Seremos, por fim, servos de máquinas?

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04 Mai 2021

 

"Nesse 1º de Maio, ao invés de nos distrairmos tentando prever se algoritmos de aprendizado ou bots irão nos substituir logo mais ou logo menos, precisamos nos concentrar em torno de uma agenda internacional de pesquisas e políticas públicas que leve em consideração precisamente as lutas da classe que vive do trabalho digital", escreve Nahema Falleiros, mestra em Sociologia pela FFLCH-USP, doutoranda em Ciência da Informação no PPGCI-IBICT-ECO-UFRJ e integrante do ComMarx, grupo de pesquisa em economia política da informação, da comunicação e da cultura dirigido pelo Prof. Dr. Marcos Dantas, em artigo publicado por Outras Palavras, 30-04-2021.

 

Eis o artigo.

 

Ressuscitadas a partir dos últimos avanços experimentados no início dos anos 2010 na Inteligência Artificial (IA) e em outros campos da ciência da computação [1], as teses sobre o fim do trabalho não só foram retomadas recentemente como também começaram a ser contestadas [2].

 

Estudos prospectivos que chamam a atenção para um possível aumento do desemprego causado pela automação [3] estão dando lugar a vários estudos empíricos que mostram o quão dependente ainda é a indústria da IA não só do trabalho bem pago e de alta qualificação de quem planeja os algoritmos, mas também do trabalho mal pago e de baixa qualificação de quem executa a rotulação dos dados extraídos da “Web 2.0” para serem usados no aprendizado de máquina [4].

 

Algoritmos estatísticos de uso intensivo de dados como os das redes neurais usadas no deep learning ou aprendizado profundo não são tão “smart” quanto prometem os profetas da “quarta revolução industrial” anunciada em Davos há poucos anos.

 

Esses servomecanismos intangíveis que, desde os tempos da milenar Casa do Saber, traduzem-se em um conjunto finito de regras e métodos lógico-aritméticos [5], ainda precisam de muito “treino” para “aprender”! E somos nós, humanos, seus mestres…

 

Afinal, quem nunca rotulou imagens de veículos, pontes, árvores, faixas de pedestre, semáforos, escadas, números e letras em uma caixa de diálogo reCAPTCHA?

 

 

Esse serviço é oferecido gratuitamente pela Google Cloud a empresas por meio de uma API, acrônimo usado em inglês para fazer referência a várias interfaces de programação de aplicativos [6]. Além de combater spams e bots “abusivos”, permite melhorar, em larga escala, o reconhecimento de objetos, a classificação de imagens e a digitalização de textos. Consegue este feito demandando a milhares de usuárias e usuários da Internet a execução gratuita de microtarefas em forma de testes intelectuais ou cognitivos que os computadores não fazem.

 

Esse tipo de microtarefa rápida, que fazemos diária e gratuitamente sem saber exatamente para que serve, é um bom exemplo do trabalho digital fragmentado e repetitivo feito por alguns poucos centavos de dólares ou euros por milhares de trabalhadoras e trabalhadores precários que a indústria da IA insiste em invisibilizar em declarações éticas internacionais como a de Montreal ou em suas estratégias nacionais de P&D.

 

Um mercado de dados ou de trabalho com dados?

 

O mercado global de “serviços” de treinamento de conjuntos de dados de texto, imagem e áudio, foi criado para atender essa nova indústria de IA. É formado por diversas plataformas de microtarefas, que vão desde pequenas startups a grandes transnacionais de capital aberto. Apesar de latente, já valia, em 2018/19, quase um bilhão de dólares e deve alcançar uma taxa composta de crescimento anual de 22,5% até 2027 [7].

 

Como muitas outras plataformas digitais de trabalho, as de microtarefas podem ser descritas como empresas que gerenciam, por meio de APIs, a atividade econômica entre compradores e vendedores da força de trabalho. No caso, essas empresas se anunciam para os laboratórios acadêmicos e industriais de todo o mundo como vendedoras de “serviços” de IA ou treinamento de conjunto de dados. Já para os trabalhadores, apresentam-se como provedoras de “ganhos online”, em oposição à regulação clássica empregador-empregado [8].

 

 

Esse mercado global de trabalho, completamente refratário às leis trabalhistas de proteção social, cresceu mundo afora desde a crise financeira de 2007-8 e agora a tendência é seguir crescendo em um ritmo cada vez mais acelerado. Isso porque esse tipo de empresa intermediária tem sido cada vez mais procurada por trabalhadores que perderam seus empregos ou tiveram suas jornadas reduzidas desde o início da pandemia de covid-19 e agora tentam ganhar alguma “renda extra” no escritório intermitente improvisado em casa.

 

Não por acaso, em abril desse ano, o Our Hit Stop, website que funciona como fórum de discussão e venda de uma extensão para Chrome que facilita a busca por microtarefas na plataforma Mechanical Turk, da Amazon, viu aumentar em 20% o número de novatos e, em 30%, o de veteranos que voltaram à ativa, enquanto a Hive Work, startup lançada em 2013 pela Castle Global, mais do que dobrou sua força de trabalho, graças a uma nova leva de trabalhadores de microtarefas vinda do Brasil e das Filipinas [9].

 

Quem rotula os dados?

 

De acordo com uma pesquisa feita em 2015 e 2017 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) com 3.500 trabalhadores de microtarefas em 75 países, incluindo o Brasil [10], a idade média dos entrevistados era de 33 anos. Nos países centrais, a proporção era de uma mulher para cada três trabalhadores, enquanto nos países periféricos a diferença de gênero era ainda maior, com apenas uma mulher para cada cinco trabalhadores. Além de relativamente jovens, esses trabalhadores também eram educados: 37% tinham um diploma de bacharel e 20% um diploma de pós-graduação. Entre os bacharéis, 57% eram especialistas em ciência e tecnologia (12% em ciências naturais e medicina, 23% em engenharia e 22% em tecnologia da informação). Já os outros 25% eram especializados em economia, finanças e contabilidade. Esses dados chamam a atenção não só para o problema global do desemprego, mas também para o problema do subemprego entre os mais jovens.

 

Era igualmente notável a desigualdade geográfica entre os trabalhadores de microtarefas, desigualdade essa que reflete, de certa maneira, a velha divisão internacional do trabalho entre o centro e a periferia do capitalismo. Nos países desenvolvidos da América do Norte, da Europa e Ásia Central, esses trabalhadores ganhavam mais: 4,70 e 3,00 dólares por hora respectivamente. Enquanto nos países em desenvolvimento da Ásia, do Pacífico e da África eles ganhavam menos: 2,22 e 1,33 dólares por hora.

 

 

No geral, o que chama a atenção em países periféricos como o Brasil é a precariedade tão “profunda” quanto o aprendizado de máquina, para fazer referência aqui ao jargão neo-conexionista da IA. Como revelaram o artista Bruno Moreschi e o pesquisador Gabriel Pereira em uma pesquisa feita em 2019 com 150 trabalhadores brasileiros arrebanhados pela Amazon Mechanical Turk (e conhecidos no jargão do setor como turkers), eles só recebiam seus pagamentos por meio de vale-créditos (gift cards) utilizáveis apenas em compras na própria corporação [11].

 

Trabalhar sem ter a garantia de receber é a vergonhosa realidade das plataformas, mas a incerteza era ainda maior à época. Não podemos esquecer que até o final de 2020, a Amazon não oferecia sequer um sistema universal de transferência bancária para os trabalhadores de microtarefas [12]. Por isso, a maioria dos turkers brasileiros tinha de tentar trocar seus gift cards por outros mais procurados como os da GooglePlay, Nintendo ou PlayStation, para só então conseguir vendê-los em plataformas digitais de leilão. Nessa gambiarra high tech marcada pela superexploração do trabalho, uma parte do pagamento recebido pelas microtarefas era usada então para pagar as próprias taxas desses leilões de crédito!

 

Marx e o paradoxo da automação

 

Combinando diversas APIs a um modelo de gestão neo-taylorista de empresa “enxuta” e “flexível”, a nova indústria da IA parece estar longe de cumprir as promessas dos engenheiros e cientistas da computação celebrados hoje pela Wired e outras tantas revistas de inovação e negócios. Muitos ainda buscam inventar sistemas de tecnologia da informação totalmente automáticos, capazes de simular a própria inteligência ou cognição humana — como chegou a propor nos anos 1950 o matemático britânico Alan Turing, pioneiro da computação.

 

Ao invés de libertar a humanidade da labuta, a tendência, no entanto, parece ser mesmo a de dividir e invisibilizar socialmente o trabalho técnico e científico por meio da “terceirização” em larga escala. De fato, a tese da degradação do trabalho proposta pelo marxista estadunidense Harry Braverman nos anos 1970 nunca foi tão atual quanto agora… Afinal, nessa nova indústria estaríamos diante de um processo semiautomático que mais desqualifica do que requalifica o trabalho humano. O que observamos é uma profunda divisão entre atividades de planejamento e execução. Uns poucos programam os algoritmos estatísticos de aprendizado de máquina. À grande maioria resta a “faxina” ou “limpeza” dos dados usados, para tentar torná-los mais precisos.

 

 

Ora, os limites que a IA tem encontrado em sua maratona rumo à automação total geram sempre algum tipo de trabalho provisório, como mostra a própria história da computação. Como a linha de chegada dessa maratona move-se à medida que sua própria comunidade científica sonha com novos “apps”, é impossível ter certeza se a última milha será mesmo concluída algum dia. Com sagacidade, a antropóloga estadunidense Mary Gray e o cientista da computação indiano Siddharth Suri chamaram de “o paradoxo da última milha da automação” essa necessidade de gerar mais trabalho humano quando se pretende eliminá-lo por meio do uso de máquinas [13].

 

Marx, já no século XIX, observou esse fenômeno ao discutir a relação entre maquinaria e lucro na velha manufatura. Contudo, em seus Grundrisse, o autor de O Capital chegou à conclusão de que a automação não esbarraria apenas nos limites da ciência e da tecnologia como também nos limites da própria economia de seu tempo.

 

Com o revolucionário, a palavra:

 

[…] Sob o domínio do capital, a utilização da maquinaria não encurta o trabalho, mas o prolonga. O que ela encurta é o trabalho necessário, não necessário para o capitalista. Como o capital fixo é desvalorizado quando não empregado na produção, o seu crescimento está associado à tendência de perpetuar o trabalho [14].

 

Uma vez convertida em mercadoria, a força de trabalho, essa capacidade humana de transformar a natureza de acordo com a imaginação, não poderia ser totalmente substituída pelas máquinas. Sem ela o capitalismo, de acordo com Marx, deixaria muito provavelmente de existir. Afinal, essa curiosa mercadoria é a única que, com seu valor-de-uso, também é capaz de criar valor-de-troca. Ao comprá-la, o capitalista deve extrair dela tanto mais-valor quanto possível. Por isso, o trabalho humano vivo deve ser estendido para muito além do tempo socialmente necessário à (re)produção da própria força de trabalho. Do contrário, estaria garantida a sobrevivência do trabalhador, mas não a razão de ser do capitalista, proprietário dos meios de produção.

 

 

Muito chão foi percorrido pela automação e pelo capitalismo desde a segunda metade do século XVIII, mas o insight de Marx sobre suas contradições ainda parece estar de pé. Mesmo com as últimas proezas da IA, até agora nem o trabalho, nem o capital sumiram do mapa mundi e o conflito entre ambos continuou se reconfigurando após crises cíclicas de superacumulação e sucessivas inovações econômicas, políticas e culturais. Quando submetida ao exame crítico das condições materiais de sua produção software, a IA não tarda em deixar transparecer os limites técnico-científicos, mas também político-econômicos de seu ambicioso projeto leibniziano de simulação do juízo pelas máquinas de cálculo.

 

As lutas que estão por vir

 

Nesse 1º de Maio, ao invés de nos distrairmos tentando prever se algoritmos de aprendizado ou bots irão nos substituir logo mais ou logo menos, precisamos nos concentrar em torno de uma agenda internacional de pesquisas e políticas públicas que leve em consideração precisamente as lutas da classe que vive do trabalho digital. Como alertou recentemente o sociólogo Ricardo Antunes [15], com a difusão das plataformas no mundo do trabalho ainda mais pronunciada durante a pandemia, a precariedade, combinada a novas formas de exploração e degradação do trabalho, poderá se tornar a regra — se não houver mobilizações e se leis trabalhistas de proteção social básicas não forem adotadas a tempo.

 

Já é possível identificar algumas iniciativas interessantes de solidariedade entre os trabalhadores de microtarefas que procuram incentivar, por exemplo, empresas e clientes a cumprir protocolos mínimos a fim de melhorar suas condições de trabalho.

 

Entre elas estão o Turkopticon, um site lançado em 2009 que permite aos trabalhadores avaliar os clientes que solicitam a execução de microtarefas na Amazon Mechanical Turk. Além dessa iniciativa há também as Diretrizes do Dynamo Para Solicitantes Acadêmicos. estabelecidas por esses mesmos trabalhadores em 2014; o FairCrowdWork.org, outro site lançado em 2015 pela IG Metall e pelo Unionen, o sindicato sueco dos trabalhadores de colarinho branco, ou mesmo o Código de Conduta de Crowdsourcing firmado voluntariamente em 2017 por algumas plataformas de microtarefas alemãs.

 

 

O desafio é enorme nesse cenário extremamente desfavorável para as classes trabalhadoras. Ainda não temos respostas para a pergunta sobre como as iniciativas descritas acima, localizadas todas no Norte Global, poderiam somar-se, por exemplo, ao Movimento dos Entregadores Antifascistas no Brasil, fortemente atuante nas greves de meados de 2020, que ficaram conhecidas pelo nome de #BrequeDosApps.

 

Também não sabemos como a formação do sindicato dos trabalhadores da Google Alphabet nos Estados Unidos, no início de 2021, poderá se articular internacionalmente. De qualquer maneira, todas essas e outras iniciativas bastante recentes parecem apontar para uma nova onda global de lutas por direitos que precisa seguir em frente contra a opressão, de norte a sul, leste a oeste.

 

Cibertarefeiros do mundo, uni-vos!

 

Notas

[1] Ver o estudo de Dominique Cardon, Jean Cointet e Antoine Mazières La revanche des neurones. L’invention des machines inductives et la controverse de l’intelligence artificielle, publicado na Réseaux, v. 5, n. 211, em 2018. E também o de Matteo Pasquinelli: Des machines qui morphent la logique: les réseaux de neurones et l’automatisation déformée de l’intelligence comme inférence statistique. Journal Site 1: Porte Logique, Politiques De L’esprit, publicado na Artefactuel, em 2017.

 

[2] Refiro-me aqui às teses da sociedade pós-industrial e da sociedade da informação que remontam aos estudos do economista Fritz Mchlup no início dos anos 1960 ou do sociólogo Manuel Castells no final dos anos 1990, passando pelos estudos de Alain Touraine, Daniel Bell, André Gorz, Claus Offe, etc. Muitas dessas teses que defendiam o fim da centralidade social do trabalho no capitalismo contemporâneo já foram amplamente discutidas pelo sociólogo Ricardo Antunes seja em seu livro Adeus ao trabalho? publicado em 1995 pela editora Cortez ou em O privilégio da servidão publicado em 2018 pela Boitempo.

 

[3] Ver por exemplo os estudos do diretor e do pesquisador chefe do Centro de Negócios Digitais do MIT, Erik Brynjolfsson e Andrew Mcaffe, em seu best seller da futurologia contemporânea The Second Machine Age, publicado pela Norton and Company em 2014.

 

[4] Ver entre outros, um dos estudos comparativos mais completos sobre as condições de trabalho nas plataformas de micro tarefas, publicado em 2018 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT): Digital labour platforms and the future of work Towards decent work in the online world.

 

[5] Ver o interessante livro organizado pelo historiador Jean-Luc Chabert e outros, Histoire D’Algorithmes. Du Caillou À La Puce, publicado pelas Éditions Belin em 1994.

 

[6] O acrônimo é formado pelas iniciais da expressão application programming interface.

 

[7] Esses são o dados apresentados no relatório AI Training Dataset Market Size, Share & Trends Analysis publicado em maio de 2020 pela consultoria Grand View Research.

 

[8] Ver entre outros, o estudo de Paola Tubaro, Antonio Casilli e Marion Coville, The trainer, the verifier, the imitator: three ways in which human platform workers support artificial intelligence, publicado na Big Data & Society, v. 7, n. 1, p. 1-12, em 2020.

 

[9] Esses dados foram divulgados em uma reportagem feita por Tom Simonite, Newly Unemployed, and Labeling Photos for Pennies, publicada na Wired em abril de 2020.

 

[10] Ver nota 4.

 

[11] Ver o estudo de Moreschi, Gabriel Pereira e outros, The Brazilian Workers in Amazon Mechanical Turk: dreams and realities of ghost workers, publicado na Revista Contracampo, v. 39, n. 1, p. 44-64, em abril de 2020.

 

[12] Durante 15 anos, apenas turkers nos Estados Unidos e alguns outros poucos na Índia e em 24 países recebiam seus pagamentos por meio de transferências bancárias. Em outubro de 2020, a Amazon Mechanical Turk anunciou uma nova opção de transferência de pagamento que permite a todos os trabalhadores cadastrados em sua plataforma transferir diretamente seus pagamentos para uma conta bancária virtual nos Estados Unidos.

 

[13] Ver o livro de ambos Ghost Work: How to Stop Silicon Valley from Building a New Global Underclass, publicado pela Houghton Mifflin Harcourt em 2019.

 

[14] Essa citação foi extraída das páginas 1.141 e 1.142 da edição dos Grundisse 1857-1858: esboços da crítica da economia política, publicada pela Boitempo em 2011 sob supervisão editorial de Mario Duayer, tradução do próprio e de Nélio Schneider com Alice Helga Wener e Rudiger Hoffman.

 

[15] Esse alerta foi feito no livro Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0., organizado por Antunes e publicado pela Boitempo em 2020.

 

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