAA)
Até agora, a abordagem geral ao ambiente tem sido tecnocrática e utilitarista. Muitos desprezam a religião por representar uma visão de mundo retrógrada e obscurantista. Para pessoas como essas, a religião não tem nenhum papel a desempenhar em um debate essencialmente técnico, não relacionado a questões de fé.
No entanto, também é preciso admitir que a visão utilitarista prejudicou gravemente as relações entre os seres humanos e a natureza.
Existem outras pessoas, no entanto, que têm uma perspectiva diferente.
Isso não ocorre apenas porque as questões ecológicas têm implicações morais, mas também porque a grande maioria das pessoas no mundo ainda depende das tradições espirituais na busca da sua visão da realidade, de significado, de valores e de orientação ética.
As grandes tradições religiosas oferecem uma alternativa à visão tecnocrática da natureza.
Como exemplo, tomemos duas dimensões da tradição cristã, a profética e a sacramental.
Uma verdadeira abordagem ecológica deve integrar as questões da justiça nos debates sobre o ambiente, de forma a ouvir o clamor da terra e o clamor dos pobres (Laudato si’, n. 49).
Na tradição profética da Bíblia, a condenação da injustiça social está intimamente ligada à degradação ambiental.
Hoje, essa denúncia deve estar relacionada também às gerações que ainda não nasceram e aos vizinhos distantes, em decorrência do uso indiscriminado dos recursos naturais.
Portanto, precisamos criticar severamente esse paradigma tecnocrático que gerou um antropocentrismo desviante.
A perspectiva religiosa afirma que não se pode falar de ecologia sem falar de justiça social ao mesmo tempo.
Não são duas crises que estamos enfrentando – uma ambiental e outra social – mas sim uma crise complexa que demanda uma “escuta dupla” – da terra e dos pobres, do momento presente e da história passada, do contexto local e da dinâmica global.
O Papa Francisco está certo ao dizer que “é fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais” (LS 139).
“É nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso planeta” (LS 9).
Cada tradição espiritual tem a sua própria maneira de expressar uma visão sacramental do mundo.
O cristianismo define o sacramento como “um sinal exterior da graça interior”, mas vai muito além da lista tradicional dos sete sacramentos e reconhece toda a criação como um “protossacramento”, um sinal visível da presença divina que permeia o mundo material.
De fato, os signatários da declaração inter-religiosa que precedeu o Acordo do Clima de Paris de 2015 afirmaram:
“A verdadeira natureza da nossa relação com a Terra é de que ela não é um recurso a ser explorado do modo que quisermos, mas uma herança sagrada e uma casa preciosa que devemos proteger.”
Essa visão sacramental da Terra, comum a todas as tradições religiosas, está muito longe da visão unidimensional, utilitarista e materialista tão presente nos discursos técnicos das organizações internacionais.
Ela enfatiza que “os outros seres vivos têm um valor próprio” (LS 69) e que os ecossistemas “possuem um valor intrínseco, independente de tal uso [razoável]” (LS 140).
A compreensão cristã da natureza não é antropocêntrica ou materialista. Ao invés disso, ela considera toda a criação como “um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor” (LS 12). Destruir a natureza, portanto, significa destruir as mediações da vida sobrenatural.
Nesse sentido, por conseguinte, a prática da contemplação pode se tornar um exercício de restauração e reconciliação.
Uma visão sacramental do mundo – junto com a visão profética – nos fornece um ponto de entrada privilegiado na questão ecológica.
Os gases emitidos pelas atividades humanas intensificam o efeito estufa (Foto: Nasa/NOAA)
A nossa exposição sobre os ecossistemas e sobre a perspectiva religiosa dos objetivos sustentáveis nos leva a conclusões práticas. Aqui estão duas para começar:
Mude o seu comportamento, mude os seus hábitos de consumo para direcionar os recursos para empresas e atividades que restauram a natureza, em vez de prejudicá-la. E encoraje outros a fazerem o mesmo.
Faça a sua voz e ideias valerem nos debates sobre como se deve gerir o seu próprio ambiente local e sobre como tornar nossas sociedades e economias mais justas e sustentáveis. Pressione os tomadores de decisão a fazerem a coisa certa.