15 Abril 2021
“Já estamos na fase em que não é possível silenciar as teses do decrescimento porque são uma realidade biofísica inegável em um planeta finito. Nada pode crescer para sempre. A questão não é outra senão se vamos desacelerar suavemente, e de forma planejada, ou se deixaremos o mercado fazer isso com a ‘eficiência’ habitual”, escreve Juan Bordera, ativista ambiental espanhol, em artigo publicado por El Salto, 10-04-2021. A tradução é do Cepat.
O mundo está perdendo o norte. Literalmente, quando olhamos para o Ártico ou para a desaceleração da corrente marinha mais importante do planeta. A globalização está mostrando suas carências e fragilidades. O fim da história que o capitalismo nos prometia não apenas não se cumpriu, como também o sistema econômico atual se confirmou como o predador mais eficiente da natureza, absolutamente incompatível com os limites do próprio planeta. As crises se sucedem e solapam: econômicas, sanitárias, e com o barulho de fundo da emergência ecológica, já audível e visível em qualquer parte. Esperamos que, apesar dos últimos relatórios, ao menos continue sendo reversível.
Diante deste panorama de loucura planetária, no qual a humanidade parece não saber para onde se dirigir, um jovem e prestigioso antropólogo propõe uma receita transformadora e apaixonante em seu último livro, que espero que seja lido por todos aqueles que ostentam cargos de poder em países e grandes empresas.
Sim, não seria o suficiente a elite política e empresarial entender o que esta obra conta - de fato, muitos deles devem estar mais do que bem informados -, é preciso que o conhecimento esmiuçado por Jason Hickel chegue a uma boa parte da sociedade, que deve almejar e exigir as mudanças propostas para que possam ser implementadas. Em um processo de retroalimentação positiva, seria crucial a aplicação, sem mais demora, das assembleias cidadãs com caráter vinculante, capazes de exercer uma pressão disruptiva no lento e atrofiado fluxo da política de partidos, cada vez mais ligada aos ditames dos mercados.
Voltando ao livro e a seu autor, a biografia de Hickel está cheia de particularidades e inclusive de simbolismos. Os pais deste doutor em Antropologia, membro da Royal Society of Arts, eram doutores em Suazilândia na pior época da AIDS. Lá nasceu e passou a sua infância. Assim como a humanidade, seu caminho começou na África, o que – junto com a sua especialização em economia – lhe permite ter uma visão muito detalhada da desigualdade, dos processos de colonização que ainda seguem vigentes através do sistema econômico, e como seria necessário desmontá-los.
Seu livro Less is More: How degrowth will save the world [Menos é mais: Como o decrescimento salvará o mundo] (Penguin Random House, 2020) – calma, felizmente, o pior é o título – é uma maravilha de pouco menos de 300 páginas, ainda sem tradução para o espanhol, nas quais com um inegável talento literário o autor repassa a história dos últimos seis séculos e como o capitalismo foi se sustentando sempre em busca de um “algo externo” que o permitisse seguir a sua expansão e acumulação.
Os cercamentos de terras e a expropriação original dos bens comunais, a escravidão em massa, o imperialismo e o colonialismo, simplesmente foram as formas de prosseguir com a inércia. O diabólico ritmo de Juggernaut, que agora chegou ao final de uma encruzilhada: ou se segue colocando todos os ecossistemas em perigo de mutação irreversível, e comprometendo até a própria vida da forma como a conhecemos, ou se freia o crescimento. Não há mais caminhos. There Is No Alternative.
Aqueles que ainda pretendem ver um caminho mágico de crescimento verde sustentável precisam de novos óculos. Ou talvez o caminho verde ao qual se referem seja aquele pavimentado pelas notas que seguirão crescendo em seus bolsos, enquanto disserem o que se espera que digam para manter sua posição dentro de um sistema que agoniza.
Além disso, o autor rebate com clareza absoluta o habitual discurso de “o progresso” e de “melhoras na qualidade de vida”, que não se sustentam mais de lado algum. Ao menos não em relação ao capitalismo. Durante os primeiros 400 anos, não provocou nada majoritariamente a não ser o genocídio, escravização em massa, colonização e desigualdade crescente. Só a partir de 1870 começou a se notar melhoras na expectativa de vida na Europa, produto do movimento operário, das lutas democráticas e da volta dos “comuns”, com a emergência dos bens públicos como a saúde, a moradia e a assistência.
Este processo revela a importância para o verdadeiro progresso, não tanto do crescimento, mas da distribuição justa das oportunidades e os recursos. E aí está a chave da receita que o livro nos transmite: a redistribuição dos bens públicos e comuns, como a única maneira de evitar o descalabro ecológico, sem perder em excesso qualidade de vida. Isso é decrescimento, crescer em qualidade de vida e oportunidades para evitar um futuro que, caso siga a inércia atual, será uma distopia para a maioria.
A única grande crítica que faria ao autor é em relação ao aspecto energético, no qual apenas entra. Provavelmente, conhecedor da complexidade do assunto, resolve a questão especificando que uma queda no consumo energético tornará mais fácil a transição energética inescapável. Mas não fica claro como se dará isso em mundo no qual a escassez é e será mais real do que provavelmente quer reconhecer. É um manual que não é para especialistas, é para todos.
Talvez essa estratégia não seja ruim para que ao menos a proposta decrescentista rompa a barreira do gueto intelectual e ativista na qual segue comprimida. E para o tema energético simplesmente é melhor buscar outras fontes. No entanto, sua receita econômica é promissora e muito detalhada. Definitivamente, encerrando o debate sobre se o decrescimento tem um programa concreto. Se não tinha, agora tem.
A outra grande crítica que costuma ser feita às teses decrescentistas é o ridículo de associá-las a um retrocesso brutal que se resolve com a típica expressão: “você propõe voltar às cavernas”. Como li na maravilhosa – e antropóloga também – Yayo Herrero, recentemente: “Se existe algo que propõe voltar às cavernas – ou aos bunkers – é o capitalismo marciano representado por Elon Musk e seu séquito de crentes na Igreja do Perpétuo Crescimento, que em busca do enésimo algo externo acreditam que em Marte, sim, poderemos conseguir a sobrevivência dos mais aptos - no capitalismo, quer dizer, os mais ricos -, mesmo que seja voltando às cavernas, nesse momento, do planeta vermelho”.
Nestas abordagens, entre outros muitos erros em massa, fracassa a compreensão histórica que Hickel revela. O capitalismo não é tanto o problema, mas o sintoma dos verdadeiros problemas: a falta de mentalidade de espécie, de respeito e conhecimento da interdependência com os ecossistemas, de capacidade de autolimitação. Problemas que o capitalismo compartilhou com a maioria dos projetos socialistas, baseados nas receitas do dualismo, mecanicismo e modernidade, verdadeiros fundamentos do Antropoceno.
Victor Hugo dizia que não existe ideia mais perigosa do que aquela cujo momento chegou. O decrescimento não é tanto viver com menos, mas sobretudo repartir melhor. Macron, o presidente da terra que viu nascer estas ideias, ao menos já falou explicitamente aos “decrescentistas” em recente coletiva de imprensa. Já sabem: primeiro eles te ignoram, depois riem de você, depois te atacam, e então...?
Então, já estamos na fase em que não é possível silenciar as teses do decrescimento porque são uma realidade biofísica inegável em um planeta finito. Nada pode crescer para sempre. A questão não é outra senão se vamos desacelerar suavemente, e de forma planejada, ou se deixaremos o mercado fazer isso com a “eficiência” habitual.
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Menos é mais ou como sair do capitalismo sem entrar em colapso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU