15 Abril 2021
Desde Platão, filosofia ocidental cultiva um binarismo, que originou as oposições simplificadoras de nosso tempo. Para superá-las, é útil recorer ao islâmico al-Suhrawardī, à heresia de Giordano Bruno e às cosmovisões ameríndias.
O artigo é de Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras, 14-04-2021.
A pergunta mais radical que podemos imaginar pode formular-se assim: por que é que existe o ser em vez do nada? Na filosofia ocidental esta pergunta foi feita por Leibniz na Teodiceia, mas está igualmente presente nas filosofias orientais, tanto na indiana como na chinesa. A radicalidade da pergunta reside em que, sendo aparentemente tão simples, não é possível dar-lhe resposta. Não me detenho nela, mas numa outra, do mesmo calibre, que se me afigura mais produtiva: por que é que existe a luz em vez das trevas? Pode pensar-se que esta pergunta é uma outra maneira de formular a anterior, já que as trevas, a escuridão, são o nada. Só não será assim para as pessoas cegas, para quem a escuridão é tudo, sendo a partir dela que constroem corajosamente a luz nas sua vidas. Mas mesmo para as pessoas que veem, o nada das trevas ou escuridão é um nada pleno de sentidos e conteúdos, que variaram ao longo da história e variam hoje segundo os contextos.
A escuridão tanto pode significar o medo de algo no escuro como o medo da escuridão. A escuridão tanto nos pode meter medo como nos pode proteger, tanto nos pode condenar como absolver. E, reciprocamente, o mesmo sucede com a luz ou a claridade. A divindade tanto pode ser a luz plena como a escuridão plena. A escuridão tanto pode ser o horror como o êxtase, tanto evoca a cegueira como evoca diversas visões. Em face desta diversidade e ambiguidade proponho-me analisar três contextos diferentes: o pensamento religioso e laico; o racismo, o sexismo e as geografias da luz e da escuridão; as novas escuridões e as novas cegueiras. Neste texto, analiso o primeiro contexto, deixando os restantes para próximo texto.
A oposição entre as trevas e a luz e o trânsito de uma para outra está presente em todo o pensamento antigo, laico ou religioso. Pode ler-se na Bíblia: “E disse Deus: ‘Haja luz’. E houve luz. Viu Deus que a luz era boa, e separou as trevas da luz; e à luz chamou dia, às trevas, noite. Assim se fez tarde e depois se fez manhã: o dia primeiro” (Génesis 1:3-5). E no Evangelho de São João escreve o apóstolo que Jesus de Nazaré proclamou: “Eu sou a luz do mundo. Quem me seguir não andará na escuridão mas terá a luz do mundo” (Jo. 8:12). No crepúsculo desta longa tradição, Martin Luther King Jr. exortava assim os seus contemporâneos: “Cada pessoa deve decidir se vai caminhar na luz do altruísmo criativo ou na escuridão do egoísmo destrutivo”. A verdadeira escuridão não era a da pele, mas a do racismo.
Na alegoria mais famosa da cultura ocidental, a Alegoria da Caverna, Platão, na República (514a-520a), imagina os humanos acorrentados no interior de uma caverna e virados para uma parede. No exterior há uma fogueira e entre ela e a entrada da caverna circulam pessoas com objetos. Os seres humanos presos na caverna não veem mais que as sombras dos objetos e tomam-nas por realidade. Um deles sai da caverna e, depois de se habituar à luz do sol, vê finalmente a verdadeira realidade dos objetos cujas sombras vira antes projetadas na parede da caverna. Regressa à caverna, conta o que viu, mas os seus companheiros não acreditam e ameaçam matá-lo. Com esta alegoria, Platão pretende mostrar a oposição entre as falsas crenças e o verdadeiro conhecimento. Nos séculos posteriores, esta alegoria e a metáfora da luz continuaram a ser usadas de múltiplas formas.
No pensamento oriental, chinês e indiano, as metáforas conceituais são distintas, mas a relação entre a luz e escuridão persiste. Confúcio (551 AC-479 AC) incita à boa conduta exortando os seguidores a acender uma vela em vez de insultar a escuridão, ao mesmo tempo que lhes assegura que nem toda a escuridão do mundo é capaz de apagar uma vela. Séculos mais tarde, um discípulo dele, o neoconfucionista Wang Yangming (1472-1529), considera que o conhecimento do sábio é como o sol num dia sem nuvens, o conhecimento da pessoa de bem, como o sol com algumas nuvens, e o conhecimento da pessoa estúpida, como o sol num dia escuro e triste. Para o Budismo a metáfora da luz e da iluminação é igualmente importante, mas a luz é aqui sobretudo a luz interior que torna possível o auto-conhecimento.
No pensamento e religião islâmicos, a conexão conceitual entre a luz e a iluminação como metáforas do aprofundamento espiritual está igualmente muito presente. Atribui-se ao Profeta Maomé o dito “o conhecimento é a luz”; e no Alcorão a luz da revelação é contrastada com a escuridão da falsidade. O Nicho das Luzes, de al-Ghazali (1056-1111), é o tratado mais conhecido sobre a metáfora da luz no Islã, mas al-Suhrawardī (1154-1191) é quem oferece a hermenêutica mais complexa da luz ao ponto de inspirar uma nova escola de pensamento, a Escola da Iluminação. O mais importante em al-Suhrawardī é o modo como supera as dicotomias da filosofia grega, incluindo a dicotomia entre luz e trevas, e as substitui por gradações entre os opostos; tal como os místicos e ascetas do Cristianismo do Oriente Médio nos primeiros séculos da cristandade, al-Suhrawardī vê a intensificação de luz como uma escada que progride de modo complexo do opaco e do crepuscular para o transparente e o solar. De faco, todo o pensamento místico, qualquer que seja a sua raiz filosófica ou religiosa, concebe a aproximação à divindade como a intensificação da luz.
No mundo europeu moderno, os processos de secularização trouxeram consigo para a epistemologia as imagens binárias da luz e das trevas. O conhecimento e a verdade passaram a ser a luz, a claridade, enquanto a ignorância e a falsidade passaram a ser as trevas, a escuridão. A máxima expressão desse transplante ocorreu, na cultural ocidental, com o Iluminismo do Século das Luzes. O nome diz tudo. E, como referi, no Budismo, o conceito de Iluminismo é igualmente central, mas a verdade a que aspira não é verdade sobre o mundo; é antes a verdade sobre cada um, o auto-conhecimento, em vez do conhecimento exterior.
Este esquemático percurso pretende mostrar que muitos dos binarismos que continuam a assombrar a vida contemporânea (homem/mulher, branco/negro, humanidade/natureza, razão/emoção, forma/conteúdo) têm uma longa tradição no binarismo claridade/escuridão. Daí a importância dos autores que, ao longo dos tempos, foram chamando a atenção para a complexidade, as misturas e as interpenetrações que tais oposições escondem. Já referi o filósofo islâmico al-Suhrawardī.
Na cultura ocidental a figura mais fascinante é Giordano Bruno. Entre a luz e as trevas, entre a claridade e a escuridão, Giordano Bruno (1548-1600) introduz uma mediação entre os opostos – a sombra. Contrariamente à tradição platónica, Bruno atribui um valor positivo à sombra, já que esta é a medida da verdade que é acessível aos humanos. Esta é para mim uma das novidades mais intrigantes e mais duradouras do pensamento renascentista ocidental, prova convincente de que é nos períodos inaugurais que a criatividade humana mais se afirma.
Bruno é uma figura fulgurante que pagou com a vida o seu fulgor. Foi excomungado tanto pela igreja católica como pelas igrejas protestantes, e queimado vivo pela Inquisição no Campo di Fiori em 1600. De Umbris Idearum (Da sombra das Ideias), publicado em 1582, é na aparência apenas um livro sobre técnicas de memorização (ars memoriae), pois os frades (tal como os imãs islâmicos) deviam memorizar os textos sagrados (recorrendo a mnemônicas) como parte da sua educação e da sua edificação religiosa. Mas, na verdade, o livro é muito mais que isso e contém toda uma teologia e uma filosofia, em parte, baseadas na nova ciência copernicana. Para Bruno, os humanos devem lutar contra as trevas em nome da luz, mas nunca alcançam a luz.
A luz é do reino de Deus. O reino dos seres humanos são as sombras, que Bruno designa por phantasmata. As sombras podem ser de diferentes tipos, mas é na sombra que estamos condenados a viver. A sombra é a metáfora dos limites do nosso conhecimento, um conhecimento finito num universo que Bruno considera ser infinito (a máxima heresia ao tempo), mas também é o único meio de obtermos uma imagem do que é a verdade divina. A luz é uma roupa que induz em erro, mas apenas porque a nudez da verdade nos está vedada. A luz não está ao nosso alcance, mas a sombra contém vestígios de luz (lucis vestigium). Para o argumento que aqui defendo, as trevas e a luz contribuem igualmente para a produção da sombra. Nenhuma é nada e as duas são tudo. Séculos mais tarde, Hegel diria que a verdade está no todo. Bruno foi considerado arrogante ao defender que se Deus é infinito e o mundo foi criado à Sua imagem, o mundo é igualmente infinito e cada átomo de vida, por mais ínfimo, tem uma dimensão espiritual, ou seja, alma. Para mim, Bruno é antes um apelo à humildade do humano.
Em todo este percurso, o entendimento do sentido da existência é contido na dicotomia claridade/escuridão ou luz/trevas. Ou seja, apenas um dos sentidos dos seres humanos é mobilizado – a visão. Não significará isto uma limitação auto-imposta? O que se perde nessa limitação? O que se ganharia em termos de compreensão do mundo e da sociedade se em vez de mobilizarmos apenas um dos sentidos mobilizássemos todos eles? Será possível submeter o monopólio da visão ao que designo por sociologia das ausências? O início de uma resposta pode encontrar-se, por exemplo, nas filosofias dos povos indígenas da América Latina.
O sábio indígena escuta a realidade (a terra, o céu, a paisagem) em vez de a ver apenas, sente-a, apalpa-a, toca-lhe, saboreia-a, em vez de simplesmente a observar. E se a observa, não o faz sem se sentir observado por aquilo que observa. É um sentirpensar que não reconhece a dicotomia sujeito/objeto e mobiliza todos os sentidos. Aponta para uma racionalidade mais ampla que não conhece sem ser conhecida, que é racional por ser também emocional e afetiva.
Em tempos de catástrofe ecológica e em que a recorrência das pandemias nos transmite mensagens inquietantes da natureza sobre a insustentabilidade dos modelos de produção e de consumo que dominam a vida contemporânea, as filosofias indígenas oferecem possibilidades de compreensão da realidade e de transformação social que vão muito para além das que a tradição predominantemente visual pode oferecer. Não se trata de substituir uma tradição por outra, trata-se antes de as integrar a todas num paradigma de filosofia intercultural.
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Boaventura: muito além de Luz e Trevas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU