"Uma eleição plebiscitária de 'sim' ou 'não' nunca é boa para a democracia, sobretudo num sistema eleitoral de dois turnos", diz o sociólogo
Se as apostas iniciais se confirmarem e Lula e Bolsonaro forem candidatos em 2022, a disputa pela presidência da República será marcada por duas "candidaturas muito fortes", que, consequentemente, excluirão as alternativas entre o petismo e o bolsonarismo, diz Paulo Baía em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. “Nunca julgo como boa uma eleição nesse cenário. Entretanto, essa situação não é tão diferente das eleições anteriores a 2018", recorda.
Ao contrário das análises que constatam que “Bolsonaro está derretendo e desidratando”, Baía adverte que o presidente é o “favorito hoje, independentemente da campanha eleitoral” e da sua gestão da crise pandêmica. “50% dos entrevistados são contra o impeachment do presidente e estão a favor de Bolsonaro. Então, mesmo aqueles que são contra a maneira como Bolsonaro lida com a pandemia, com as mortes, ainda assim votarão nele. Eles criticam as ações sanitárias e de saúde do presidente, mas não deixarão de votar nele, sobretudo porque esses segmentos têm uma vinculação afetiva muito grande com o antipetismo”, ressalta.
A novidade na cena política, destaca, é a possível candidatura do ex-presidente Lula, o “único nome que surgiu com peso nos últimos tempos para enfrentar Jair Bolsonaro”. Na avaliação de Baía, em seu primeiro pronunciamento depois da decisão do ministro Luiz Edson Fachin “Lula demonstrou que pode fazer uma ampla aliança de governo, com os neoliberais, os conservadores e até com os fundamentalistas religiosos, que estiveram no seu governo, e os reformistas políticos clássicos, os sociais-democratas”. Ao contrário das posições defendidas e articuladas pelos diversos segmentos de esquerda até então, afirma, “Lula não fala em uma frente de esquerda; ele quer uma frente bem ampla, a mais ampla possível, tendo como foco a extrema direita personalizada por Bolsonaro. Quem vier, será bem-vindo. Nesse sentido, como Lula é um candidato muito forte, ele tem capacidade de neutralizar a formação de uma frente exclusiva de esquerda. Assim, a capacidade de fazer uma frente de esquerda desaparece”. E acrescenta: “Lula e Dilma foram eleitos com votos muito além dos eleitores do PT. É exatamente esta composição que Lula quer: a possibilidade de reconquistar o eleitor que foi para Jair Bolsonaro”.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, Paulo Baía também especula as rearticulações políticas daqui para frente e qual será a pauta da próxima disputa presidencial. Temas como combate à corrupção, racismo ou mesmo a crise sanitária, afirma, possivelmente não serão centrais. “Talvez a questão do emprego e renda e de uma renda mínima sejam fatores mais aglutinadores. Além disso, essa renda mínima precisa ser entendida de maneira mais ampla, não apenas direcionada a pessoas pobres e miseráveis, mas também abarcando um processo de apoio a micro e pequenos empresários, assim como algum tipo de salvaguarda para os setores produtivos agrícola, de serviços e industrial”, pontua.
Paulo Baía (Foto: Fundação Ulysses Guimarães)
Paulo Baía é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense - UFF, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ e pós-doutor em História Social pelo PPGHIS/UFF. Atualmente é professor do Departamento de Sociologia da UFRJ.
IHU On-Line - Na sua avaliação, hoje o cenário eleitoral para a disputa de 2022 está dado entre Lula e Bolsonaro e “as outras candidaturas, se vierem a existir, serão para marcar posição ou folclóricas”. Quais os ganhos e perdas, para o Brasil, de uma disputa entre Lula e Bolsonaro?
Paulo Baía – Uma eleição plebiscitária de “sim” ou “não” nunca é boa para a democracia, sobretudo num sistema eleitoral de dois turnos. Duas candidaturas muito fortes, uma de Lula e outra de Jair Bolsonaro – que mesmo com a crise da pandemia tem bons índices de aprovação, como mostra a Pesquisa DataFolha de quarta-feira [17-03-2021] –, fazem com que a discussão, mesmo no primeiro turno, se afunile para Lula ou para Bolsonaro, fazendo com que as alternativas não existam. Nunca julgo como boa uma eleição nesse cenário.
Entretanto, essa situação não é tão diferente das eleições anteriores a 2018. Situações similares ocorreram em 2002, 2006, 2010 e 2014, só que os polos eram diferentes: um polo era representado pelo PT, com Lula e depois com Dilma, e o outro, pelo PSDB, com José Serra e Geraldo Alckmin. Esse foi o cenário de bipolarização entre PT e PSDB. Isso desapareceu em 2018, quando não tivemos, no primeiro turno, uma clara posição de antagonismo. Havia, sim, um antipetismo muito forte, mas também havia uma gama grande de candidatos. O sentimento antissistema e antipolítica foi muito forte naquela eleição. Esse sentimento fez com que Bolsonaro se destacasse com muita facilidade no primeiro turno e, no segundo turno, houve uma nova situação de polarização.
Com a decisão do ministro Edson Fachin, que torna Lula elegível, se forma um quadro em que Lula é um grande nome para enfrentar Bolsonaro e capaz de catalisar o voto do eleitor que não está satisfeito com o presidente. Lula aposta em retirar Bolsonaro da disputa logo no primeiro turno. Isso me faz antever com certa facilidade hoje, em 2021, a sedimentação eleitoral para 2022, já que os demais candidatos foram destroçados, como eu disse no meu artigo, com a volta de Lula elegível: as candidaturas de Ciro Gomes, João Doria e Luciano Huck sofreram muito. Creio que Huck não será candidato, Doria voltará a disputar o governo de São Paulo e Ciro vai tentar alguma coisa, mas ainda não sabemos o que virá.
IHU On-Line - O que seria uma alternativa intermediária e moderada para o Brasil, que não fosse nem Lula nem Bolsonaro? O senhor vê algum nome razoável para comandar o país a partir das eleições presidenciais de 2022?
Paulo Baía – Nomes razoáveis e eficientes para comandar o Brasil pós-2022 são vários, só que esses nomes não têm competitividade eleitoral. O único nome que surgiu com peso nos últimos tempos para enfrentar Jair Bolsonaro foi o de Lula, a partir da decisão de Fachin. Até então, havia uma facilidade enorme de Bolsonaro [se reeleger] e outros nomes estavam tentando se afirmar, como o de Ciro Gomes, Fernando Haddad, João Doria, Luciano Huck e, num segundo patamar, Luiz Henrique Mandetta, Eduardo Leite e Flávio Dino, com menos força. Enfim, tínhamos um conjunto de nomes que tentariam se aproximar de um cenário competitivo para enfrentar Bolsonaro, que era, francamente, o favorito.
Com Lula elegível, temos agora dois candidatos muito fortes e equipotentes. Não gosto muito da ideia de que o cenário está estéril para haver mais candidaturas, mas no momento há dois grandes candidatos: Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Esse cenário faz com que outras candidaturas não se arrisquem, a não ser, é claro, aquelas candidaturas que marcam posição política ou ideológica, como PSTU e PCO, e aquelas figuras mais folclóricas, como [José Maria] Eymael.
Pode ser que este cenário mude; estamos em março de 2021. Mas não creio muito em mudanças no cenário eleitoral, já que a decisão de candidatura foi antecipada com a questão da pandemia. Mesmo antes de Lula ficar elegível, já tínhamos um cenário de articulação e de pré-campanha em andamento. Jair Bolsonaro está com o pé no acelerador em sua campanha e os demais candidatos estão fazendo o mesmo.
Nesse cenário em que temos dois polos muito fortes, um de Lula e outro de Bolsonaro, fica em segundo patamar uma tentativa de engenharia política, liderada por Ciro Gomes. Mas essa tentativa não está tão visível assim, porque grande parte de seus componentes pode ser atraída para Bolsonaro ou Lula, fazendo com que a disputa do segundo turno se antecipe no primeiro. Haverá segundo turno, sim, mas será um segundo turno com resultado já praticamente definido. Faltando pouco mais de um ano para a eleição presidencial, é muito difícil que Lula e Bolsonaro não estejam no segundo turno de 2022.
IHU On-Line - O senhor acredita que Bolsonaro tem um cenário mais favorável com Lula candidato? Por quê? Como lê as reações do atual presidente depois da fala de Lula em entrevista coletiva?
Paulo Baía – O cenário é positivo para Jair Bolsonaro independentemente de Lula. Bolsonaro apostava em uma candidatura de Fernando Haddad para polarizar com ele; Haddad seria mais tranquilo para o enfrentamento de Bolsonaro. Entretanto, não vejo, como alguns analistas apontam, que Bolsonaro está derretendo e desidratando. Volto a insistir: a pesquisa do DataFolha mostra que 50% dos entrevistados são favoráveis a Bolsonaro; ou seja, não há um quadro que não seja favorável a Bolsonaro. O fato é que surgiu um nome muito forte para enfrentá-lo, que é o de Lula, o qual passou a ser um catalisador de vários segmentos anti-Bolsonaro.
O surgimento de Lula também faz com que alguns setores que estavam se desgrudando de Bolsonaro voltem a se agregar a ele, gerando esse cenário bipolar, que é muito ruim para todos nós. O que tenho percebido é que a partir do seu discurso, Lula fala para todos que querem ser contra Bolsonaro. Ele tem condições de atrair pessoas da direita liberal, da direita neoliberal e até da esquerda revolucionária já no primeiro turno, com um sentimento anti-bolsonarista. E Bolsonaro pode agregar à sua força, que foi isolada em 2018, as forças tradicionais do PTB, do PP, enfim, do chamado Centrão.
Não gosto do termo centrão, porque ele não define bem a situação daqueles parlamentares e políticos que são funcionais, pragmáticos, fisiológicos, que aderem a governos em troca de cargos, facilidades políticas e reeleição. Nesse sentido, percebo que Bolsonaro é o favorito hoje, independentemente da campanha eleitoral. Agora, com Lula, essa disputa será mais acirrada, porque Bolsonaro precisará ter o que não teve em 2018, isto é, a preocupação com uma engenharia política de coligação, que ele já está fazendo com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e com a presidência do Senado. A aposta de Bolsonaro é manter essa aliança, que lhe dá não só uma estrutura com capilaridade nacional, mas força política e ideológica para enfrentar um polo poderoso que é o de Luiz Inácio Lula da Silva e de todos aqueles que vão apostar em Lula para retirar Bolsonaro da presidência da República.
IHU On-Line – Segundo a pesquisa DataFolha da última quarta-feira, a rejeição a Bolsonaro na gestão da crise sanitária chega a 54%. Numa eleição polarizada, o comportamento do presidente durante a crise pode ter algum peso?
Paulo Baía – Essa mesma pesquisa mostra que 50% dos entrevistados são contra o impeachment do presidente e estão a favor de Bolsonaro. Então, mesmo aqueles que são contra a maneira como Bolsonaro lida com a pandemia, com as mortes, ainda assim votarão nele. Eles criticam as ações sanitárias e de saúde do presidente, mas não deixarão de votar nele, sobretudo porque esses segmentos têm uma vinculação afetiva muito grande com o antipetismo.
O que chama a atenção na pesquisa do DataFolha é o fato de que ela é muito favorável a Bolsonaro, e não desfavorável, como tenho lido ao longo dos últimos dias, em várias matérias e comentários. O fato de 54% reprovarem a ação dele na pandemia não significa que este universo esteja rejeitando eleitoralmente Bolsonaro em 2022. Veja que 50% dos entrevistados são contra o impeachment, portanto, querem que Bolsonaro continue presidente da República.
IHU On-Line - Que leitura o senhor faz da fala de Lula em entrevista coletiva sobre as decisões do Supremo Tribunal Federal - STF, tanto sobre os processos contra ele em Curitiba quanto sobre o ex-juiz Sérgio Moro?
Paulo Baía – Lula fez uma fala muito abrangente na sua entrevista coletiva; falou para todos sem exceção, mas excluiu três personalidades da sua ação de acolhimento: Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e Jair Bolsonaro, nessa ordem. Portanto, me chamou atenção essa abrangência do seu discurso, a contundência de ampliar ao máximo, e dizer que não tem mágoa contra ninguém, somente contra Moro, Dallagnol e Bolsonaro.
Lula personalizou suas oposições e as centralizou nesse trio, nessa hierarquia, deixando aberta às demais pessoas a possibilidade de passarem a apoiá-lo. Ele fala isso na medida em que grande parte dos apoiadores do governo, entre 2003 e 2015, no governo Dilma, também foram aliados do PT, sobretudo os religiosos conservadores e as oligarquias regionais. Então, Lula falou para todos, principalmente para as grandes redes de televisão e rádio, criticando a cobertura da Rede Globo, mas não fechou as portas. Pelo contrário, estabeleceu uma ponte com a Rede Globo, que é uma rede importante de informação, de opinião e de divulgação de ideias, e que se posicionou contra Lula e contra Dilma de maneira muito forte. Mesmo essas macroforças, como chamo, não foram atacadas por Lula. Pelo contrário, ele flertou com todas elas e buscou seduzi-las de alguma forma. Ele personalizou quem quer enfrentar: Sérgio Moro e o Ministério Público de Dallagnol – e não o MP como instituição. Ele quer o apoio do judiciário sem Moro e quer o apoio do MP sem Dallagnol. Quer ainda enfrentar Jair Bolsonaro com todos que vierem para o seu campo.
IHU On-Line - Alguns analistas têm apontado que Lula, por meio da entrevista coletiva, tem dado sinais de moderação e com isso acenado para a direita liberal e se colocado mais ao centro. É realmente isso? Teremos uma reedição do “Lulinha paz e amor” e da “Carta ao Povo Brasileiro”?
Paulo Baía – Lula foi muito amplo na sua fala. Não diria que ele se colocou com moderação, até porque os tempos e o cenário político não pedem moderação, mas uma certa radicalidade em relação ao enfrentamento com Bolsonaro. Facilita essa radicalidade no discurso democrático e social na medida em que Bolsonaro personaliza a extrema direita e o pensamento conservador antissocial. O que Bolsonaro fala e faz facilita a ação de Lula no sentido de incorporar a direita liberal, a direita neoliberal e até os setores mais radicalizados de um socialismo revolucionário.
Entretanto, hoje o cenário é diferente daquele de 2002, quando Lula tinha um estigma muito grande das lutas operárias e trabalhistas e fez a figura do “Lula paz e amor” e a Carta ao Povo Brasileiro. A partir daí, Lula foi testado em dois mandatos, governou de 2003 até 2010. Portanto, ele não precisa mais da Carta ao Povo Brasileiro, porque tem uma história que mostra seu perfil de gestor e administrador político como presidente da República. Esse é o cacife de Lula e por isso ele fez uma fala tão abrangente.
A entrevista coletiva traduz o que foi o primeiro e o segundo mandato de Lula como presidente da República. É interessante reforçar isso porque muitos analistas têm falado no retorno de Lula à Carta ao Povo Brasileiro, mas eu insisto: ele não precisa fazer uma carta ao povo brasileiro, porque ele tem uma trajetória mostrando como foi o seu governo, mostrando que seu governo não foi excludente. Inclusive o setor financeiro e os rentistas foram muito beneficiados durante o governo Lula, em troca de uma pequena parcela de renda para os pobres e os miseráveis. Esse é o testamento político de Lula.
Em dois mandatos, Lula demonstrou que pode fazer uma ampla aliança de governo, com os neoliberais, os conservadores e até com os fundamentalistas religiosos, que estiveram no seu governo, e os reformistas políticos clássicos, os sociais-democratas. Lula não entrará – aliás, ele nunca esteve – no campo dos socialistas revolucionários, embora os socialistas revolucionários o apoiarão no primeiro e no segundo turno.
IHU On-Line - Ao contrário da esquerda, que propõe uma frente ampla de esquerda, Lula, em seu pronunciamento após a decisão do STF, destacou a necessidade de construir uma frente ampla e não uma frente de esquerda. Como o senhor interpreta a declaração do presidente? O que ele tenta sinalizar?
Paulo Baía – Sim, Lula não fala em uma frente de esquerda; ele quer uma frente bem ampla, a mais ampla possível, tendo como foco a extrema direita personalizada por Bolsonaro. Quem vier, será bem-vindo. Nesse sentido, como Lula é um candidato muito forte, ele tem capacidade de neutralizar a formação de uma frente exclusiva de esquerda. Assim, a capacidade de fazer uma frente de esquerda desaparece.
Como eu disse antes, Lula tem um histórico de conciliação com vários setores da sociedade brasileira e quer resgatar todo o arco social que compôs seus dois mandatos. Sobretudo, quer recompor a aliança eleitoral de 2006, já que a aliança de 2002 aconteceu com a adesão ao voto no segundo turno. Em 2006, ele construiu uma ampla aliança no primeiro turno e terminou seu mandato, em 2010, com 84% de aprovação popular. É nisso que Lula está trabalhando, no meu entendimento, a partir da sua fala na entrevista coletiva.
Lula tem este perfil: não quer ser reduzido a um líder esquerdista. Ele se define como de esquerda, quer liderar todos os segmentos da esquerda, mas quer liderá-los numa ampla coligação democrática. Talvez ele não use o termo frente democrática, porque isso seria peemedebismo demais para ele e é uma expressão que foi consagrada com Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. Lula quer, sim, definir que a aliança de Jair Bolsonaro é uma aliança de extrema direita, de radicais contra a sociedade e, portanto, ele quer representar esse sentimento da maioria da sociedade descrita nos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE e nos estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. Esse é um desafio para Lula em 2022 na medida em que grande parte do eleitorado que votou massivamente em Lula em 2006 e em Dilma em 2010, votou em Jair Bolsonaro em 2018, como indicam alguns estudos. Percebemos isso em alguns trabalhos, como no do Jairo Nicolau e do Idelber Avelar. Houve uma migração do eleitor que votava em Lula – não o eleitor do PT, porque este é um eleitor fiel – para Bolsonaro. Lula e Dilma foram eleitos com votos muito além dos eleitores do PT. É exatamente esta composição que Lula quer: a possibilidade de reconquistar o eleitor que foi para Jair Bolsonaro.
IHU On-Line - Como fica a situação da esquerda numa possível disputa entre Lula e Bolsonaro? Ela tende a se fragmentar ainda mais ou a candidatura do ex-presidente Lula seria uma possibilidade de unir a esquerda novamente?
Paulo Baía – Vou introduzir um tema para responder a essa pergunta: na eleição de 2022, teremos as cláusulas de barreira e de desempenho ampliadas. Os partidos terão que eleger nove deputados federais em pelo menos onze estados para ter direito à representação política na Câmara dos Deputados. Antes de 2022, teremos uma movimentação de “refazimento” das estruturas político-partidárias, que já está em andamento. Não creio que esse “refazimento” da estrutura partidária afetará o PSOL, o PSTU ou o PCO diretamente. O PSTU e o PCO não estão muito preocupados com isso, mas o PSOL está preocupado com as cláusulas de barreira e de desempenho. Então, acredito que o PSOL lançará candidatura à presidência da República porque ele precisa ter uma política de eleger nove deputados federais em onze estados para se manter como partido e pensar mais à frente. Nesse sentido, o PSOL é diferente dos outros partidos menores de esquerda.
Os demais partidos são mais pragmáticos e vão fazer isso com uma certa facilidade em relação às suas campanhas. Então, haverá, nos 26 estados e no Distrito Federal, muitos candidatos a governadores, candidatos ao Senado e chapas que necessariamente têm que ser do próprio partido para deputado federal e estadual, já que as coligações partidárias das eleições proporcionais acabaram e só se pode ter coligação para o Senado, para governador e para a presidência da República.
Eu não gosto da expressão “fragmentação da esquerda” porque cada partido tem um projeto e é legítimo que esses partidos busquem a sua afirmação no primeiro turno. Isso iria acontecer de qualquer forma, com ou sem Lula.
O que estamos percebendo é que, com a presença de Lula e de Bolsonaro, vários partidos vão apostar nos dois como cabeça de chapa, mas vão manter estruturas diferenciadas para os governos dos estados e para o Senado, tendo que, necessariamente, ter chapa própria para deputado federal e estadual.
Introduzo essa questão porque ela geralmente fica de fora quando se fala em frente de esquerda, frente ampla ou frente democrática. Os partidos estão pensando na sua própria sobrevivência, e seus cálculos eleitorais estão baseados nas regras estabelecidas em 2017, quando a lei eleitoral foi reformulada. Portanto, o que vai presidir com muita força a formação de chapas será a cláusula de barreira e a cláusula de desempenho, pois disso depende a sobrevida dos partidos pós-2022.
A esquerda tem outro dilema: no segundo turno, ela não terá alternativa. Se o segundo turno for entre Lula e Bolsonaro, ela necessariamente caminhará para Lula, mesmo aquela esquerda mais ligada a Marina Silva ou a esquerda ligada aos trabalhistas e a Ciro Gomes. Eles tendem a votar em Lula na medida em que sua posição de esquerda se fortalece numa posição anti-Bolsonaro no segundo turno.
IHU On-Line - Antes da decisão do ministro Fachin, o PT era coadjuvante nas apostas para a eleição de 2022, tendo no páreo Bolsonaro, Ciro Gomes, João Doria e Luciano Huck. Como a situação fica agora, especialmente para esses últimos?
Paulo Baía – João Doria e Luciano Huck estão fora da disputa para a presidência da República em 2022. Huck não vai aderir a nenhum partido e sua candidatura foi ferida com a decisão de Fachin. Doria também, mas ele tem um campo de recuo, que é a reeleição para o governo de São Paulo – e pelo que tenho visto, ele já está trabalhando nesse sentido. Ciro Gomes vai trabalhar, será candidato e sua candidatura é irreversível. Se essa candidatura vai ganhar corpo, depende da engenharia política que ele vai fazer, mas terá dificuldade em fazer essa engenharia política, porque foi muito prejudicado eleitoralmente com a decisão do ministro Fachin. Ele não sairá do páreo, mas não tem o mesmo potencial eleitoral que tinha antes da decisão de Fachin. O potencial dele era semelhante ao de Haddad.
IHU On-Line - Como tem observado a extrema direita nesse novo cenário?
Paulo Baía – A extrema direita no Brasil é representada por Jair Bolsonaro e pela maioria dos seus ministros – alguns poucos não são da extrema direita, mas são de direita. A extrema direita no Brasil foi afetada com a eleição de [Joe] Biden nos Estados Unidos. Portanto, temos – e chamo atenção para isso, pois todas as pesquisas indicam esse aspecto – uma extrema direita que tem face, tem rosto e representatividade no governo Bolsonaro e se expressa através do presidente com muita força. Esta força estará presente na eleição de 2022, tendo Bolsonaro como líder e candidatos fortes aos governos dos estados e ao Senado federal, da mesma forma que terá representantes importantes na Câmara dos Deputados.
Temos isso presente atualmente na própria crise de Covid-19, em que esses grupos seguem fortalecidos. Bolsonaro não perdeu os 30% cativos que tem no eleitorado brasileiro. A extrema direita não perdeu esse eleitorado e não está fraca no cenário brasileiro. Daí é possível entender a preocupação de Lula em sua entrevista coletiva. Ele faz um discurso necessariamente agregador porque sabe que a extrema direita com Bolsonaro está muito sólida no cenário político e eleitoral, reforçando essa perspectiva na medida em que Paulo Guedes também representa essa extrema direita, que facilita a vida dos rentistas.
IHU On-Line - Com Lula realmente voltando ao páreo, como imagina que será o movimento do eleitorado religioso, especialmente aquele que teve espaço em seus governos e depois aderiu a Bolsonaro? Qual deve ser ‘a Pauta’ eleitoral de 2022? A pandemia e o racismo, como foi nos Estados Unidos?
Paulo Baía – Essa é a pergunta de um bilhão de dólares. Não sabemos ainda qual será a pauta que vai mover a eleição de 2022. Cada eleição tem uma pauta específica. A última, de 2018, foi o combate à corrupção e contra o sistema político como um todo. Essa pauta se esvaziou na medida em que Bolsonaro representa hoje o sistema, e o combate à corrupção foi um pouco desmoralizado com as atitudes levianas e antiprotocolares da força-tarefa da Lava Jato. A Lava Jato se alavancou na ideia de luta contra a corrupção em 2018, mas perdeu essa força à medida que a estrutura da operação veio à tona, com tudo que o ministro Gilmar Mendes disse e com tudo que foi apresentado não no voto do ministro Fachin, mas no julgamento sobre a imparcialidade de Moro. Isso será muito explorado por Lula, mas essa questão não será a pauta central, e não sabemos qual será.
A pandemia não vai ser a pauta central da eleição. O racismo foi importante nos Estados Unidos. Mas a questão do racismo no Brasil é uma crueldade: a luta contra o racismo acaba sendo feita por nichos e grupos minoritários; não é uma questão universal para o eleitor brasileiro, que é muito racista. Não vejo, neste momento, nem a pandemia nem o racismo como mobilizadores nacionais para a eleição de 2022.
Talvez a questão do emprego e renda e de uma renda mínima sejam fatores mais aglutinadores. Além disso, essa renda mínima precisa ser entendida de maneira mais ampla, não apenas direcionada a pessoas pobres e miseráveis, mas também abarcando um processo de apoio a micro e pequenos empresários, assim como algum tipo de salvaguarda para os setores produtivos agrícola, de serviços e industrial – embora esse último seja muito fraco no país atualmente.
Então, tenho percebido que a questão da falta de renda e de emprego são o principal foco da eleição de 2022. Como consequência, vem a questão da educação, da saúde e da segurança, que sempre estão presentes. Mas a pauta mobilizadora talvez seja a ideia da renda para as pessoas e para as famílias e isso vai ser explorado por Lula, Bolsonaro, Ciro Gomes e os demais candidatos. E, com esse cenário em que há um favoritismo em relação a Lula e a Bolsonaro, eles ganharão mais respaldo em relação a isso. Mas insisto: a pauta da eleição de 2022 não está definida. Vamos ver o que vai acontecer.
Também chamo a atenção para o fato de que a pauta de 2018 foi definida com bastante antecedência. Tanto que todos os candidatos tinham um nível de rejeição elevado e Bolsonaro conseguiu sair de uma posição desconhecida e conquistar os votos de todos que eram contra o PT, na medida em que juntou não só uma pauta tradicional do eleitor brasileiro, que foi a pauta de costumes – o eleitor brasileiro é majoritariamente conservador –, com a pauta centrada no combate à corrupção. Como esse cenário mudou bastante, eu apostaria na questão das rendas: renda para a população e renda para o setor produtivo.
IHU On-Line - Como o senhor imagina que outros nomes que têm surgido mais paralelamente, como Luiza Trajano, do Magazine Luiza, Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, Henrique Mandetta, do Mato Grosso do Sul, e Antonio Anastasia, de Minas Gerais, devem se mover na eleição de 2022?
Paulo Baía – A Luiza, o Mandetta e o Anastasia são importantes para uma composição de chapa com Lula, com certeza. Mandetta está numa posição contra Bolsonaro. O ex-governador e senador Anastasia também. Ele é do mesmo partido [PSD] que Alexandre Kalil, que deve sair da prefeitura de Belo Horizonte e se candidatar ao governo de Minas Gerais, já que ele tem ampla preferência popular no estado. Ter o nome de Kalil como vice-presidente é uma aliança que interessa a Lula e a Ciro Gomes, porque ele é um nome muito forte para vice.
Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, pode aparecer nessas composições, mas ele não tem o impacto de Alexandre Kalil. Ele está enfrentando certa dificuldade com o eleitorado do Rio Grande do Sul, tendo o ex-governador [José Sartori] no seu calcanhar.
O nome de Luiza Trajano reproduz a chapa de 2002, em que José de Alencar foi vice de Lula. E tem o nome poderoso de Mandetta, que tem apoio do DEM, do Antônio Carlos Magalhães, do FHC. Mandetta é de Mato Grosso do Sul, uma região que tem uma densidade eleitoral menor, mas ele tem um nome nacional, que se consolidou nesse último período.
Embora não esteja muito presente nas listas de apoio, vejo Antonio Anastasia como um nome muito forte na composição para a chapa. Curiosamente, nenhum desses nomes que cito compõem a chapa de Bolsonaro. Ele não precisa se preocupar com a escolha de um vice-presidente; ele escolherá um vice mais ao seu feitio, que o deixe mais confortável do que o vice, Hamilton Mourão, o deixa. Ele aprendeu com a escolha de Mourão e, portanto, escolherá um vice que não atrapalhe as suas ações centralizadas.
IHU On-Line - Nesta semana, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao comentar a decisão do STF, declarou: “O Lula foi calejado pela vida. Isso conta. Não é nenhum principiante”. Qual sua leitura desse pronunciamento? Uma aproximação do petismo com o PSDB é possível?
Paulo Baía – Uma aproximação institucional entre o PT e o PSDB é muito difícil, mas não é difícil que se disfarce essa aproximação. O que quero dizer? Figuras importantes como Fernando Henrique Cardoso ou João Doria, que têm posições muito marcadas contra Bolsonaro, podem apoiar Lula mesmo que não institucionalmente, mesmo que o PSDB lance um candidato à presidência da República.
Vamos trabalhar com a hipótese de que o próprio Eduardo Leite seja o candidato do PSDB. Ele já entra derrotado porque as forças do PSDB em todos os estados vão se alinhar ou à candidatura ligada a Lula ou a Jair Bolsonaro. O PSDB não terá uma unidade nacional visto que saiu muito massacrado da eleição de 2018. Fernando Henrique Cardoso não fala pelo PSDB; fala por ele próprio. João Doria não fala pelo PSDB; fala por ele mesmo e por uma parte do PSDB.
Acredito que, dependendo das pesquisas qualitativas e quantitativas de março de 2022, vamos ter uma definição com características regionais, o que é muito interessante. Quero chamar a atenção para o fato de que o PSDB ganhou uma flexibilidade, uma plasticidade muito semelhante ao MDB. Podemos dizer que o PSDB está hoje “peemedebizado”, já que as preocupações dos donos das franquias estaduais terão mais peso do que uma decisão nacional, como foi até 2018. O PSDB sai muito arrebentado da eleição de 2018 e com uma nova liderança muito [em nível] estadual, que é a de Doria. Nesse cenário, pode ser que joguem Eduardo Leite para fazer um papel institucional de candidato à presidência da República e o partido se afine com as alianças estaduais distribuídas desta forma: muitos estados com Lula e muitos com Bolsonaro.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Paulo Baía – Acrescento que a candidatura de Ciro Gomes é irreversível. Vamos ver se até abril de 2022 ele consegue uma engenharia política capaz de atrair Kalil, de Belo Horizonte, e João Doria, de São Paulo. Se não conseguir atrair os dois, terá uma candidatura frágil para marcar posição no PDT e desaparecerá qualquer tipo de competitividade, uma vez que o próprio Lula já tirou muito dessa competitividade.
Volto a insistir: Ciro era competitivo tendo Haddad como candidato do PT. Sem Haddad e com Lula, Ciro até pode montar uma engenharia política, como fez Geraldo Alckmin em 2018, mas não sabemos se dará resultado. Com Alckmin, não deu.
Como ainda não sabemos qual será a pauta eleitoral, vamos ver o que vai acontecer ao longo de março e abril de 2022. De toda forma, devem ficar no radar os movimentos de Ciro Gomes, pois ele vai atacar Bolsonaro prioritariamente, mas atacará Lula também com intensidade. Vamos ver a capacidade de destruição da campanha de Ciro Gomes. A estratégia dele será enfrentar Bolsonaro e tirá-lo do segundo turno, para enfrentar Lula. Por isso nomes como o de Kalil e de Doria são tão importantes para Ciro Gomes neste momento. Na medida em que não tiver o apoio formal dos dois, sua estratégia de tentar tirar Bolsonaro do segundo turno ficará muito difícil.