17 Mai 2021
"Pouco antes do final do lockdown ele [François Cassingena-Trévedy] expressa seguramente o que muitos sentem quando escreve: 'Não temos mais o desejo do ‘antes’. Queremos algo diferente'. E imagina que tal reflexão não se refira apenas à questão de um planeta diante do desafio ecológico do qual a pandemia é apenas um avatar, mas também concerne 'à paisagem religiosa contemporânea' em particular aquela católica", escreve René Poujol, ex-chefe de redação da revista Pèlerin, em artigo publicado por seu blog, 15-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
François Cassingena-Trévedy, Chroniques du temps de peste, Tallandier. Os nossos bispos conseguirão enfrentar esse tipo de questão?
François Cassingena-Trévedy,
Chroniques du temps de peste
Existem livros que essencialmente valem pelo seu conteúdo. Outros que nos surpreendem quando os saboreamos também por seu processo de elaboração que modifica seu alcance e sentido. É o caso de “Chroniques du temps de peste” (crônicas da pandemia) do monge beneditino François Cassingena-Trévedy [1]. Neste caso, trata-se da coletânea dos artigos publicados na rede social Facebook, que o autor traduz justamente como "Le livre des visages" ("O livro das faces") durante o primeiro lockdown na primavera de 2020 e depois perto no final do mesmo ano. Eu tinha sido um de seus leitores. Hoje redescubro como, semana a semana, um público tão grande quanto insuspeito, que entrou espontaneamente em diálogo com ele, o convenceu a ir além de seu projeto inicial de escrita, e a reunir suas crônicas em um livro. No final da leitura desta coletânea de textos, uma frase de Christian Bobin vem à minha mente: “Um livro, um verdadeiro livro, não é aquele que nos fala, mas aquele que nos ouve, que sabe nos ouvir” [2].
A repentina atenção do público a François Cassingéna-Trévedic pode ser explicada da seguinte forma: “Estar no momento exato da história é talvez o maior exercício de piedade”. “É incrível como estes tempos que vivemos podem nos fazer crescer na gravidade”. As crônicas começam em março de 2020, no tom de uma confidência feita a poucos amigos, como muitos experimentaram no mesmo período. O monge beneditino da abadia de Ligugé, onde então reside, comunica a sua convicção de que este período de confinamento, propício ao aprofundamento da vida espiritual, “pode ser a ocasião para um diálogo mais profundo e vital entre nós (tão raro, afinal), sobre as coisas essenciais que nos afligem, que nos preocupam, que nos habitam, que nos unem”.
Nas cartas que se seguiram, ele é visto tomar a defesa do poder público acusado de "complô" contra o culto católico; defender que a “liturgia virtual (que explode nas redes sociais) não é sustentável”; denunciar as manifestações que pedem um rápido retorno ao culto como "cenas de crianças mimadas e caprichosas". Claro, afirmações que dividem, mas que, vindas de um monge beneditino, chamam a atenção, seduzem e fidelizam. Para sua grande surpresa. Em suas cartas, ele mesmo percebe o surgimento de uma verdadeira comunidade, de uma "paróquia de um novo tipo" que agora o envolve. Pouco antes do final do lockdown ele expressa seguramente o que muitos sentem quando escreve: "Não temos mais o desejo do ‘antes’. Queremos algo diferente”. E imagina que tal reflexão não se refira apenas à questão de um planeta diante do desafio ecológico do qual a pandemia é apenas um avatar, mas também concerne "à paisagem religiosa contemporânea" em particular aquela católica.
Da animada troca suscitada por suas primeiras cartas retira a observação de que "algo se dissolveu, relaxou, se expandiu em nós e entre nós". Disto ele tira a conclusão de um Kairos a ser apreendido, no qual dizer coisas que ele tem dentro de si e das quais intui uma secreta expectativa por parte de seus leitores. Os três textos que seguem são realmente ricos em sabores nutritivos, três pepitas que, na sua publicação inicial, puderam desorientar pela sua extensão, não usual nas redes sociais, e que encontram no livro o espaço necessário para lhes dar respiro e permitir-lhes o desenvolvimento.
Epístolas aos facebookianos. Três “epístolas aos facebookianos”, das quais não cabe aqui fazer a exegese ou citar abundantemente, mesmo que o mereceriam. Vamos simplesmente dizer que são sobre a compreensão da sexualidade no mundo do pensamento católico; a necessária emancipação eucarística da constrição do sagrado; a urgência de revisitar o dogma e a doutrina católica para melhor nutrir uma "fé modesta" adequada às exigências do tempo presente. No entanto, algumas palavras sobre cada uma delas são necessárias.
Sobre a sexualidade, explica o autor, é a incoerência que domina, devido à incapacidade da instituição de passar do angelismo à honestidade. Porque, no fundo, a sexualidade encarna em cada um de nós o dinamismo próprio da vida e “a sexualidade não se sublima”. É necessário, portanto, “descer ao fundo de nós mesmos”, “descer até aquele centro de gravidade que é a nossa carne, para ao nosso próprio fundo”. E encontramos nessas páginas vibrantes, surpreendentes, que nos convidam a “levar à escuridão a lâmpada de uma palavra compartilhada”. O problema, como adverte o autor, é que no mundo católico esse caminho esbarra em um triplo obstáculo: a incompatibilidade definitiva do conceito de pecado original, em seu sentido tradicional, com as aquisições das ciências humanas; a idolatria da Mariologia que alimenta um discurso obsessivo sobre a virgindade reduzida a uma ideologia materialista; por fim, o "fascínio perigoso do sacerdote separado, superior, cercado e imbuído de uma sacralidade que o 'torna à prova de fogo'" em total contradição com os textos do Novo Testamento.
“A missa, nos confidencia o autor, não é uma máquina ritual garantida para fabricar a Presença Real”. Isso equivale a dizer que, em sua opinião, a missa "pedida" aos brados durante o período de lockdown por alguns lobbies católicos poderia estar muito distante da verdadeira Eucaristia que evita qualquer utilitarismo. Ainda que, de fato, existe um “consumismo sacramental”, em particular urbano, mantido por um clero que se impõe e assim defende o seu monopólio “sacrificial”. Em vez disso, "não é o padre, muito menos o padre sozinho, que ‘realiza’ a Eucaristia, mas a Igreja". E o fracasso, já presente em muitos lugares, do modelo territorial da pastoral convida-nos a optar a partir de agora por eucaristias "talvez mais raras, mas mais verdadeiras (‘sommitales’)", para despertar as comunidades para as suas responsabilidades batismais, para redescobrir que “algo eucarístico acontece em nossas vidas e não apenas no momento e no lugar da Missa”.
Por fim, no que diz respeito à crise global (tanto civilizatória como eclesial) que está no fundo de suas reflexões, François Cassingéna -Trévedy acredita que: “o estado de coisas do qual precisamos fazer um balanço não é apenas de ordem institucional, ética e política, mas é de ordem metafísica”. Porque entramos em "uma grande noite comum da fé". Porque "partes inteiras de nosso edifício interior, nossas representações familiares e nossas tranquilas certezas ruíram". E se torna urgente sair de uma abordagem mitológica da origem do mundo e do homem, das próprias origens de Jesus, da ressurreição ou dos "fins últimos".
Assim, mesmo respeitando todos aqueles na Igreja que vivem uma "fé simples" e "reafirmando a (sua) pertença à instituição pela sua vocação batismal e monástica", o autor se sente autorizado a formular uma expectativa que imagina compartilhada por muitos de seus leitores, e também por outros: “Simplesmente pedimos, diante de nossos irmãos, a permissão, a graça, para sermos homens que duvidam”. Essa dúvida que é desde sempre plenamente constitutiva da fé. Na riqueza das trocas suscitadas pelas suas cartas, durante o tempo pascal, o autor quer ver uma "experiência da presença do Ressuscitado" de natureza quase litúrgica. Porém, quer tranquilizar aqueles que poderiam pensar que ele seja "tentado a fundar alguma comunidade ou alguma seita". Ele os remete "o único Companheiro (Cristo) e sua única companhia que é a Igreja como mistério".
Na primavera passada escrevi um post no meu blog, no qual dizia o quanto, naquele período que nos havia abalado profundamente e de forma duradoura, nos alcançaram e nos nutriram palavras ponderadas, enraizadas, essenciais como aquelas de François Cassingéna-Trévedy ou do teólogo tcheco Thomas Halik, enquanto nos parecia - talvez errada e injustamente - que nossos bispos estivessem ausentes. Ao reler, sinto uma indulgência retrospectiva e provisória para com eles.
Como poderiam enfrentar publicamente questões tão radicais sobre o conteúdo da fé ou sobre a passagem das estruturas da Igreja de hierárquicas para ministeriais? Mas será que eles podem fingir que não percebem que uma parte das pessoas a eles confiadas vibrou com aquelas reflexões, reconhecendo nelas o reflexo de sua própria busca espiritual? O que justifica plenamente esta última pergunta de François Cassingéna-Trévedy: “Hoje a instituição é capaz de compreender, acompanhar, abençoar a desorientação daqueles que, no espaço de uma vida, às vezes apenas poucos anos, se descobrem sem nada onde apoiar a cabeça? É capaz de se converter em instituição da noite? (...) Mas é possível que exista uma instituição da noite?”.
[1] François Cassingéna-Trévedy. Monge da abadia de Ligugé, onde foi esmaltador e mestre de coro, escolheu, de acordo com o seu padre abade, continuar a sua vida como monge residente em Auvergne, onde se dedica à sua obra de escritor e de tradutor, ao encontro de grupos e à sua profissão de professor.
[2] Christian Bobin, Autoportrait au radiateur, Gallimard.
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A voz que surge do lockdown que seduziu tantos cristãos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU