Há diferentes maneiras de viver o tempo, durante uma crise civilizatória. Mas há distinções também em como as classes o encaram: em um mundo com futuro nebuloso, uns buscam ultrapassar o tempo – para outros, ele é um carro na contramão…
O artigo é de Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, publicado por OutrasPalavras, 22-03-2021.
As dificuldades em explicar, interpretar ou viver o tempo são diferentes versões da mesma dificuldade em lidar com o enigma do tempo. Esta dificuldade vem de longe. Já Santo Agostinho afirmava, “o que é então o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei. Se alguém me perguntar, eu não sei responder”. O tempo partilha com o corpo esta insondável característica de nada poder ser pensado sem ele e, no entanto, de ser ele próprio relativamente pouco pensado pela reflexão humanística ou científica. O tempo atual impõe-nos o enigma do tempo com uma acuidade que não pode ser ignorada. A pandemia abalou profundamente tanto as rotinas diárias como as expectativas e os planos de futuro e, consequentemente, as percepções do passado. Dizia Aristóteles que a memória era a imaginação mais o tempo. Um tempo turbulento afeta, pois, a imaginação e a memória. Quem é que nos últimos tempos não reavaliou acontecimentos, vivências e convivências passadas, antigas ou recentes? O tema do tempo salta-nos ao caminho quer quando estamos acordados quer quando dormimos e sonhamos. Neste texto, abordo apenas três questões de um tema imenso. Têm todas a ver com a experiência do tempo, o tempo vivido, aquela dimensão que mais interessa ao sociólogo. As relações entre presente, futuro e passado; a direção do tempo irreversível; continuidades e descontinuidades.
A assimetria principal entre o presente, o passado e o futuro é que só temos experiência direta do primeiro e vivemos os outros dois com imaginações temporais que vão mudando com o tempo do presente e as suas circunstâncias. Em tempos ditos normais, o presente tende a ocupar a experiência temporal das pessoas, dos grupos sociais e das comunidades. Em sociedades atravessadas por profundas desigualdades, discriminações e injustiça social, essa experiência é vivida por uns (poucos e cada vez menos) como um relativo paraíso de bem-estar terreno feito de expectativas positivas (está-se bem e vai ficar melhor) que, por reiteradas, parecem uma condição eterna ou natural; por outros (muitos, a grande maioria do povo trabalhador) é vivida como um inferno de mal-estar terreno, feito de expectativas negativas (está-se mal e vai ficar pior), aflições, incertezas, desordem e caos. Em períodos de turbulência social, esta experiência temporal tende a alterar-se; de repente, o presente deixa de ocupar o centro da experiência e as pessoas vivem, acima de tudo, as experiências do passado e do futuro. Em períodos de revolução, esta transformação da experiência temporal é bem conhecida. O presente, apesar de tão intenso, é vivido como passagem rápida de um passado que se rejeita para um futuro que se deseja e pelo qual se luta. Para os revolucionários, o passado é o pesadelo que se deixou definitivamente para trás e tudo é intensamente feito em nome do futuro que se crê próximo e auspicioso. Para os contrarrevolucionários, a experiência é oposta, mas coincide com a anterior quanto à inexistência do presente como experiência estável.
A pandemia da covid-19 não é uma revolução social, mas afeta de tal maneira as rotinas do presente que produz uma turbulência semelhante às experiências temporais revolucionárias. O confinamento, a distância sanitária, a obsessão mediática, a profunda alteração do quotidiano – tudo isto faz com que a experiência do presente, de tão diferente ou estranha, seja vivida como transitória entre um passado que não se vive como irreversível mas como uma suspensão do presente, vivida graças a uma certa inércia emocional, e um futuro concebido como tudo o que pode pôr fim à suspensão – por exemplo, a vacina. As diferenças entre as experiências são aqui menos extremadas que as dos processos revolucionários. Mesmo assim, para a grande maioria, para quem a pandemia tem sido apenas mais um fator de vulnerabilização a acrescentar a tantos outros anteriores (pobreza, fome, guerra, racismo, sexismo, precariedade do emprego e da habitação), o passado é talvez apenas o mal menor e o futuro é a infeliz probabilidade de a pandemia do presente se transformar em repetido presente da pandemia. Para a minoria da população do mundo, que se pôde proteger durante a pandemia, o passado como suspensão do presente é uma experiência ainda mais intensa e o futuro é vivido intensamente como o fim dessa suspensão e o regresso à normalidade mais do que nunca desejada.
Na tradição judaico-cristã, o tempo é predominantemente concebido como repetitivo, irreversível e linear. A partir do século XVI, com a expansão da modernidade eurocêntrica (capitalismo e colonialismo), a linha do tempo transformou-se na linha de progresso, e a flecha do tempo passou a distinguir entre os países, culturas ou modos de vida que vão na frente (avançados ou desenvolvidos) e os que vão atrás (atrasados ou sub-desenvolvidos), com a implicação de o futuro dos segundos dever ser forçosamente semelhante ao presente dos primeiros. Este paradigma temporal transformou radicalmente a experiência do tempo tanto a nível individual como coletivo. Limito-me a referir duas instâncias: a aceleração e a infinitude do tempo.
O tempo linear pode ter vários ritmos e cada um deles permite diferentes experiências sociais. Mas, sobretudo depois da primeira revolução industrial (cerca de 1830), o ritmo privilegiado passou a ser o da constante aceleração. A segunda e a terceira revoluções industriais foram instâncias de crescente aceleração; a quarta revolução industrial (inteligência artificial), que está à porta, terá certamente o mesmo efeito. Hoje, viver com o tempo é viver contra o tempo, gerir o tempo é gerir a falta de tempo. Tal como na economia capitalista, a produção de escassez é o principio básico do funcionamento do tempo no século XXI.
Há, no entanto, dois modos totalmente distintos de viver esta condição temporal. As classes e os grupos sociais dominantes vivem contra o tempo numa corrida lado a lado com ele e com a ânsia de o ultrapassar. O exemplo paradigmático desta vivência é a negociação de ativos financeiros nas bolsas de valores. Pelo contrário, o povo trabalhador vive contra um tempo que vem no sentido contrário ao do seu quotidiano. Nos tempos de hoje, nem sempre há salário e, mesmo quando há, o tempo é um carro que vem na contramão e atropela as famílias a meio do mês, quando não antes, com as contas do supermercado por pagar, a comida que falta para pôr na mesa, e as prestações vencidas e em dívida. Este tempo em sentido contrário é como um vento agreste e frio que fustiga a alma, faz rugas, provoca pesadelos, desassossega a convivência familiar ou conjugal e tantas vezes entra pelas frestas da consciência e germina em tentações (não tentativas) de suicídio.
O tempo linear é infinito, mas esta condição obriga-o a conviver com dois não-tempos, duas temporalidades sem tempo: o instante e a eternidade. Qualquer destes dois tempos tem vindo a ganhar espaço, e tanto, que a concepção do tempo linear começa a entrar em risco. O instante tem sido apropriado pelas novas tecnologias de comunicação e de informação. Os estudos de psicologia e de ciências de comunicação mostram que a capacidade de concentração é cada vez menor e que a duração da atenção aos conteúdos veiculados nas redes sociais diminui de ano para ano. O domínio do instantâneo (diferente do espontâneo), ao capturar a linha do tempo, transforma-a numa sequência frenética de instantes. Um futuro distópico poderia reduzir os nossos ativos afetivos e sociais ao frenesi de uma bolsa de valores do corpo e do espirito.
Desde tempos imemoriais este não-tempo tem sido um exclusivo de divindades e de mitos. As religiões foram sempre o instrumento utilizado para institucionalizar o “trabalho” dos deuses. No nosso tempo, que Charles Taylor caracteriza como idade pós-secular, as religiões, sobretudo as inspiradas por teologias conservadoras e até reacionárias, têm vindo a ocupar mais espaço na vida social profana e no poder político que a governa, e, com isso, têm vindo questionar o tempo linear, quase sempre obrigando-o ao salto qualitativo do apocalipse ou da “segunda vinda”. Por via da proliferação do instante e da eternidade, o tempo linear vai perdendo espaço. Talvez a sua aceleração seja um esforço desesperado para disfarçar ou combater a sua estagnação.
As diferentes culturas privilegiam diferentes temporalidades. Enquanto umas privilegiam continuidades, outras privilegiam descontinuidades. A cultura ou culturas que dominam a modernidade eurocêntrica têm a este respeito duas especificidades. A primeira é que no plano teórico oscilam convincentemente entre os dois opostos. Por exemplo, na sociologia da ciência e na física quântica. Enquanto a teoria dos paradigmas da ciência, eloquentemente formulada por Thomas Kuhn, defende que a ciência moderna significa uma ruptura total com a ciência medieval e antiga, outras teorias (por exemplo, as de Pierre Duhem) defendem com igual razoabilidade a ideia da continuidade do labor científico desde o mundo antigo até aos nossos dias. No domínio da física quântica, tem sido constante o debate a respeito da descrição última da entidade quântica ou matéria, entre a ideia de partícula (descontinuidade) e a ideia de onda (continuidade). Niels Bohr referiu que essa dualidade é de fato um paradoxo, “o paradoxo da dualidade”, um dado fundamental ou metafísico da natureza.
A outra especificidade diz respeito ao modo como na vida social e política a modernidade eurocêntrica distribui desigualmente a ideia da continuidade e a ideia de descontinuidade. As classes dominadas ou subalternas tendem a viver segundo a lógica da descontinuidade. As suas lutas de resistência e as vitórias em que eventualmente se traduzem são sempre efêmeras e reversíveis. Se num dado ciclo político conquistam novos direitos, o ciclo seguinte anula frequentemente essas vitórias e por vezes provoca mesmo um retrocesso em relação ao ponto de partida do ciclo político anterior. Pelo contrário, as classes dominantes tendem a viver segundo a lógica da continuidade. Concebem os seus direitos e privilégios como características permanentes da sociedade. Quando ocasionalmente estas características são postas em causa e afetadas pelas conquistas das classes populares, tal fato é visto como uma interrupção na continuidade, uma interrupção a que se deve pôr fim o mais rapidamente possível. Daí a violência com que as classes dominantes reagem às vitórias das classes subalternas.