08 Mai 2021
“O neoliberalismo não morre sem matar, mas quanto mais mata, mais morre. O que está acontecendo na Colômbia não é um problema colombiano, é um problema nosso, das e dos democratas do mundo”, escreve Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado Al Poniente, 07-05-2021. A tradução é do Cepat.
A Colômbia está em chamas. Atualmente, é um dos países com o maior número de mortos por covid-19, ocupando o quarto lugar na região, depois dos Estados Unidos, Brasil e México, tendo até o momento apenas 3,5% da população totalmente vacinada e sendo parte dos países que se negam a apoiar a solicitação de liberação das patentes das vacinas.
É também o país que, em 2020, contabilizou 42,5% de sua população em condição de pobreza monetária, com 15,1% da mesma em condição de pobreza monetária extrema. A estes dados mínimos, mas significativos, podemos somar que, após a assinatura do acordo de paz de 2016, foram assassinados de 700 a 1.100 defensores e defensoras de direitos humanos (os números variam entre as ONGs e as instituições governamentais).
As regiões que antigamente eram de domínio das FARC-EP, hoje estão em disputa por diferentes grupos armados ilegais, que não apenas buscam interesses econômicos (narcotráfico, mineração ilegal) como também trazem consigo um horrível e sangrento interesse pelo controle sobre a população civil, afetando gravemente o tecido social, sendo que isto é apenas a ponta do iceberg do novo panorama que o país atravessa.
É neste contexto, e após quase 3 anos sob o governo de uma direita opositora ao acordo de paz, que em meio a uma pandemia que matou milhares de pessoas o povo trabalhador foi às ruas para levantar sua voz contra uma anunciada reforma tributária que buscou, sobre a lógica do governo, arrecadar 23 trilhões de pesos (algo próximo a 6,3 bilhões de dólares) para melhorar as finanças públicas e financiar os programas de assistência social. Ainda que seja verdade que o país precisa melhorar seu sistema tributário, esta reforma delineava aumentar o número de pessoas declarando e pagando impostos sobre a renda com o aval, a visão e o marco conceitual do Fundo Monetário Internacional – FMI.
Conceber a ideia de que mais pessoas sejam as encarregadas em tributar e financiar os gastos do Estado, em teoria, não soa descabido, aliás, levaria a pensar que seriam as pessoas de alta renda que mais pagariam impostos, tendo em conta os princípios de progressividade, equidade e eficiência tributária consagrados na Constituição Política da Colômbia.
Mas, segundo os dados do Banco Mundial, a Colômbia é um dos países mais desiguais da América Latina (o índice GINI é de 51,3), refletindo uma política tributária inadequada e regressiva que possibilita uma alta concentração do ingresso e a riqueza, ocasionando um menor desenvolvimento, levando em conta que a renda e a riqueza ficam nas mãos de uma porcentagem muito pequena da população. A reforma delineada se uniria ao longo e complexo sistema tributário do país que não reflete uma verdadeira política progressiva e que está cheio de benefícios tributários dirigidos às pessoas de maior renda.
Poderíamos afirmar que, a partir de 2016, o povo trabalhador tomou as ruas e praças da Colômbia exigindo a defesa da paz e o cumprimento dos acordos, a proteção dos líderes sociais e a solidariedade àqueles que foram assassinados, assim como a rejeição a propostas de modificação dos regimes de aposentadoria, trabalhistas e tributários. Assim, nos últimos 5 anos, a Colômbia viu suas ruas percorridas por jovens, mulheres, indígenas, afrodescendentes, professores, aposentados e estudantes que geraram fatos incomuns, como presenciar uma das maiores manifestações no país, desde os anos 1970, como foi a realizada no dia 21 de novembro de 2019 (21N).
Graças a este empoderamento popular, e apesar da pandemia de covid-19, a Colômbia voltou a marchar de 09 a 21 de setembro de 2020 para protestar contra o abuso policial, a má gestão do Governo na crise econômica e social provocada pela pandemia e para levantar uma voz que dissesse basta aos massacres no país, que não tiveram trégua apesar das medidas de confinamento.
Em especial, é preciso destacar a Minga do Sudoeste Colombiano, ocorrida em outubro de 2020, liderada pelas organizações indígenas, que emocionou por seus lemas e coragem e que conseguiu mobilizar uma grande parte da sociedade em torno de suas exigências, após sua marcha pelo país, conquistando a opinião favorável de milhões de pessoas que as receberam calorosamente em cada cidade, durante sua viagem até a capital.
Neste panorama, o povo decidiu, a partir do dia 28 de abril (28A) de 2021, marchar contra a reforma tributária e o governo indolente. A repressão das forças policiais é brutal. O mal-estar cidadão foi objeto de estigmatização e repressão da força pública, o que fez com que diferentes organizações de direitos humanos registrassem, entre 28 de abril e 05 de maio, um total de 1.708 casos de violência policial, 381 vítimas de violência física pela polícia, 31 mortes (em processo de verificação), 1.180 detenções arbitrárias contra os manifestantes, 239 intervenções violentas pela força pública, 31 vítimas de agressão em seus olhos, 110 casos de disparos de armas de fogo pela polícia e 10 vítimas de violência sexual pela força pública. De igual modo, a Defensoria do Povo (a figura do ombudsman na Colômbia) destacou que foram registradas 87 queixas por supostos desaparecimentos, durante os protestos da Paralisação Nacional do 28A.
O que começou como uma forte oposição a uma reforma impopular e a um ministro da fazenda que desconhecia o valor de uma dúzia de ovos (e em geral de toda a cesta familiar), chegou ao ponto de não só conseguir que tal reforma seja retirada no congresso e que tal ministro renuncie, como também que o presidente da república Iván Duque Márquez tenha proposto um espaço de diálogo com diferentes setores da sociedade civil, diálogo que até o momento parece ser apenas entre as elites do país, de cima, e nunca de baixo.
As organizações sociais sabem por experiência que deste governo não se deve esperar nada de bom, mas como sempre fizeram, não se recusam ao diálogo. A primeira vitória do movimento cidadão nas ruas sobre a retirada da reforma não veio de forma pacífica ou gratuitamente. Além dos números antes mencionados e coletados pelas ONGs do país, o presidente Duque anunciou a militarização do país, antes de ceder ao clamor social. A partir do dia 01 de maio, as redes sociais e as ruas colombianas viram o horror de um avanço militar típico de um estado de exceção ditatorial, com a polícia disparando contra manifestantes pacíficos e desarmados. Talvez esta tenha sido a resposta mais violentamente repressiva em tempos de pandemia, em nível mundial.
Particularmente, em Cali, os protestos tiveram uma intensidade muito especial devido à mobilização das organizações indígenas, após o cruel assassinato de Sandra Liliana Peña, governadora indígena de apenas 35 anos que havia proposto a recuperação dos conhecimentos tradicionais e que rejeitava a presença de todos os atores armados em seu território. Esta cidade é o segundo centro urbano mais negro da América do Sul, cheia de contradições e lutas, e que viu como reprimem seu povo da forma mais aberrante possível.
A situação é tal que, em meio a uma reunião pacífica e transmitida ao vivo pelas redes sociais, é possível observar o esquadrão antidistúrbios marcando presença para dispersar a manifestação, causando a morte de um jovem diante de mais de 1.000 espectadores que observavam pela internet. De Siloé, uma comuna (favela) em Cali, também foi denunciado que durante a noite do dia 04 de maio não foi possível acessar o serviço de internet na região.
A frágil resposta à violência policial pelas instituições colombianas (tanto administrativas, como judiciais) abriu espaço para que civis armados ameacem (e em certas ocasiões disparem) os manifestantes sob a ideia de que são “vândalos” e “terroristas”. Em Cali, os estudantes fizeram circular o seguinte “diálogo”: “Temos 25.000 armas”, gritava um homem vestido de branco de sua cara caminhonete estacionada em frente à Universidade de Valle (Univalle). “Nós temos uma das melhores bibliotecas do país”, respondeu-lhe um estudante. Em Pereira, o prefeito promovia uma “frente comum” que incluía membros da segurança privada, o exército e a política para “recuperar a ordem e a segurança cidadã”, fazendo com que um jovem fosse ferido com oito balas e que esteja agonizando em um hospital de tal cidade.
Esta pergunta é importante para a Colômbia, mas para além da Colômbia, vejo nos recentes acontecimentos na Colômbia o embrião de muito do que acontecerá no continente e no mundo, nas próximas décadas. Claro que cada país tem a sua especificidade, mas o que acontece na Colômbia parece anunciar o pior dos cenários que identifiquei em meu recente livro sobre o período pós-pandemia (O futuro começa agora: da pandemia à utopia).
Este cenário consiste na negação da gravidade da pandemia, na política de sobrepor a economia à proteção da vida, e na obsessão ideológica-política de voltar à normalidade, mesmo quando a normalidade é o inferno para a grande maioria da população. As consequências da pandemia não podem ser magicamente freadas pela ideologia dos governos conservadores, a crise social e econômica pós-pandêmica será gravíssima, sobretudo porque se acumula com as crises que preexistiam à pandemia. Será, por isso, muito mais grave.
As políticas de auxílio emergencial por mais deficientes que sejam, combinadas com o abrandamento econômico causado pela pandemia vão causar um enorme endividamento do Estado e o agravamento da dívida será uma causa adicional para mais e mais austeridade. Os governos conservadores não conhecem outro meio de lidar com os protestos pacíficos do povo trabalhador contra a injustiça social, a não ser a violência repressiva. Responderão assim, e a mensagem incluirá a militarização crescente da vida cotidiana. O que implica o uso de força letal que foi desenhada para inimigos externos. A degradação da democracia já bastante evidente se aprofundará ainda mais. Até que ponto o mínimo democrático que ainda existe colapsará, dando espaço a novos regimes ditatoriais?
Este cenário não é especulação irrealista. Um relatório recente do FMI faz a mesma previsão. Os autores Philip Barrett e Sophia Chen dizem que as pandemias podem ter dois tipos de efeitos sobre a agitação social: um efeito atenuante, suprimindo a possibilidade de causar distúrbios ao interferir nas atividades sociais, bem como um efeito contrário, que aumente a probabilidade de mal-estar social e, por conseguinte, sejam gerados distúrbios ou protestos, na medida em que a pandemia se enfraqueça.
O que não dizem é que os protestos serão motivados pelas mesmas políticas que o FMI e as agências financeiras promovem em todo o mundo. É tanta a hipocrisia do mundo em que vivemos, que o FMI ignora ou oculta as consequências de suas abordagens. O povo colombiano merece e precisa de toda a solidariedade internacional. Não estou seguro que a terão abertamente das agências internacionais que dizem promover os direitos humanos, apesar destes estarem sendo violados tão gravemente na Colômbia.
Imaginemos por um momento que o que está acontecendo na Colômbia estivesse ocorrendo em Caracas, na Rússia ou qualquer outra parte do mundo declarado como não amigo dos Estados Unidos. Certamente, a OEA, o alto comissariado da ONU, e o governo norte-americano já estariam em campo para denunciar os abusos e propor sanções aos governos infratores. Por que a suavidade nos comunicados emitidos até o momento?
Não se pode escapar de ninguém que a Colômbia é o melhor aliado dos Estados Unidos na América Latina, sendo o país que se ofereceu para instalar sete bases militares dos Estados Unidos em seu território (situação que, felizmente, não ocorreu por intervenção da Corte Constitucional). As relações internacionais no presente vivem o momento mais escandaloso de hipocrisia e parcialidade: somente os inimigos dos interesses norte-americanos cometem violações dos direitos humanos. Não é novo, mas agora é mais chocante.
As agências multilaterais se rendem a esta hipocrisia e parcialidade, sem qualquer tipo de vergonha. Os colombianos, isso sim, podem esperar a solidariedade de todos os democratas do mundo. Em sua coragem e em nossa solidariedade reside a esperança. O neoliberalismo não morre sem matar, mas quanto mais mata, mais morre. O que está acontecendo na Colômbia não é um problema colombiano, é um problema nosso, das e dos democratas do mundo.
No momento, as manifestações na Colômbia não se veem próximas de acabar e apesar de ter passado uma semana, desde o início das mesmas, devemos insistir em superar o medo que ronda as ruas do país e insistir na esperança de um futuro prometedor, mais justo e em paz, para um país que quis acabar um conflito de mais de 50 anos, por meio de um Acordo que agoniza sob as garras do capitalismo abissal.
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Colômbia em chamas: o fim do neoliberalismo será violento. Artigo de Boaventura de Sousa Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU