29 Março 2021
Sobrevivência, sacrifício do prazer e perda do sentido da boa vida. Assim é o mundo que o filósofo Byung-Chul Han vaticina, após a pandemia: “Sobreviver se tornará algo absoluto, como se estivéssemos em um estado de guerra permanente”.
A reportagem é de Belen Filgueira, publicada por Infobae, 23-03-2021. A tradução é do Cepat.
Han pertence ao grupo de filósofos famosos. Com poucas frases, o pensador de origem sul-coreana é capaz de inquietar os cidadãos e levar seus alunos ao desespero, apresentando-lhes um panorama social muito inquietante. Daí talvez o crescente número de seus leitores.
Nascido em Seul, em 1959, Han estudou Filosofia, Literatura e Teologia na Alemanha, onde reside, e agora é uma das mentes mais inovadoras na crítica à sociedade atual. Conforme descreve em uma entrevista à agência EFE, nossa vida está impregnada de hipertransparência e hiperconsumismo, de um excesso de informação e de uma positividade que conduz de forma inevitável à sociedade do cansaço.
“O vírus SARS-CoV-2 é um espelho que reflete as crises de nossa sociedade. Faz com que se acentuem ainda com mais força os sintomas das doenças que nossa sociedade sofria já antes da pandemia. Um destes sintomas é o cansaço. De um modo ou de outro, todos nós nos sentimos hoje muito cansados e extenuados. Trata-se de um cansaço fundamental, que permanentemente e em todas as partes acompanha nossa vida como se fosse nossa própria sombra. Não é a ociosidade, mas o cansaço que impera em tempos de pandemia”, afirmou o filósofo asiático em um breve ensaio que publicou no domingo [21/03], no jornal espanhol El País.
Em seu ensaio A sociedade do cansaço, publicado pela primeira vez há 10 anos, Han descreve o cansaço como uma doença da sociedade neoliberal do rendimento. “Nós nos exploramos voluntariamente e apaixonadamente acreditando que estamos nos realizando. O que nos esgota não é uma coerção externa, mas o imperativo interior de ter que render cada vez mais. Nós nos matamos para nos realizar e otimizar, nos esmagamos para render bem e oferecer uma boa imagem”, sustenta.
Trata-se da história do mundo atual que produz seres com cansaço infinito, seres que funcionam como máquinas sem sequer questionar as razões de sua entrega vital a essa sociedade que só prioriza o rendimento. Daí a quantidade de doenças “neuronais”.
A um ano do surgimento do novo coronavírus, o mundo está à beira de outras crises de saúde: o trauma psicológico generalizado que a pandemia provocou. As agências de saúde e os especialistas alertam que se aproxima uma onda histórica de problemas de saúde mental: depressão, abuso de substâncias, transtorno de estresse pós-traumático e suicídio. Quando as doenças atacam, dizem os especialistas, projetam uma pandemia de lesões psicológicas e sociais. Esta “sombra” muitas vezes é persistente à pandemia pelo vírus e continua atacando por semanas, meses e inclusive anos. E recebe pouca atenção em comparação com a doença, apesar de também devastar famílias, prejudicar e matar.
Os coreanos chamam de “corona blues” o estado depressivo que foi se propagando durante a pandemia. Durante a quarentena, sem contato social, acentua-se a depressão, que é a autêntica pandemia do presente. A sociedade do cansaço começa com o seguinte diagnóstico: “O início do século XXI, de um ponto de vista patológico, não seria bacteriano, nem viral, mas neuronal. As doenças neuronais como a depressão, o transtorno por déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), o transtorno de personalidade limítrofe (TPL) e a síndrome de desgaste profissional definem o panorama patológico de inícios deste século”.
Han explica que cada época tem uma doença que vai nos minando. Nesta, a doença provém do interior, é neuronal e se manifesta através do estresse, a depressão, a histeria e a síndrome de burnout, que levam o indivíduo moderno a um colapso, geralmente produzido pela entrega totalitária de sua vida ao trabalho. “O que caracteriza o sujeito desta sociedade, que ao se ver forçado a render explora a si mesmo, é a sensação de liberdade. Explorar a si mesmo é mais eficaz do que ser explorado por outros, porque traz a sensação de liberdade”, disse.
O pensador coreano expressa sua preocupação de que o coronavírus estabeleça regimes de vigilância e quarentenas biopolíticas, perda de liberdade, fim da boa vida ou uma falta de humanidade gerada pela histeria e o medo coletivo. “A morte não é democrática”, alerta o pensador. A Covid-19 deixou latentes as diferenças sociais, bem como que “o princípio da globalização é maximizar os lucros” e que “o capital é inimigo do ser humano”. Em sua avaliação, “isso custou muitas vidas na Europa e nos Estados Unidos”, em plena pandemia.
“Byung-Chul Han descreve a sociedade neoliberal do Ocidente. O filósofo aponta alguns aspectos que evidenciam questões do presente e do futuro da humanidade. Por um lado, que a pandemia não é algo isolado e produto do destino, mas é consequência de um desenvolvimento desigual que está tomando conta do planeta com uma acumulação de riqueza e, por outro, que uma grande parte da sociedade vive uma deterioração e limitação dos poderes aquisitivos e uma qualidade de vida muito ruim que convida a pensar não só no encurtamento da sobrevida, mas na possibilidade de que existam tais tipos de epidemias com maior frequência”, apontou em diálogo com este meio de comunicação o psiquiatra Guillermo Bruschtein, integrante da Comissão Diretora da Associação Psicanalítica Argentina.
Bruschtein destaca que “como neste presente esta pandemia é desigual, não considera por igual todos os setores das populações e evidencia a dificuldade que significa para o sistema poder enfrentá-la”. “Han faz uma análise do futuro e é pessimista. Diz que se não houver algo que mude, tais situações irão se acentuar, independente de que as coisas possam ser resolvidas de uma maneira relativamente favorável. Para ele, é provável que tais situações catastróficas voltem a se repetir”, acrescentou o especialista.
“O corona blues se define como a sensação generalizada de perda. A perda do tempo, de projetos, de estados aguardados e de representações da vida. Isto descreve um estado de aprofundamento do blues, que nada mais é do que aquilo que nós, psicanalistas, estamos pesquisando e trabalhando, há quase um século, em termos da melancolia, que agora ganha novo sentido à luz desta situação pandêmica, que oferece novos elementos para que o sujeito volte a sentir essa hemorragia interna pela qual seu próprio eu escorre e a vida começa a carecer de sentidos”, manifestou o psicólogo Jorge Catelli, membro da mesma associação.
No entanto, para Catelli “é muito importante ressaltar que não é qualquer estrutura subjetiva e nem qualquer tipo de personalidade que está ligada do mesmo modo ao desenvolvimento desta situação melancólica”. “É necessário possuir algumas características subjetivas para que isto possa se dar deste modo na singularidade dos sujeitos”, explicou. E acrescentou: “Mais do que um espelho, a Covid-19 traz uma metáfora do impacto de nosso tempo diante da posição maníaca do sujeito bem-sucedido e do desempenho esperado por nossas sociedades. A doença veio denunciar, de modo flagrante, a fragilidade, a vulnerabilidade e a insignificância do ser humano. Isso coloca em jogo o questionamento do sentido. Talvez, esse seja um horizonte possível para apostar em uma pergunta que os sujeitos se façam para recalcular suas vidas”.
Um dos maiores medos de Han é o que a sociedade passe de uma sociedade com cansaço crônico para uma sociedade de dopagem, em que o ser humano se torne uma simples máquina de rendimento ajudada pelos novos fármacos, suplementos alimentares e outros produtos que servem para “aumentar o desempenho”. Ao contrário, o especialista estimula seus leitores a repensar o seu cansaço e em vez de vê-lo como consequência do dia pesado de trabalho, que aproveite a questão como uma forma de autorreflexão, um momento de quietude e deter os paradigmas sociais desta voragem dos viciados em trabalho.
“O vírus SARS-CoV-2 sobrecarrega nossa sociedade do cansaço, radicalizando suas distorções patológicas. Mergulha-nos em um esgotamento coletivo e, por isso, também poderia ser chamado de vírus do cansaço. O vírus é, além disso, uma crise no sentido etimológico de krisis, que significa ponto de inflexão. Ao nos fazer um urgente chamado à mudança de nossa forma de vida, também pode causar a reversão desta precariedade. Só poderemos chegar a isso se submetermos nossa sociedade a uma revisão radical, se conseguirmos encontrar uma nova forma de vida que nos torne imunes ao vírus do cansaço”, concluiu o especialista em diálogo com o jornal espanhol.
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O que é o ‘corona blues’ e como afeta a saúde mental da população, segundo Byung-Chul Han - Instituto Humanitas Unisinos - IHU