Rondônia promove um “liberou-geral” na grilagem

Projeto de lei de autoria do Executivo foi aprovado pelos parlamentares reduz uma reserva extrativista e um parque estadual. Na foto: queimadas em agosto de 2020 na Resex Jaci-Paraná (Foto: Christian Braga | Greenpeace)

07 Mai 2021

 

O governador Marcos Rocha (PSL) e os parlamentares de Rondônia decretaram um “liberou-geral” com a aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLC) 80/2020, de autoria do Executivo. Às vésperas da Cúpula de Líderes sobre o Clima (ocorrida no último dia 22), as autoridades rondonienses decidiram reduzir em 211 mil hectares os tamanhos do Parque Estadual de Guajará-Mirim e da Reserva Extrativista (Resex) Jacy-Paraná. A mensagem foi clara: estão autorizados a grilagem, a invasão e o desmatamento de terras protegidas.

 

A reportagem é de Fabio Pontes, publicada por Amazônia Real, 30-04-2021.

 

“Na hora que ele [o governador] sancionar vão acabar de invadir o restante de floresta que tem nestas áreas”, alerta o primeiro-secretário da Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR), João Bragança. “O desmatamento irá aumentar já a partir deste ano”, prevê Marcelo Ferronato, pesquisador da Ação Ecológica Guaporé (Ecoporé).

 

A Assembleia Legislativa é ligada, historicamente, ao setor ruralista de Rondônia, não por acaso o terceiro estado que mais desmatou na Amazônia Legal entre 1988 e 2020: 62,9 mil quilômetros quadrados. O PLC 80 foi aprovado de forma unânime por 17 deputados estaduais, incluindo um representante do Partido Verde, Luizinho Goebel. O parlamentar é líder do governo estadual.

 

Na mesma sessão que aprovou a desafetação [redução] da Resex Jacy-Paraná e do Parque de Guajará-Mirim, os deputados estaduais criaram seis novas áreas protegidas, cujos tamanhos não equivalem à perda das UCs reduzidas. Mas foi a contragosto, como admitiu o deputado Jean Oliveira (MDB) na noite do dia 20 de abril: “Nenhum deputado aqui é a favor da criação de unidade de conservação, mas infelizmente se faz necessária para compensar, para ter o equilíbrio”. Oliveira é vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa.

 

“Para mim é um recado para quem grila terra pública: pode grilar que a Assembleia Legislativa regulariza. A Assembleia Legislativa apoia, muito claramente, quem causa dano ambiental”, diz Ivaneide Bandeira indigenista e ambientalista, sócia-fundadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. Para Ivaneide, a tendência é de mais unidades de conservação estaduais desaparecerem e o desmatamento avançar com mais velocidade.

 

“Eles vão atualizar o plano de Zoneamento. E atualização significa acabar com unidade de conservação. Sempre foi assim. Essa é a terceira atualização”, antecipa Ivaneide. “Isso não é uma regularização fundiária, é uma regularização de invasão.”

 

No dia da aprovação do PLC 80, os deputados confirmaram que a próxima votação será a do Zoneamento Socioeconômico e Ecológico de Rondônia. O zoneamento é uma espécie de mapa que define o quê e quais atividades econômicas serão desenvolvidas no estado, de acordo com as características de cada região.

 

A grilagem histórica

 

Conforme lembram os ambientalistas, as invasões, em sua grande maioria, não foram feitas por posseiros com perfil de reforma agrária ou integrantes de organizações como o Movimento dos Sem-Terra (MST). Essas apropriações de vastas áreas de terras públicas eram patrocinadas por grandes latifundiários, muitas vezes apoiados pelos políticos locais, e que remontam a época da ditadura militar, dinâmica que se repete até os dias de hoje.

 

Operação Verde Brasil de combate ao desmatamento em Rondônia, em 2019. (Foto: Cabo Estevam | CcomSex)

 

Rondônia é um dos estados mais desmatados do país. Com amplo domínio do latifúndio, buscam reduzir as áreas protegidas para atender aos interesses da grilagem”, tuitou o analista ambiental Hugo Loss, do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). “A grilagem é isso: manutenção da grande propriedade e lucro com a invasão e desmatamento de terras públicas”, comentou Loss, que foi exonerado do cargo de coordenador de operações do Ibama pelo ministro Ricardo Salles, em 2019, logo após o episódio do chamado Dia do Fogo.

 

A Resex Jacy-Paraná e o Parque Estadual de Guajará-Mirim passaram a ser alvo constantes, nos últimos 20 anos, de invasões para expansão da retirada ilegal de madeira e pecuária. A maioria dos 50 moradores originários da Jacy-Paraná foi expulsa pelos invasores. Algumas dessas famílias extrativistas chegaram a ser expulsas sob a mira de arma de fogo por jagunços dos grandes fazendeiros que transformaram a floresta em pasto para o boi.

 

João Alberto Ribeiro, sócio-fundador da Ecoporé e funcionário aposentado do Ibama, lembra do processo de invasão da Jacy-Paraná. “Foi uma ocupação violentíssima. Eles expulsavam os seringueiros na porrada”, diz. “A invasão da Jacy-Paraná foi tutelada pelo Estado. Os invasores entram e saem com o gado a todo momento.”

 

Ribeiro conhece como poucos a história e o processo de grilagem em unidades de conservação federais e estaduais de Rondônia – além das terras indígenas. Com atuação também no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pela gestão das áreas protegidas da União, ele explica que a invasão de terras públicas na Amazônia segue uma dinâmica própria.

 

“Primeiro entram os madeireiros saqueando tudo, tirando as madeiras de valor. Depois derrubam toda a área, colocam fogo e jogam o capim para aquilo ali se transformar em pastagem”, explica o ambientalista. Para garantir a posse da terra, também constroem casas e, em alguns casos, vilas inteiras.

 

De acordo com ele, os grupos que fazem uma nova invasão numa área protegida acabaram de sair de outra. “São as mesmas pessoas que grilaram uma área e vão para a vizinha. Cansamos de apreender os celulares e ver que eram as mesmas pessoas que tinham acabado de ser autuadas”, diz Ribeiro.

 

A partir de 2002, ano da eleição de Ivo Cassol para governador, o processo de invasão em Rondônia foi acelerado, de acordo com Ribeiro. Em 2013, o então senador Ivo Cassol (PP) foi condenado a quase cinco anos de prisão, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por fraudes licitatórias quando ocupou o cargo de prefeito de Rolim de Moura.

 

“O que o Bolsonaro é hoje para o meio ambiente no plano federal, o Ivo Cassol já era aqui no plano local. Ele foi desastroso para as áreas protegidas de Rondônia”, ressalta. De acordo com Ribeiro, ao final do governo Cassol, em 2010, o estado extinguiu 10 unidades de conservação “numa tacada só”.

 

Depois da desafetação

 

A tendência pelos próximos cinco anos é a de que as últimas áreas de floresta remanescentes nas duas UCs desapareçam devido às invasões causadas pela grilagem que será impulsionada com a aprovação do PLC 80/2020. Esta é a previsão do biólogo Marcelo Ferronato.

 

Parque Estadual de Guajará-Mirim (Foto: Cabo Estevam | CcomSex)

 

Pesquisador da Ecoporé, organização da sociedade civil criada no fim da década de 1980, Ferronato está pessimista depois da aprovação do PLC 80. “Por mais que [os deputados] neguem em seus discursos, o desmatamento irá aumentar consideravelmente na região já a partir desse ano. Pois entre a desafetação e a regularização fundiária, muito tempo se transcorrerá e haverá uma corrida para consolidar as ocupações.”

 

Primeiro-secretário da Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR), João Bragança afirma que a desafetação das duas áreas, já bastante desmatadas por ações predatórias, poderá gerar um efeito dominó. “Eles estão abrindo precedente para desafetar outras unidades de conservação”, afirma.

 

Além dos riscos para a preservação da Floresta Amazônica, avalia Bragança, a redução das áreas protegidas representa ameaça à sobrevivência das famílias tradicionais. Em vez de terem segurança jurídica, extrativistas são ameaçados e expulsos pelos invasores. Muitas das vezes com o uso da força e ameaçados de morte, alerta o seringueiro.

 

“Essas exclusões vão acontecendo e abrindo caminho para os invasores. Quem protege as unidades de conservação? É a comunidade que ali reside. Se a comunidade é expulsa, a unidade fica exposta a invasões”, diz João Bragança.

 

O geógrafo e assessor técnico da OSR Joadir Luiz de Lima lembra que foram várias tentativas da entidade em retirar os invasores por meio de recursos judiciais, mas os sucessivos governos estaduais fizeram vista grossa. “Dois anos depois de ser criada, a reserva passou a sofrer com as invasões. Foi uma invasão lenta. E de lá pra cá só foi aumentando e o governo nunca tirou esses invasores”, diz.

 

A desfaçatez parlamentar

 

O deputado estadual Jean Oliveira, que foi relator do PLC 80, é alvo de investigação da Polícia Federal, que apura organização criminosa que tentou se apropriar de terras públicas em outra unidade de conservação, o Parque Nacional de Pacaás Novos. No dia da votação do projeto, ele defendeu que remover os invasores de dentro das unidades de conservação não é a solução. “Retirar as pessoas lá de cima não vai resolver o problema ambiental. Uma área de pastagem jamais voltará a ser uma floresta”, justificou. “Se votarmos essa matéria hoje, o pouco de floresta que sobrou será mantida”.

 

Assembleia de Rondônia aprova PL que altera limites de reserva extrativista (Foto: Diego Queiroz | ALE/RO)

 

Esse tipo de pensamento é quase que uma unanimidade entre os 24 deputados estaduais de Rondônia. Todos os discursos na noite daquele 20 de abril foram no sentido de apoiar a matéria e parabenizar o governador Marcos Rocha pela “coragem” por enviá-la à Casa.

 

Por conta da repercussão negativa da aprovação do PLC às vésperas da Cúpula do Clima, realizada dois dias depois, o governador bolsonarista pediu, em vão, para que o presidente da Assembleia, Alex Redano, retirasse-o da pauta de votações.

 

Ao negar o pedido, Redano ganhou aplausos de seus colegas e de possíveis moradores das duas UCs “beneficiados” pela aprovação da proposta. A claque estava presente na galeria do plenário. “Estamos resolvendo um problema de décadas e garantindo ao estado e ao setor produtivo uma nova oportunidade de fazer a coisa certa, obedecendo limites e respeitando o meio ambiente”, disse o presidente.

 

“Não estamos aqui permitindo que pessoas desmatem mais, nós estamos regularizando aquilo que já está desmatado”, declarou Cirone Deiró (Podemos).

 

Na análise de Joadir de Lima, da OSR, a criação das seis novas unidades não trará resultados concretos. “Essas novas unidades criadas já têm problema fundiário, tem morador dentro. Vão virar o mesmo problema da Jacy-Paraná. Tem reserva dessa criada com 150 hectares. É inviável criar uma UC desse tamanho. Não tem viabilidade ambiental”, explica. Pelos cálculos de Joadir, a área das novas unidades não ultrapassam os 100 mil hectares, enquanto a desafetação superou os 200 mil.

 

A indústria da grilagem

 

Usado com frequência pelos invasores de terras públicas, o argumento do “fato consumado” é reforçado pelos defensores de projetos de lei que “legitimam” a grilagem. “A indústria da grilagem usa o modelo do fato consumado do tipo, já está tudo desmatado e não tem como recuperar”, explica o ambientalista João Alberto Ribeiro.

 

Queimadas em agosto de 2020 na Resex Jacy-Paraná (Foto: Christian Braga | Greenpeace)

 

O incentivo da ilegalidade tem sido patrocinado oficialmente. O próprio órgão responsável pela vigilância sanitária animal (Idaron) emite carteiras de vacinação e Guia de Transporte Animal (GTA) para o rebanho que ocupa áreas invadidas em UCs.

 

Até agora, Ribeiro diz não ter entendido por que o Parque Estadual de Guajará-Mirim também foi desafetado, já que não há registro de moradores no seu interior. Ao desproteger os 50 mil hectares incluídos no PLC 80, o governo “libera a porteira” para a entrada dos invasores. “O Guajará-Mirim sempre foi referência em termos de proteção. Milhões foram investidos com recursos do Arpa [Áreas Protegidas da Amazônia] para conter a grilagem.”

 

Mas há uma outra explicação possível. De acordo com dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), as duas unidades de conservação desafetadas são as campeãs no registro de fogo ao longo do ano passado em Rondônia.

 

A Resex Jacy-Paraná teve 895 focos de queimadas detectados em 2020, e o Parque de Guajará-Mirim com 133 focos. A capital Porto Velho e o município de Nova Mamoré – onde está a Resex – lideraram o ranking do fogo em Rondônia em 2020: 3.428 e 1.028, respectivamente. Entre os municípios amazônicos, Porto Velho ficou na terceira posição em registro de focos, atrás de São Félix do Xingu e Altamira, ambos no Pará.

 

O desmatamento contínuo

 

Quanto ao desmatamento, conforme dados do Prodes/Inpe, a Resex Jacy-Paraná também está na dianteira. Entre 2008 e 2020, a unidade teve desmatados 834,61 km2 de floresta. É a segunda área de proteção da Amazônia mais devastada no período, atrás apenas da Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu, no Pará. Neste mesmo intervalo, o Parque de Guajará-Mirim perdeu 86,92 km2.

 

Queimadas em agosto de 2020 na Resex Jacy-Paraná (Foto: Christian Braga | Greenpeace)

 

Os dados oficiais do Inpe apontam Rondônia como um dos que mais contribuem para a devastação do bioma Amazônia. O ano de 1995 foi o pior em níveis de desmatamento nas últimas três décadas: 4,7 mil km2. Foi exatamente a partir daí que o estado passou a intensificar a criação de UCs próprias como forma de garantia para firmar parcerias com instituições internacionais, como o Banco Mundial.

 

A Resex Jacy-Paraná foi criada por meio do decreto 7.335, de 17 de janeiro de 1996 com o nome de Reserva Extrativista do Rio Jacy-Paraná. Era às margens do manancial onde vivia a maioria das famílias originárias de extrativistas, expulsas pelos invasores agora “legalizados” pela Assembleia Legislativa. Conforme o decreto de criação – assinado pelo então governador Valdir Raupp (MDB) -, sua área era de 205 mil hectares. Pelo texto original do PLC 80, passa a ter 45.184 hectares.

 

Já o Parque Estadual de Guajará-Mirim surgiu a partir do Decreto 4.575, de 23 de março de 1990. Sua área original era de 258.813 hectares. Pelo projeto aprovado semana passada, passa a ter 207.148 hectares. As duas UCs estão na região Noroeste de Rondônia, abrangendo os territórios de Porto Velho, Nova Mamoré, Buritis e Guajará-Mirim. Junto de outras unidades federais e terras indígenas (Karipuna e Karitiana) deveriam formar um mosaico de áreas naturais protegidas – junto de unidades da Bolívia – para proteger a região da invasão de terras públicas.

 

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