19 Mai 2021
Encerrando a celebração do Ano Laudato si’ que começou no quinto aniversário da encíclica ecológica do Papa Francisco, o Vaticano está promovendo uma série de eventos nesta semana, disponíveis online, ao mesmo tempo que impulsiona centenas de eventos locais organizados em todo o mundo.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 18-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Semana Laudato si’, de 16 a 25 de maio, está sendo organizada pelo Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano, em parceria com o Movimento Católico Global pelo Clima, que atua como facilitador de um grupo de mais de 150 parceiros católicos que participam da iniciativa.
A programação oficial foi elaborada pelo escritório de Ecologia e Criação do dicastério, coordenado pelo padre salesiano Joshtrom Isaac Kureethadam, que afirma que algumas coisas precisam mudar no que diz respeito à interação da humanidade com a natureza.
“A minha ‘conversão ecológica’, de certa forma, começou com lágrimas quando eu entrei em contato com o imenso sofrimento que a crise ecológica está provocando especialmente entre os pobres e os mais vulneráveis, que foram os que menos contribuíram para causar o problema em primeiro lugar, em termos das emissões de carbono, por exemplo”, disse ele ao Crux.
Kureethadam disse que é “lamentável” que muitos sejam céticos de que a crise climática em curso seja antropogênica em sua origem e argumentou que a resistência em reconhecer isso é “engendrada principalmente por interesses econômicos velados e, em alguns casos, também por ideologias partidárias”.
“A verdadeira questão é que reconhecer o consenso científico a esse respeito exige uma mudança radical na forma como nossos sistemas econômicos e políticos operam”, disse ele.
Qual é a importância da Laudato si’?
A Laudato si’ certamente é uma encíclica histórica. Ela é importante por pelo menos três motivos. Em primeiro lugar, a Laudato si’ conseguiu capturar o desafio dramático e crítico que enfrentamos atualmente, ou seja, o colapso da nossa própria casa. O primeiro capítulo da encíclica intitulado “O que está acontecendo à nossa casa?” vai direto ao encontro da enormidade desse desafio. O papa conclui o capítulo admitindo que “basta olhar a realidade com sinceridade para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum” (n. 61). A segunda razão pela qual a Laudato si’ é importante é que ela mudou o modo como olhamos e falamos sobre os problemas ambientais. O subtítulo da encíclica é “sobre o cuidado da casa comum”.
O Papa Francisco nos diz que não é apenas um problema ambiental ou mesmo uma conjunto deles. Trata-se da nossa própria casa que está desmoronando. Eu realmente acho que o uso que o Papa Francisco fez da expressão “nossa casa comum” tocou uma corda ressonante em muitos corações. Não estamos falando de algo externo. Estamos falando da nossa própria casa. Quando a nossa casa está pegando fogo, não podemos nos dar ao luxo de sentar e observar passivamente.
A terceira razão pela qual a Laudato si’ é importante é a abordagem da ecologia integral. Ela vê a crise ecológica de uma forma holística, como “o clamor da terra e o clamor dos pobres” (n. 49).
Novamente, não é apenas um texto ambiental, mas também uma encíclica social. De fato, em várias ocasiões o próprio Papa Francisco nos lembrou que a Laudato si’ não é uma encíclica verde, mas social. A abordagem integral é evidente na metafísica ou na filosofia subjacente à encíclica, a saber, o fato de que tudo está interligado, que estamos todos interconectados e somos todos interdependentes (o tema do quarto capítulo da encíclica que traz o título de “Ecologia integral”).
Já se passaram seis anos desde o lançamento da encíclica do papa. Tendo trabalhado de perto no cuidado da criação há vários anos, você viu uma mudança de atitude ou mais pessoas que passaram, por exemplo, a reutilizar, reduzir, reciclar?
Sim, a Laudato si’ foi uma espécie de divisor de águas não apenas para a Igreja, mas também para o mundo inteiro. A influência que ela teve na Igreja Católica é evidente nas numerosas iniciativas que surgiram em muitas comunidades locais na área do cuidado da criação. Isso ficou muito claro no entusiasmo e na criatividade dos católicos de todo o mundo na celebração do Ano Laudato si’, que foi anunciado pelo Papa Francisco no ano passado e que terminará no dia 24 de maio deste ano.
Também devo salientar que as comunidades do hemisfério Sul têm sido verdadeiras líderes nesse sentido. Graças à Laudato si’, os católicos uniram-se aos ortodoxos e às outras denominações cristãs para celebrar o Tempo da Criação (1º de setembro a 4 de outubro), que se tornou verdadeiramente ecumênico.
A Laudato si’ também estimulou outras religiões a se envolverem mais no cuidado da Terra. De fato, logo após a publicação da encíclica, os judeus publicaram a “Carta Rabínica sobre a Crise Climática”, e os muçulmanos, a “Declaração Islâmica sobre Mudanças Climáticas Globais”, os budistas, a “Declaração Budista sobre Mudanças Climáticas para Líderes Mundiais”, e os hindus, a “Bhumi Devi Ki Jai! Uma Declaração Hindu sobre Mudanças Climáticas”.
É maravilhoso ver tal “mudança de coração” não apenas dentro da Igreja Católica, mas também nas esferas ecumênicas e inter-religiosas. E o elemento notável é que fomos além dos slogans de “reutilizar, reduzir, reciclar”, pois há uma maior consciência de que o que é necessário é uma abordagem totalmente nova na forma como entendemos e respondemos à crise da nossa casa comum, que, para os fiéis, é criação de Deus, confiada à nossa administração.
O que você pode nos dizer sobre a sua jornada para entender a importância do cuidado da criação?
A minha jornada para compreender a importância de do cuidado da criação foi moldada por dois fatores. Em primeiro lugar, enquanto trabalhava em uma área de missão na Índia, eu vi como a crise climática está afetando a vida das comunidades, especialmente dos pobres. Eu morei e servi em uma área onde havia (e infelizmente ainda há) os casos trágicos de agricultores que se suicidam porque perdem as suas colheitas ano após ano devido às secas e a outros desastres naturais desencadeados pelo clima.
A minha “conversão ecológica” começou de certa forma com lágrimas, quando entrei em contato com o imenso sofrimento que a crise ecológica está provocando especialmente entre os pobres e os mais vulneráveis, que menos contribuíram para causar o problema em primeiro lugar, em termos de emissões de carbono, por exemplo.
Um segundo fator é a minha própria formação intelectual. Sou professor de Filosofia da Ciência há vários anos, e uma das disciplinas que eu gosto de ensinar é Cosmologia. Com o passar dos anos, descobri como a Terra é especial, esse “minúsculo pontinho azul” (para citar Carl Sagan), esse planeta “Cachinhos Dourados” que muitos cosmólogos, incluindo o astrônomo real Martin Rees, gostam chamar de Terra.
Enquanto contemplamos com admiração as condições únicas que tornam a Terra um “lar para a vida”, nós também nos damos conta de que ela é frágil, e as atividades humanas têm a capacidade hoje de perturbar e destruir o equilíbrio delicado que permite que a vida floresça neste planeta.
Até hoje, há quem veja as mudanças climáticas como uma “conspiração”, ou não quer reconhecer que, para além da ciência, a criação foi confiada por Deus à humanidade para cuidar dela. Há muitas palestras e painéis acontecendo esta semana. Há um em particular que você recomendaria aos “céticos”, não do ponto de vista da ciência, mas da fé?
Essa é uma situação muito lamentável. A ciência do clima cresceu significativamente ao longo das últimas décadas, e há um consenso unânime da comunidade científica de que a atual crise ecológica, no caso das crises climáticas e de biodiversidade, se deve às atividades humanas. Em outras palavras, elas são de origem antropogênica. Eu posso afirmar isso como acadêmico.
Na redação da Laudato si’, o Papa Francisco foi auxiliado por alguns dos melhores cientistas de todo o mundo, incluindo membros da Pontifícia Academia das Ciências do Vaticano. É verdade que houve resistência de alguns setores da opinião pública nas últimas décadas. No entanto, a questão não é tão simples, visto que tal resistência é engendrada principalmente por interesses econômicos adquiridos e, em alguns casos, também por ideologias partidárias. A verdadeira questão é que reconhecer o consenso científico a esse respeito exige uma mudança radical no modo como os nossos sistemas econômicos e políticos operam.
O chamado “ceticismo” tem sido cultivado por meio de financiamentos e outros recursos políticos. É um caso de déjà-vu. Já vimos isso no início dos anos 1960, quando Rachel Carson e outros cientistas provaram que os pesticidas e fertilizantes químicos podem ter um impacto negativo na saúde humana, causando cânceres e outros problemas. Vimos isso também na tática de ceticismo empregada pela indústria do tabaco contra os médicos que provaram que fumar é prejudicial à saúde. Essa estratégia de manual foi empregada pela indústria dos combustíveis fósseis contra a ciência do clima.
Infelizmente, isso nos roubou décadas preciosas em resposta à crise da nossa casa comum, e agora estamos quase no limite. As nossas crianças e jovens compreenderam essa verdade muito melhor do que muitos gurus políticos e econômicos, e estão saindo às ruas nos chamando para mudar de rumo.
Precisamos lembrar que para nós, fiéis e cristãos, em particular, o cuidado da criação faz parte da nossa fé. De fato, o primeiro mandamento dado à humanidade se encontra em Gênesis 2,15, quando Adão e Eva são convidados a “cultivar e cuidar” do jardim do Éden. É a descrição do nosso trabalho, como lemos no primeiro livro da Bíblia Sagrada. De fato, a Terra é o planeta-jardim, como escreveram os bispos irlandeses em uma das suas mensagens há alguns anos.
Nesse contexto, entre os vários eventos que ocorrem durante a Semana Laudato si’, eu sugiro aquele sobre a biodiversidade no dia 22 de maio (que também é o Dia Mundial da Biodiversidade). Esse evento será uma celebração espiritual da beleza e da sacralidade da criação de Deus, na qual criaturas humanas e não humanas se reunirão em louvor ao Criador. Como conclui o último Salmo, “tudo o que respira e se move, dê graças ao Senhor”. A nossa existência, portanto, é glorificar o Criador e louvar e agradecer ao Deus Triúno pelo dom da vida. “Laudato si’, mio Signore”, “Louvado sejas, meu Senhor”, como cantava São Francisco de Assis, que é também o título da encíclica do Papa Francisco sobre o cuidado da criação.
O papa disse abertamente que esperava que a Laudato si’ influenciasse os acordos de Paris. Você acha que a Semana Laudato si’ pode influenciar a cúpula de Glasgow? Existe alguma verdade nos rumores de que Francisco quer ir à Escócia?
Sim, o próprio Papa Francisco disse no dia 15 de janeiro de 2015, enquanto voava do Sri Lanka para as Filipinas em visita apostólica, que queria que a encíclica sobre o cuidado da criação (Laudato si’ ) fosse publicada alguns meses antes da Cúpula de Paris, que estava prevista para dezembro de 2015. Assim, nas suas palavras, “haverá um pouco de tempo entre a publicação da encíclica e o encontro de Paris, para que ela possa fazer uma contribuição”. Foi isso que realmente aconteceu. A encíclica foi publicada em junho, e vários líderes, incluindo o então secretário-geral da ONU, Ban-ki-Moon, comentou que a Laudato si’ foi fundamental na criação do Acordo Climático de Paris.
Eu realmente acho que a Laudato si’ influenciará a cúpula de Glasgow também, a mais importante das COPs depois da de Paris. O impulso gerado após a publicação da Laudato si’ e a insistência do Papa Francisco e da Igreja nos últimos anos na importância de não transgredir o limiar de 1,5°C de aumento de temperatura – pois isso seria catastrófico para as comunidades humanas, pelas consequências sem precedentes na área de segurança alimentar, da saúde e da migração – certamente ecoarão nas negociações em Glasgow.
Em relação à visita do Papa Francisco a Glasgow, receio não estar em posição de comentar, pois é uma prerrogativa do ofício papal.
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Semana Laudato si’: “É lamentável que alguns neguem a origem humana da crise climática” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU