O eremita que buscou sua santidade no deserto e na vida entre os diferentes será enfim proclamado santo. No dia 03 de maio de 2021, o Papa Francisco anuncioua data e o local da cerimônia de canonização de Charles de Foucauld. Pouco mais de um século após a sua morte, o processo, que foi atrasado por guerras e controvérsias, terá o seu fim. No mundo acelerado do século XXI, a pobreza e o esvaziamento de si vividos por Foucauld mantêm uma espiritualidade calcada no silêncio do Evangelho, do que é desconhecido e oculto da vida de Jesus. Finalmente, no domingo, dia 15 de maio de 2022, Francisco torna Charles de Foucauld um santo católico.
O testemunho de Foucauld não é sustentado por grandes e poderosas congregações, mas ressoa por sua espiritualidade. Como explica Robert Ellsberg, em artigo publicado pelo IHU: “A influência e o desafio de Foucauld vão muito além do número de seus seguidores. Sua ênfase na vida oculta de Jesus tem implicações para muitos aspectos da vida cristã hoje. Por exemplo, ele antecipou um novo modelo de vida contemplativa, não enclausurada em mosteiros, mas no meio do mundo”.
Esse é o paradoxo do aristocrata, militar, pesquisador, que encerra sua vida em meio ao deserto, sozinho, em uma casa de pedra, construída por ele próprio. Foucauld peregrinou o mundo até encontrar a sua inutilidade e sua vivência evangélica em meio ao nada.
Foucald encontrou naquilo que não existe registro, mas que está sublime, sendo mística e sentimento, a conversão radical para o Evangelho. É depois da experiência como militar, agnóstico e quase antropólogo que encontra no que não há como encontrar se não com profunda fé, a vida de Jesus escondida dos Evangelhos, a conversão radical pelos pobres, a partir da experiência do nada, do ser menos, ser esvaziado. Para dom Edson Damian, bispo de São Gabriel da Cachoeira-AM, “'a busca do último lugar', que Foucauld testemunhou de forma existencial e geográfica, apresenta-se hoje como um antídoto à autorreferencialidade da Igreja que se expressa no clericalismo, no carreirismo, no autoritarismo e no mundanismo de seus ministros. Ministério origina-se de 'minus-stare' que significa 'estar abaixo', para lavar os pés, servir a todos como fez nosso Mestre e Senhor. Charles de Foucauld quis ser pequeno para ser irmão de todos, a começar pelos excluídos e descartados” - afirma em entrevista concedida ao IHU.
Para o teólogo Pablo D'Ors, Foucauld é um místico do século XXI, com inspiração nos grandes pais e mães do deserto - um aventureiro extravagante, alentado pelo simples e os pobres: “Foi para o deserto para se encontrar com os pobres e se encontrou com a sua própria pobreza. Defendo que Foucauld é o continuador, em nosso tempo, da espiritualidade dos padres e mães do deserto e que, neste sentido, mais que o fundador de uma família religiosa, é quem traz para o Ocidente a necessidade de voltar ao deserto, o que hoje chamamos de silêncio e interioridade. Foucauld foi um buscador espiritual”, escreve em artigo publicado pelo IHU.
Em outro artigo publicado pelo IHU, D'Ors reitera com maior ênfase: “Charles de Foucauld é um dos melhores ícones do fracasso, porque preferiu os últimos postos aos primeiros, a vida oculta à pública, a humilhação à exaltação. Por tudo isso, Foucauld é essa imagem na qual todos os fracassados da história podem se reconhecer. E por tudo isso vejo, muitas vezes, as pessoas do mundo caminhando em uma direção e Foucauld na contrária. Mas não é o único; há outros com ele, todos solitários, todos loucos. E o primeiro dessa fila é o próprio Jesus Cristo, o mais louco de todos”.
Dom Edson Damian, bispo da Diocese de São Gabriel da Cachoeira na Amazônia brasileira, revela a inspiração em Foucauld para a sua missão em uma das dioceses mais pobres e com a maior população indígena do Brasil: “Charles de Foucauld sempre quis buscar o último lugar. Sendo a diocese mais pobre, mais indígena, então eu vou lá. Deus vai me ajudar”. Em evento promovido pelo Centro de Promoção de Agentes de Transformação - CEPAT, dom Damian recorda da influência de Foucauld também na encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco: “O seu ideal de uma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados, no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo ser humano como irmão, e pedia a um amigo: Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos. Enfim, queria ser “o irmão universal. Mas somente se identificando com os últimos é que chegou a ser irmão de todos”.
Foto: Divulgação
Charles de Foucauld, antes de passar meses em Nazaré redescobrindo os passos de Jesus, perambulou pelo Saara argelino e marroquino em diálogo com os muçulmanos tuaregues. Estudou o alcorão, o islamismo, aprendeu os costumes do deserto. Fez-se pobre e assim foi acolhido, despertando em si o sentimento da hospitalidade. Miguel Savietto, da Fraternidade Leiga de Charles de Foucauld, elucida em artigo publicado pelo IHU: “Ao modo da hospitalidade tuaregue, hospedar não é somente oferecer um prato de comida, uma esteira para descansar, um gole de água. Faz parte da hospitalidade as longas, tranquilas e descontraídas conversas. Irmão Charles está convencido de que a conversação aproxima as pessoas, supera divisões, facilita e possibilita a amizade”.
Savietto relaciona a hospitalidade de Foucauld, dos tuaregues e de Jesus Cristo, como uma fraternidade universal, em meio aos pobres. Para ele, “a vida pode ser muito simples como a experimentou Charles de Foucauld. Nazaré é ao mesmo tempo o lugar de oração e o lugar onde todos os homens e mulheres podem encontrar um amigo, um irmão; é uma casa bem simples onde todos podem encontrar a Jesus”.
E o "encontrar Jesus" para Foucauld era deixar que o próprio nazareno se manifestasse. Como missionário em diversos cantos do mundo, mas sobretudo no deserto, em meio ao diferente, entendeu que o protagonismo da sua Missão não era seu, mas do Cristo, explica o padre Carlos Roberto dos Santos, teólogo e membro da Fraternidade Jesus Caritas. “Para ele, o protagonista da missão sempre foi Jesus. Seu desejo de imitar Jesus o fez ser uma presença amorosa no coração do Saara entre os muçulmanos e os povos tuaregues. Não estava lá, entre os irmãos muçulmanos, para convertê-los pelo poder persuasivo do discurso, mas para ser presença de Deus, do Bem-amado. Ele viveu de tal modo o apostolado da bondade, que foi reconhecido como o Irmão Universal. Mais do que fazer planos e projetos missionários, Charles 'gritou o Evangelho' com seu jeito de viver a missão, afirma o padre Carlos em entrevista concedida ao IHU.
Para o padre italiano Gabriele Ferrari, Foucauld ressignificou o sentido da missão diante da universalidade e pluralidade religiosa: “A sua maneira de ser cristão no meio daqueles que não são e não pretendem se tornar cristãos se tornou um novo paradigma da missão ad gentes, para este tempo marcado pela cultura da suspeita e da desconfiança, enquanto se tenta libertá-la das incrustações coloniais que a deturparam e a tornaram hostil às gerações atuais”.
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A Irmã Odette, da Fraternidade das Pequenas Irmãs de Jesus, de Paris, afirma, em entrevista publicada pelo IHU, que “O que Charles de Foucauld viveu entre os muçulmanos é uma mensagem de fraternidade universal que precisamos ouvir nestes tempos de pandemia mundial”. Pierre Sourisseau, arquivista da causa da canonização do eremita, relata sobre a relação de fraternidade de Focauld com os muçulmanos: “Seu apostolado junto a eles é, em primeiro lugar, encontro de pessoas, nunca proselitismo. Ele procura 'contato', amizade, presença, bondade”, afirma em entrevista publicada por IHU.
Refletindo sobre os conflitos religiosos entre cristãos e muçulmanos, e anos antes dos documentos do Papa Francisco sobre a Fraternidade Universal, a declaração com o Grande Imã de Al-Azhar e a Fratelli Tutti, do Papa Francisco, o monge beneditino Michael Semeraro destacava que “Décadas depois da morte de Foucauld, esta mesma estrutura de pensamento e de ação se reproduz novamente em Tibhirine, nos monges trapistas assassinados em 1996, em Notre Dame de Atlas. E, no terceiro milênio, após o atentado contra as Torres Gêmeas e os ataques terroristas na Europa, a experiência de Charles, pode ajudar os cristãos 'a ler com uma visão de fé a presença dos ‘outros’, deslegitimando o que muitos consideram uma batalha contra a civilização islâmica'. O beato, hoje, oferece testemunho da plena adesão ao Evangelho em seu se expor unilateralmente, ou seja, sem reciprocidade, à relação fraterna com os muçulmanos”, em entrevista publicada pelo IHU.
Ícone de Charles de Foucauld. Crédito: Religión Digital
Ainda assim, há controvérsias sobre a posição de Foucauld para com os beduínos e sobretudo os tuaregues. Alguns historiadores apontam que tanto como militar, quanto eremita, Foucauld expressava-se de modo colonialista, e que algumas partes da sua história são "cinzentas", e não interessadas para o Vaticano..
Foucauld não deixou grandes obras teológicas, tampouco documentos de congregações ou tratados sobre a sua missão. Seu principal livro foi escrito antes da vida de ermitão, sobre a sua experiência no deserto marroquino, premiado em Sorbonne, mas de pouca relevância para o autor. Porém, seus escritos de vida religiosa continham uma mística profunda fundada nos 30 anos de Jesus em Nazaré, ainda que juntasse as contradições de sua vida.
Lucetta Scaraffia, em artigo publicado pelo IHU, resenha o livro "Esquecimento de Si", de Pablo D'Ors, sobre Foucauld, destacando como características do eremita a extravagância e o fracasso. Para ela “Charles de Foucauld fracassa como soldado, como explorador, como trapista... mas também como fundador de uma nova ordem de irmãozinhos e irmãzinhas que marcam o seu caminho. Mas é somente no fracasso que se pode pensar a imitação de Cristo, do messias que morreu na cruz como um malfeitor”
E o próprio Foucauld admite dos seus exageros, que o levaram a sair da vida militar e trapista, e arriscar tudo, ou nada, no deserto: “eu não me envergonho de ter exagerado, porque não concebo o amor sem exagero”.
Durante sua peregrinação à Terra Santa, escreveu agradecendo a Jesus pelos trinta anos em Nazaré, dos quais quase não há registro: “Desejo levar a vida que entrevi e percebi ao caminhar pelas ruas de Nazaré, onde Nosso Senhor, pobre artesão perdido na humildade e na obscuridade, pisou. [Jesus,] quão fértil em exemplo e lições é esta vida de Nazaré! Obrigado! Que bom foste ao nos ter dado esta instrução durante 30 anos!”.
Localização do eremitério em que Charles de Foucauld passou os últimos anos de sua vida (Assekren, Tamanrasset, Argélia, Deserto do Saara, África Setentrional). Fonte: Google Earth Pro. Animação: IHU
Em uma carta, escrita em 1905 para o abade Caron, reproduzida em português pelo IHU, Foucauld expressava sua inspiração na vida oculta de Jesus e o desejo de renunciar de si para a vida essa vida não escrita nos Evangelhos: “Três anos e meio atrás, eu me estabeleci aqui em Beni Abbès, no Saara argelino, justamente na fronteira com o Marrocos, tentando, muito miseravelmente, de modo muito morno, viver ali a vida abençoada de Nazaré; até agora, fui apenas: 'o grão de trigo que não morre, fica sozinho'. Reze a Jesus para que eu morra a tudo o que não é Ele e a Sua vontade. Um pequeno vale é a minha clausura de onde eu saio apenas quando um dever muito urgente de caridade me obriga a fazê-lo – na falta de outro sacerdote (o padre mais próximo está a 400 km ao norte) – para levar Jesus a algum lugar...”.
Dom Edson Damian, em entrevista ao IHU, destaca a Oração do Abandono como a principal expressão da mística foucauldiana: “Ela ocupa lugar central na espiritualidade foucauldiana. Expressa o grito de confiança, de esperança e de serenidade que acompanhou de Foucauld, sempre certo de que Deus 'é o Senhor do impossível'. A Oração do Abandono é um prolongamento da última oração de Jesus”.
Oração do Abandono, de Charles de Foucauld. Escrita enquanto esteve na Síria, 1890-1896.
Charles de Foucauld foi morto em 1º de dezembro de 1916, no seu eremitério, em Akrassen, Tamanrasset, Argélia. Seus restos mortais foram encontrados mais de um ano depois.
Desde 1927 está em curso um processo de canonização, interrompido pelas guerras e polêmicas. Em 2001, João Paulo II o proclamou venerável. Em 2005, Bento XVI o proclamou beato. E em 2021, Francisco o proclamará santo.