28 Abril 2021
Um olhar próximo sobre como o papa jesuíta está trabalhando em uma das questões mais sensíveis e controversas da Igreja Católica.
A reportagem é de Loup Besmond de Senneville, publicada por La Croix, 27-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Mais de um mês depois de o Vaticano publicar uma reiteração da proibição de bênçãos para casais homossexuais na Igreja, o debate sobre o tema não morreu.
A Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) publicou sua recusa em 15 de março, por meio de uma “nota explicativa”, ou “responsum”, para defender sua posição de que a Igreja Católica não tem o poder de abençoar relações homossexuais.
Mas mais que colocar um fim na discussão, a nota levantou protestos – inclusive de vários cardeais.
O que o Papa Francisco, o homem que em 2013 proferiu a famosa frase: “Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?”.
Estaria ele realmente distanciado da nota publicada pelos vigilantes da doutrina do Vaticano?
Parece que Francisco deu uma pista alguns dias depois.
“O Senhor, com sua graça, nos faz dar frutos, mesmo quando o solo está seco devido a mal-entendidos, dificuldades ou perseguições, ou reivindicações de legalismo ou moralismo clerical. Este é um solo estéril”, disse ele em 21 de março no Angelus dominical.
O papa se referia nessas duas linhas a CDF e sua nota explicativa?
La Croix conversou com várias pessoas que são próximas de Francisco. E eles alegaram que não há dúvidas sobre isso.
Um deles apontou para uma mensagem que o papa publicou em 23 de março, no 150º aniversário da proclamação de Santo Afonso de Ligório como doutor da Igreja.
Neste longo texto, ele pinta um retrato brilhante do bispo italiano do início do século XVIII e padroeiro dos confessores e... teólogos morais.
“A teologia moral não pode refletir apenas na formulação de princípios, de regras, mas precisa ser proativa diante da realidade que ultrapassa qualquer ideia”, insiste Francisco.
Podemos concluir disso que ele discorda do conteúdo da nota explicativa da CDF?
Uma coisa é certa: Francisco se encontrou com o prefeito da CDF, o cardeal Luis Ladaria.
O cardeal jesuíta espanhol apresentou ao papa a justificativa por trás da nota. E na própria nota afirmava claramente que Francisco “consentia” com sua publicação.
Fontes disseram ao La Croix que se o papa tinha quaisquer reservas, elas eram sobre a forma da publicação (como o texto simplesmente colocado no site do CDF sem qualquer lançamento formal para a imprensa) e a data em que foi lançado (apenas alguns dias antes do início do Ano da Família).
“Ele estava bem ciente da existência da nota, não há como negar”, disse um dos amigos de longa data do papa.
“Mas devemos ter em mente que a mensagem do Papa Francisco vai muito além do conteúdo desta nota. Ele oferece uma mensagem de abertura”, disse a pessoa.
Outro amigo foi ainda mais longe.
“A resposta da Congregação para a Doutrina da Fé não foi assinada nem aprovada pelo Papa”, disse a fonte, destacando que o Capítulo VIII da exortação Amoris Laetitia é intitulado “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”.
“Este capítulo não é válido apenas para divorciados que se casaram novamente, mas para todas as 'situações irregulares'”, argumentou este amigo próximo do papa.
Então, o que o papa realmente pensa sobre a homossexualidade?
A polêmica sobre a nota da Congregação para a Doutrina da Fé mostra que Francisco aborda o assunto em duas etapas: por um lado, para não mudar a doutrina; por outro lado, para acompanhar todos num caminho de misericórdia.
É o que explica um ex-secretário especial do Sínodo da Família.
“Desde o início de seu pontificado, o papa quis combinar misericórdia e doutrina”, explicou o arcebispo Bruno Forte de Chieti-Vasto, que foi secretário especial nas duas assembleias do Sínodo dos Bispos sobre a Família
Forte, que é considerado um dos teólogos mais formidáveis da Itália, disse que o papa jesuíta deseja manter unido “o acompanhamento das pessoas e a fidelidade à doutrina”.
“Superficialmente, algumas pessoas pensam que isso pode entrar em conflito”, admitiu o arcebispo.
“Na realidade, esta aliança entre a doutrina e a misericórdia é indispensável: a verdadeira criatividade de Francisco consiste em pedir à Igreja que pense sobre os dois aspectos”, afirmou.
“Se você não entende isso, não consegue entender o papa. Não há competição: a misericórdia é a implementação concreta da verdade”, insistiu Forte.
Desde o início de seu pontificado, Francisco mantém contato regular com pessoas e associações homossexuais.
“Sabemos que o papa tem amigos LGBT”, confirma James Martin.
O padre jesuíta dos Estados Unidos é autor de vários livros sobre a Igreja e a homossexualidade. E em 2019 ele se encontrou em particular com o papa, um encontro que o Vaticano estava ansioso para tornar público.
Francisco demonstrou essa “cultura do encontro” em particular com Andrea Rubera, um italiano gay. Ele e seu parceiro Dario tiveram três filhos de barriga de aluguel.
Rubera, que está ativamente envolvido em sua paróquia católica em Roma, escreveu ao papa em 2015 para expressar sua hesitação em matricular seus filhos no catecismo.
“Não sabia apresentar as coisas, tinha medo que a paróquia se recusasse”, explicou recentemente.
Dois dias depois de enviar aquela carta, seu telefone tocou. Do outro lado da linha estava o papa.
“Ele queria entender o problema. Depois me disse: ‘Vá à paróquia, se apresente a si mesmo e sua família, pergunte e verá que tudo ficará bem’”, lembrou das palavras do Papa.
E foi exatamente isso que ele fez.
Andrea não falou ao telefone com o Papa Francisco desde então. Mas esse chamado é revelador da maneira como este papa continua a agir em um nível pessoal, sem tocar na doutrina da Igreja.
“Isso responde a uma estratégia muito precisa: ele sabe que não pode mudar o dogma, então ele coloca o cuidado pastoral de fundo”, disse Rubera, que é porta-voz do Cammini di Speranza (Caminhos de Esperança), uma associação italiana para católicos homossexuais.
Iria o papa tão longe quanto abençoar uniões homossexuais? Não há nada que sugira isso até então.
Mas Rubera está confiante que esta série de encontros “quebrarão preconceitos” e “a longo prazo” levará a mudanças mais profundas.
“Essa questão da doutrina não deve ser absolutizada ou negligenciada”, alertou dom Forte.
Enquanto “o trabalho doutrinal” sobre o tema permanecer “necessário”, ele disse que o assunto levantará “diferentes interpretações” dentro da Igreja.
“O papa não está interessado na possibilidade de mudança da doutrina”, afirmou James Martin.
De fato, o tema da mudança da doutrina permanece extremamente sensível no Vaticano.
“Nos últimos dias, nós escutamos algumas vozes da África, que não estavam infelizes com esse texto”, disse um cardeal, referindo-se ao famoso “responsum” sobre a proibição das bênçãos a casais homossexuais.
Essas variadas reações recordam que os debates sobre homossexualidade não são limitados a discussões entre católicos da Europa Ocidental e os Estados Unidos.
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Homossexualidade: o que o Papa Francisco realmente pensa? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU