25 Março 2021
O pós-humano é uma condição própria do ser humano, uma entidade que, desde as primeiras expressões, fizeram da hibridação uma das expressões mais típicas da própria natureza. Podemos, portanto, afirmar que sempre fomos pós-humanos.
A reflexão é de Roberto Marchesini, filósofo e etologista italiano, fundador da zooantropologia e diretor do Centro de Estudos de Filosofia Pós-humanista, em Bolonha, na Itália.
O artigo foi enviado pelo próprio autor ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 22-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De acordo com o pensamento pós-humanista, a espécie humana apresenta características inatas – entendidas como tendências motivacionais, características cognitivas, dimensão de umwelt, gamas de possíveis resultados ontogenéticos – assim como todas as outras espécies. Estas são o fruto do percurso filogenético, ou seja, das pressões seletivas e da linhagem particular de derivação, da espécie Homo sapiens.
Por isso, devemos falar de uma natureza humana que representa tanto as condições de partida do indivíduo, quanto o perímetro do campo de desenvolvimento possível para o ser humano. Ao contrário do trans-humanismo, para a perspectiva pós-humanista não existe uma total liquidez da condição humana, mas apenas uma relevante plasticidade, atribuível ao excesso somático, por exemplo o grande número de neurônios e a flexibilidade da conformação pratognósica, e não a uma suposta incompletude.
Esse excesso permite uma multiplicidade de direções ontogenéticas, ou seja, de conjugações individuais e culturais, em virtude das condições particulares que o ser humano pode encontrar, permanecendo, contudo, dentro de uma dimensão não ultrapassável. Isto é, não podemos nos transformar em qualquer entidade, mas assumir formas que, embora plurais, sejam compatíveis com uma certa dimensão.
O ser humano, portanto, tem uma condição somática e cognitiva própria que não pode ser ignorada ou transcendida, pois representa a base que permite realizar todas as multiformes expressões do humano. Além disso, trata-se de uma natureza nada imperfeita ou incompleta, em relação à dimensão existencial que nos permite, sendo o ser humano fruto de um longo percurso de evolução adaptativa.
Indubitavelmente, existem inúmeras partilhas entre o humano e as outras espécies – quando falamos de mamíferos e sobretudo de primatas – já que somos o fruto de um percurso que, na maior parte do trajeto, foi percorrido dentro de um curso predicativo não humano. No pensamento darwiniano, cada espécie não é a expressão de uma essência, mas o resultado da herança de progenitores comuns. Assim, deduzimos que a maioria dos predicados humanos surgiram antes do aparecimento do Homo sapiens e são compartilhados com outras espécies (homologias). Os animais não nos são estranhos.
No entanto, não podemos ignorar as especificidades da natureza humana, que está longe de ser caracterizada pela carência, quando nos engajamos apenas com uma descrição objetiva dos traços. No ser humano, temos por exemplo:
i) a diferença entre extremidades anteriores e posteriores, com a constituição do pé;
ii) o posicionamento do osso occipital no centro que permite uma posição ereta;
iii) a transformação do fêmur que se alonga em relação ao úmero, com o desenvolvimento do tubérculo femoral que facilita o bipedismo mesmo em velocidade;
iv) o parto prematuro que permite quadruplicar o tamanho do crânio após o nascimento;
v) a transformação da curvatura da coluna vertebral com cifose torácica e lordose lombar;
vi) toda a bacia é remodelada e, em particular, as asas do íleo se expandem para cima e para trás, permitindo o desenvolvimento de poderosos músculos glúteos;
vii) a transformação da dentição com redução do esplancnocrânio e dos músculos masseteres e redefinição do crânio;
viii) o grande desenvolvimento de todo o neurocrânio, levando-o a uma capacidade três vezes superior em comparação à dos chimpanzés e gorilas;
ix) a falta do cio manifesto;
x) a remodelação do seio e o engrossamento do pênis;
xi) o abaixamento da laringe que amplifica o número de vocalizações;
xii) uma particular coordenação óculo-manual que facilita as práxis.
Essas particularidades não devem ser esquecidas e nos falam de um lugar preciso do ser humano dentro da biosfera e, ao mesmo tempo, de uma relação de dependência dos equilíbrios ecológicos existentes, que nos leva a solicitar uma maior atenção às grandes emergências ambientais existentes.
Sob essa ótica, o ser humano não é uma entidade desligada do rio da vida, porque se reconhece no pertencimento e na partilha, encontra-se em uma dimensão que está em sintonia com a biosfera inteira. Trata-se de uma transformação que nos pede para rever a tradicional concepção ética baseada exclusivamente nos limites da conduta, para abraçar uma ética das virtudes e da empatia, em que o componente do sentimento e da moralidade ampliada deve encontrar um espaço muito mais relevante. A relação com a téchne também se modifica em conjunto, com a queda da visão exonerativa que se baseava no pressuposto da incompletude e da prevalência prometeica do humano.
O ser humano não é uma entidade incompleta ou privada de especializações adaptativas: é suficiente uma análise descritiva do corpo humano para demonstrar exatamente o contrário. Considerar o ser humano como o resultado de uma história de especialização significa tirar dele aquela dimensionalidade líquida que teve tanto sucesso no imaginário trans-humanista. O nosso modo de interfacear com a realidade, portanto, tem uma peculiaridade própria que não pode ser apagada com um golpe de esponja com a mera afixação de um instrumento.
Retomando, pelo contrário, o conceito de umwelt, poderíamos dizer que o mundo, tal como nos aparece, é antes o fruto emergente da organização de um nível preciso de realidade. Este pode ser transformado, por meio de processos de acomodação, por exemplo através de instrumentos que modificam a resolução visual como o microscópio eletrônico, mas nunca totalmente revolucionado, porque todo enxerto tecnológico, em todo o caso, deve se apoiar na condição epistêmica existente. Por isso, é preciso ter uma maior moderação ao se fazer prognósticos sobre a reconfiguração da condição humana.
Por outro lado, precisamente algumas disposições da espécie específicas do Homo sapiens – como a plasticidade do conectoma neuronal, a imaturidade neonatal, a dimensão social particular – permitiram ao ser humano ir além da própria herança natural, ou seja, ultrapassar-se, assumindo novas dimensões existenciais tecnomediadas. A presença de algumas motivações de alto valor copulativo e introjetivo – como a tendência a imitar aquilo que vê na natureza, a adotar filhotes de outras espécies, a coletar e catalogar aquilo que encontra – também lhe permitiram relações muito estreitas com o mundo animal, assumindo alguns estilos destes e importando-os para dentro do seu próprio patrimônio cultural.
Esses desempenhos encontraram um terreno fértil na mente humana, tornando-se entidades metaestáveis, ou seja, capazes de assumir uma autonomia evolutiva própria em relação ao demonstrador animal. Falamos de uma epifania animal, em que observar o voo dos pássaros não só ensina a voar, mas, antes ainda, “que se pode voar”, abrindo ao ser humano a condição de copula mundi.
Uma das características mais relevantes da condição humana é a sua natureza desejante, uma tensão que alimenta a engenhosidade e o imaginário e que, no entanto, deve ser redefinida em relação à leitura tradicional que dela se faz. A condição desejante não deve ser entendida como uma falta que busca um processo de apropriação, mas como uma propensão proativa e copulativa em relação ao mundo.
Em outras palavras, o desejante é a vontade de se expressar através das obras, de se dedicar a uma atividade, de se dedicar a um empreendimento, de se envolver em uma ação, de se doar à vida ativa. Infelizmente, uma leitura consumista do desejo nos enganou, induzindo-nos a crer que o desejo encontraria uma satisfação na apropriação, quando, ao contrário, ele se nutre pela dedicação e pela vocação.
A natureza humana, portanto, tem dentro de si as condições para germinar as obras mais edificantes e igualmente satisfatórias, assim como, infelizmente, pode correr o risco de se extraviar por meio de desvios das suas próprias tendências.
O principal erro, na minha opinião, é sempre o de subestimar, em qualquer um dos sentidos, as potencialidades da natureza humana, nada ancestrais ou larvais. A tendência tecnopoiética, ou seja, de construção de aparatos mediativos e performativos, bem como a mais genericamente cultural, representa uma das formas que caracterizam a natureza humana. Se levarmos em consideração os achados paleoantropológicos, descobrimos algumas propensões, já presentes, aliás, no primo chimpanzé – como a utilização de pedras para extrair o conteúdo das frutas secas ou o uso de gravetos para capturar larvas – que, no entanto, encontram no arbusto dos hominídeos uma enfatização.
A vida na savana, que favoreceu a evolução do bipedismo, libertando as mãos da locomoção e criando uma relação estreita com o fogo, também fortaleceu na nossa espécie o hábito de se munir de instrumentos para desenvolver novas funções. A utilização dos instrumentos e a tendência mimética deram origem a processos hibridativos que estão na base da condição humana.
Em última análise, podemos dizer que:
i) não é possível compreender os predicados humanos, prescindindo das suas características somáticas;
ii) igualmente, não se pode fazer isso referindo-se exclusivamente à natureza humana.
O conceito de téchne sofre uma mudança interpretativa radical na visão pós-humanista – em comparação com a narrativa tradicional baseada na relação entre Epimeteu, dispensador de qualidades aos animais, e Prometeu, trickster responsável pela hybris humana – porque, na filosofia pós-humanista, ele está centrado em uma concepção relacional com o corpo e, portanto: não compensatória, mas hibridativa. Superando a visão tradicional do humanismo, baseada no princípio de exoneração e de compensação, ou seja, de téchne como muleta para uma incompletude biológica do ser humano, a leitura da tecnopoiese sofre uma torção de 360 graus, porque a percepção de carência é considerada não a causa da produção técnico-tecnológica, mas a sua consequência.
Em outras palavras, através da tecnopoiese, o ser humano se torna carente, ou seja, constrói parcerias performativas que ultrapassam as potencialidades do seu corpo, tornando-se dependente delas.
Estamos falando, portanto, de uma techno-addiction que repercute não apenas nos aspectos de desempenho, mas também se reflete na dimensão da participação social e da adaptação à reconfiguração da ecumene que as tecnologias aparelham e, por isso, na adaptação individual. Além disso, a presença de intermediários técnico-tecnológicos tem uma recaída sobre os processos ontogenéticos, uma vez que esses instrumentos são os elementos de direção evolutiva mais importantes que o sujeito tem desde a mais tenra idade.
A influência diz respeito à maioria dos aparatos que sofrem, em seu interior, um crescimento diferencial dos predicados funcionais e uma reorganização instruída pelo parceiro tecnológico. Por essa razão, podemos dizer: não é a técnica que se adapta ao corpo – concepção ergonômica tradicional – mas é o corpo que se adapta à técnica, sendo, de fato, muito mais plástico e maleável do que ela.
Também não devemos esquecer que a tecnosfera, há mais de 100 mil anos, é o nicho evolutivo do ser humano, razão pela qual podemos falar também de efeitos de modificação filogenética sobre as populações por efeito do deslizamento sobre as pressões seletivas e de outros efeitos, atribuíveis à fitness diferente dos fenótipos, ontogeneticamente suscetíveis à influência tecnomediada.
De acordo com a filosofia pós-humanista, a téchne, portanto, não tem uma função ancilar, isto é, simplesmente a serviço do ser humano, mas representa um parceiro ecológico na história da humanidade, com a qual a nossa espécie estabeleceu uma relação coevolutiva que a torna uma espécie de canteiro de obras aberto, ou seja, em devir.
Não devendo se atribuir a uma função compensatória, a tecnopoiese não segue os moldes da incompletude humana, mas emerge por meio de processos imprevisíveis, como um evento criativo. Em consonância com isso, enquanto uma suposta trajetória compensatória deveria desacelerar, em virtude das progressivas compensações feitas, em uma leitura expositiva, como justamente a pós-humanista, a tecnopoiese tem um andamento acelerado, com base nas progressivas dependências que produz, favorecendo processos antropodescentrados. Isso é facilmente observável se levarmos em consideração o desenvolvimento de progressão exponencial que o desenvolvimento tecnológico teve nos últimos cinco mil anos de história da humanidade. Cada evolução tecnológica acresce ainda mais progressos.
Além disso, em uma visão pós-humanista, a téchne nunca fica fora do corpo, mas é sempre infiltrativa, razão pela qual podemos dizer que a condição de ciborgue é aquela própria de cada ser humano. Por outro lado, o ciborgue não apenas potencializou os seus predicados funcionais ou performativos, mas os mudou, ou seja, entrou em uma nova dimensão existencial. Falamos de “hibridação ontopoiética” para nos referirmos a um processo evidentemente diferente do generativo que ocorre quando um sujeito de uma certa espécie se acopla com um de outra espécie. A hibridação ontopoética é a transformação ontológica que o ser humano recebe com base em um enxerto que não faz parte da sua própria herança filogenética, ou seja, da natureza humana, mas que tem um impacto sobre ela.
As hibridações ontopoéticas podem ocorrer de modos diferentes, tais como:
i) a construção de uma parceria colaborativa com outra espécie, por exemplo com o cachorro ou o cavalo;
ii) a epifania animal, quando o ser humano acessa uma dimensão existencial diferente com base em uma inspiração oferecida por outro ser vivo;
iii) o advento de um conhecimento particular que modifica o plano epistêmico;
iv) o advento de uma nova técnica ou de uma tecnologia que modifica o plano investigativo e operacional do ser humano.
A hibridação ontopoiética não se limita à transformação extensiva-amputativa – aquela evidenciada por Marshall McLuhan, por mais importante que tenha sido essa observação – porque não age apenas de modo quantitativo, potencializando um desempenho e diminuindo as capacidades somáticas por déficit de exercício, mas modifica o painel de desempenho e o plano de interseção humana.
Por isso, uma tecnologia não pode ser considerada uma simples extensora ou potencializadora de qualidades humanas que permanecem inalteradas, porque a téchne opera como um vírus, isto é, entra no soma como em uma célula e o reorganiza em um plano ontológico diferente.
O encontro com o não humano, seja ele hibridação com outra espécie, aspecto que caracteriza grande parte da cultura humana, em termos de parceria ou de epifania, dando origem a um teriomorfismo, seja, vice-versa, com uma técnica ou tecnologia, dando origem a um tecnomorfismo, é um processo que nunca permanece externo ou de natureza potenciativa, mas é sempre infiltrativo e metamórfico.
A visão extensiva, atribuível à leitura da tecnologia como instrumento ou meio que fica do lado de fora – não necessariamente do corpo, mas da ontologia – ainda está em continuidade com aquela tradição que é incapaz de pôr no centro a relação na existencialidade.
É isso que a filosofia pós-humanista põe em discussão, ao considerar a téchne ou a alteridade animal como um evento relacional capaz de fazer emergir novas dimensões existenciais, não em contradição, mas em consonância com a natureza humana.
Enquanto o humanismo, mesmo na utilização da tecnologia e muitas vezes precisamente por meio delas, persegue mitopoieses de purificação da essência humana, que busca processos de disjunção e de verticalização em relação ao telúrico, isto é, de elevação, a filosofia pós-humanista fala de ritos de contaminação que tornam o ser humano cada vez mais mestiçado e ampliado com o mundo, em um processo de horizontalização.
A hibridação ontopoietica, então, leva em consideração todos os efeitos que a relação com a téchne produziu na história da humanidade, dando uma conotação precisa ao termo pós-humano, não mais como condição futura, mas como condição própria do ser humano, uma entidade que, desde as primeiras expressões, fizeram da hibridação uma das expressões mais típicas da própria natureza. Podemos, portanto, afirmar que sempre fomos pós-humanos.
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“Sempre fomos pós-humanos”: filosofia pós-humanista e natureza humana. Artigo de Roberto Marchesini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU