15 Março 2021
Na segunda-feira, concluiu-se a importante e esperada visita de quatro dias do Papa Francisco ao Iraque. Essa visita foi realizada em um contexto histórico que parecia impedi-la por motivos de saúde e de segurança. A pandemia certamente não poupou o claudicante sistema de saúde iraquiano, enquanto, a poucos passos da fronteira com o Irã, com as suas relações muito próximas por motivos comerciais e religiosos com o Iraque, é o país com o maior número de vítimas da Covid-19 na região. Porém, por um instante, quando Francisco saudou em Erbil a multidão que, embora com números limitados, viera ao seu encontro, a pandemia pareceu uma lembrança do passado.
A reportagem é de Giuseppe Acconcia, publicada em L’HuffingtonPost.it, 12-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De todas as imagens, a que mais ficará na memória dessa visita é o encontro de Francisco na cidade sagrada xiita de Najaf, na modesta residência do aiatolá Ali al-Sistani. Para além do significado religioso de um reconhecimento mútuo, essa imagem mostra a vontade sólida de permitir que a já pequena, mas com raízes antigas, minoria cristã no Iraque tenha pleno direito de cidadania, depois de ter sido dizimada ou forçada ao exílio durante os conflitos que atravessaram a região.
Conversamos sobre isso com um dos maiores especialistas em Oriente Médio, o professor iraquiano de História da Universidade de Londres (Birkbeck), Sami Zubaida.
Por que a visita do Papa Francisco ao Iraque foi tão significativa?
Foi muito importante dar apoio e suporte os cristãos no Iraque. Os cristãos iraquianos ainda estão ameaçados e sofreram terríveis perseguições. Nos últimos anos, foram contínuos os ataques contra os cristãos e as outras minorias religiosas. Centenas de milhares de pessoas deixaram o país. Convido-os a aprofundar os dilemas que os cristãos iraquianos enfrentaram depois da invasão de 2003, contados magistralmente pelo escritor Sinan Antoon no livro “Ave Maria”. Por isso, o encontro de Francisco com al-Sistani é particularmente relevante. Foi significativo ouvir al-Sistani dizer que todos os cristãos têm os mesmos direitos que os iraquianos, como segurança e liberdade, embora muitas vezes as outras comunidades no Iraque também não gozem desses direitos.
Qual é a relação dos cristãos iraquianos com as comunidades xiitas iraquianas?
Não há uma comunidade xiita unida no Iraque. Governo e oposição são ambos internos às comunidades xiitas. Existem vários grupos paramilitares que olham para o Irã, políticos xiitas com conexões com as instituições iranianas, e os mecanismos de poder controlados por al-Sistani. O próprio al-Sistani é fortemente crítico da situação e é favorável à integração e a igualdade dos cristãos iraquianos, assim como dos jovens que saem às ruas para pedir um Estado civil e não um Estado controlado pela religião.
Isso também seria favorável aos cristãos. Qual é a relação entre al-Sistani e o líder supremo iraniano, Ali Khamenei?
Al-Sistani e as instituições que ele controla são implicitamente rivais do Irã, enquanto muitos xiitas iraquianos, incluindo as milícias, são leais ao Irã e a Khamenei. Mas al-Sistani tem uma influência importante sobre os xiitas que o seguem no Iraque, no Irã e no Golfo. O encontro do papa fortaleceu al-Sistani como líder dos xiitas, em competição com o líder supremo iraniano, Ali Khamenei. Por exemplo, al-Sistani sempre se opôs à velayat e-faqih (o governo do especialista concebido por Khomeini).
O Iraque também está dilacerado por uma grave crise econômica, que gerou protestos generalizados, especialmente entre os jovens. Eles continuam?
Há um grande descontentamento e frustração generalizados. Centenas de milhares de jovens iraquianos formados estão desempregados, sem serviços, sem segurança. O governo de Mustafa al-Kadhimi, embora na verdade não exista um governo coerente no Iraque, não se ocupa disso. Eu acredito que os protestos vão continuar. Há um grande descontentamento no Iraque com as instituições fragmentadas e corruptas que não funcionam. E com políticos que estão comprometidos em ganhar dinheiro apenas no interesse dos seus grupelhos. Em 2019, milhares de jovens iraquianos saíram às ruas não só para protestar contra a interferência dos Estados Unidos no país, mas também para estigmatizar precisamente o papel iraniano nos casos de corrupção e de má gestão econômica e financeira do país.
A segunda etapa dessa viagem, reconhecida pelo próprio presidente dos EUA, Joe Biden, como “histórica” e “uma esperança para o mundo”, foi a visita aos escombros de Mosul. A imagem de Francisco em oração nos lugares onde a ferocidade do ISIS foi mais cruel entre 2014 e 2017 mudou as cartas sobre a mesa?
Mais uma vez, trata-se de uma questão de humanização, neste caso, das consequências do terrorismo. O ISIS também foi um fenômeno midiático com as degolas, as decapitações, as igrejas incendiadas, os jornalistas usados pelos jihadistas para fazer propaganda. No entanto, com a libertação de Raqqa, tudo desapareceu repentinamente das páginas dos jornais, como se tudo estivesse resolvido, se não houvesse as minas, os mortos, os feridos, as vítimas de estupro, os escombros, a contínua guerra turca contra os curdos, o abandono pela comunidade internacional, a violação dos direitos das mulheres Yazidi e muito mais. Essa imagem entre os escombros de Mosul nos lembrou que o ISIS não foi apenas um fenômeno midiático, mas também destruiu cidades inteiras e a vida de milhares de pessoas que certamente gostariam de reconstruir os seus bairros, mas ainda não têm a possibilidade completa de fazê-lo.
O encontro do Papa Francisco com Massoud e Masrour Barzani, que queriam conduzir o Curdistão iraquiano à independência depois do referendo de 2017 em Erbil, legitimou, aos olhos da comunidade internacional, os seus pedidos, já postos em prática em âmbito comercial, de autonomia em relação às autoridades de Bagdá?
Eu acho que o regime de Barzani é tão corrupto quanto o governo iraquiano. Ao mesmo tempo, ele está em graves dificuldades econômicas nesta fase, porque as autoridades curdas iraquianas apostam quase que exclusivamente no petróleo. É apenas do dia 15 de fevereiro passado a notícia do último ataque turco contra o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que causou a morte de 13 turcos, incluindo militares e policiais, feitos reféns pelos curdos, e de 44 combatentes do PKK. A notícia gerou grandes polêmicas em Ancara, enquanto as autoridades turcas continuam acusando as forças curdas pela morte dos 13 turcos. Poucos dias antes, a Força Aérea turca havia bombardeado as cidades de Priz, Bergare e Siyane na zona de defesa de Medya em Gare.
As ações turcas no Curdistão iraquiano começaram no ano passado, após o acordo de Sinjar, que, com a anuência do governo autônomo do Curdistão iraquiano, permitiu que o Exército turco atacasse os partidários do líder curdo, Abdullah Ӧcalan, na prisão em isolamento na Turquia, presentes nas montanhas do Iraque. Portanto, a visita de Francisco nos lembra que a guerra não acabou, a dor e a destruição não desapareceram. Elas continuam em outras formas, em muitos casos com violências contra os combatentes curdos e os cidadãos curdos sírios que haviam dado um apoio essencial para derrotar o Estado Islâmico na região de maioria curda de Rojava no norte da Síria, após a ocupação de Afrin por mãos turcas com a Operação Ramo de Oliveira, e 2018. Ao invés de continuar vendo destruições e escombros, todos nós gostaríamos, pelo contrário, que esse projeto ecológico de igualdade entre homens e mulheres, confederado e acadêmico com a abertura da Universidade de Kobane, não fosse posto em perigo.
O último encontro de Francisco antes de retornar à Itália foi com Abdullah, o pai do pequeno Alan Kurdi, cujo corpo foi encontrado na costa de Bodrum, no sul da Turquia, em setembro de 2015. Aquela imagem de um menino náufrago, de um refugiado que teria tido todo o direito de ser acolhido com a sua família, porque estava fugindo de anos de conflito, imediatamente deu a volta ao mundo. Existem milhões de migrantes sírios e curdos que foram forçados a deixar os seus países? Como as elites políticas iraquianas e turcas gerenciam a crise migratória?
O tema da humanização das migrações volta mais uma vez, assim como da recordação da dor da família de um menino que, anos depois, se perderia na infinita contabilidade dos mortos e desaparecidos no Mediterrâneo nos últimos anos. Ele assumiu um significado central. Na realidade, os políticos iraquianos estão preocupados principalmente com as migrações dentro do país. Em Erbil e nas regiões curdas, existem milhares e milhares de deslocados internos, principalmente cristãos, yadizis e de outras minorias, atacados pelo ISIS. Os migrantes ficaram bloqueados em um limbo que os forçou nos últimos anos a fazer de tudo para fugir do desumano conflito sírio e para tentar chegar às ilhas gregas, por exemplo, com o objetivo de chegar à Europa.
Porém, o presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, mais uma vez alavancou a retórica da invasão para obter apoio econômico da Alemanha e da União Europeia. Os migrantes, tratados como cidadãos de segunda categoria, com a sua presença, alimentaram o nacionalismo de que Erdoğan se nutre, para aumentar desmedidamente o seu consenso populista e controlar todo o sistema político turco. Além disso, há muitos fatores pelos quais os curdos turcos continuam sofrendo prisões em massa e repressão. Erdoğan está perdendo apoio eleitoral, há muitas divisões no seu partido, enquanto seus ex-aliados estão formando novos partidos. Ele quer manter uma forte coalizão com os ultranacionalistas. E o preço de fazer isso é ser muito duro para os curdos.
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“Com o papa, al-Sistani se tornou o fiador dos cristãos no Iraque.” Entrevista com Sami Zubaida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU