04 Março 2021
"São esses os dois eixos de análise de Marx no Fliperama, entre o produzir e o jogar videogames. Por um lado, é necessário expandir a própria noção do que significa um jogo político. Afinal, todos os games são políticos. Eles não estão apartados da realidade e apresentam a marca de criadores e empresas", escreve Rafael Grohmann, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, Doutor e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP, criador e editor da newsletter DigiLabour e entre seus livros publicados, está As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista (São Paulo: Atlas, 2013), em artigo [1] publicado por Outras Palavras, 02-03-2021.
Por que um jogador deveria se interessar por marxismo? E por que os marxistas deveriam se interessar por games? Jamie Woodcock, neste Marx no Fliperama, busca aproximar esses dois universos, de modo a resolver alguns mal-entendidos. Por um lado, parte da esquerda anticapitalista considera os games como algo menor – como se eles não tivessem nada a ver com luta de classes e exploração do trabalho. Por outro, as imagens hegemônicas do mundo dos games – de raça, gênero, sexualidade e ideologias – fazem parecer alucinação alguém – e um livro – declarar-se abertamente, ao mesmo tempo, gamer e marxista.
Os games são parte importante dos processos de produção, circulação e consumo inscritos no modo de produção capitalista, mas também podem nos servir para imaginar outros tipos de sociedade para além de um realismo capitalista (Fisher, 2011). Woodcock cita algumas vezes Raymond Williams (2017) e Stuart Hall (2003) para inscrever os jogos no circuito da cultura, enquanto formas culturais, incluindo questões de trabalho e representações.
A noção de circuito da cultura em Hall (2003) é homóloga ao circuito do capital esboçado por Marx (2011) nos Grundrisse para tratar das dialéticas relações entre produção e consumo como momentos diferentes de um mesmo processo. É aí que está a célebre frase: “a fome é fome, mas a fome que se sacia com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa da fome que devora carne crua com mão, unha e dente” (Marx, 2011, p. 47). Consumo e produção afetam-se mutuamente, e Jamie Woodcock mostra-se atento a isso ao analisar tanto o trabalho na indústria de games quanto os próprios jogos.
Marx no Fliperama, de Jamie Woodcock. Traduzido e publicado no Brasil pela Autonomia Literária, parceira editorial de Outras Palavras (Foto: Divulgação/Autonomia Literária)
Há articulações complexas nos circuitos do capital e da cultura, produzindo e circulando sentidos sobre tudo o que acontece na vida. Mas isso não se dá no vazio. É nesse circuito de sentidos o lugar em que os significados podem ser estabelecidos e contestados, sedimentados e ressignificados, com tentativas de controle e possibilidades de resistências aos modos de significar o mundo. Os jogos, pois, estão envolvidos na teia de sentidos – com formas de representar o mundo e de se representar tanto na produção quanto em seu consumo.
São esses os dois eixos de análise de Marx no Fliperama, entre o produzir e o jogar videogames. Por um lado, é necessário expandir a própria noção do que significa um jogo político. Afinal, todos os games são políticos. Eles não estão apartados da realidade e apresentam a marca de criadores e empresas. Produzem determinados sentidos em relação a outros, fazendo circular, por exemplo, ideologias racistas, misóginas e homofóbicas em suas produções. Muitas vezes naturalizam o capitalismo e sua racionalidade como modo de vida. Porém isso não deve significar a censura desses jogos, mas a sua devida crítica política e midiática, podendo, inclusive, resultar em revoltas. E assim como não podemos resumir o cinema a Hollywood, não se pode cristalizar os significados do que é um game a partir de seu lado mainstream. É preciso lutar por outras narrativas nos jogos.
Em 1996, a professora Maria Aparecida Baccega, da USP, que deixou um legado marxista para a área de comunicação, foi uma das primeiras pesquisadoras a aparecer nas “Páginas Amarelas”, da revista Veja, e chocou intelectuais ao dizer: “novela é cultura” – e que aliena menos que os telejornais. Para ela, a telenovela educa mesmo quando traz a reprodução de estereótipos e preconceitos por possibilitar a produção de crítica e, a partir disso, lutar por outras produções de significados.
A mesma coisa ocorre com os games. Vistos como algo menor e em si mesmo alienantes, são desprezados por parte da esquerda por serem “apenas” uma brincadeira. Esse comportamento ignora que muitas pessoas – jovens, mas não exclusivamente – negociam sentidos culturais e políticos a partir de suas relações com jogos e que a vida sob o capitalismo precisa de momentos de lazer, divertimento e prazer. Afinal, é preciso uma vida que seja cheia de sentidos dentro e fora do trabalho (Marx; Engels, 2007; Antunes, 2001).
Assim, devemos nos contrapor à gamificação incrustada na gestão das empresas – como dispositivo da racionalidade neoliberal (Dardot; Laval, 2016) ligado à produtividade e ao controle dos trabalhadores – com uma gamificação “vinda de baixo”, que, de fato, apoie as lutas dos trabalhadores e a recusa em relação ao trabalho. A gamificação não é algo neutro, e geralmente é usada para deixar a aparência de um trabalho mais divertido, um playbour (Küklich, 2005) invisibilizando a intensificação do ritmo de trabalho e a concorrência entre os trabalhadores.
Além disso, os games são uma indústria rentável no capitalismo, sendo produzidos por milhares de trabalhadores em determinadas condições de trabalho. Woodcock estuda a indústria de jogos a partir de uma atualização da enquete operária marxiana [2] como um método para investigação com trabalhadores que não se resuma à análise de suas condições de trabalho, mas algo que “requer apoio às lutas reais dos trabalhadores, experimentando novas formas de co-pesquisa que deem primazia ao ponto de vista e à ação dos trabalhadores” (Englert; Woodcock; Cant, 2020, p. 56). Isso significa uma pesquisa engajada tanto em sua contribuição acadêmica quanto na organização dos trabalhadores, que deve ser vista como uma construção “de baixo” e não forçada “de cima” – seja por órgãos reguladores, sindicatos, partidos ou acadêmicos – sem, de fato, dialogar com os trabalhadores sobre as suas reais demandas.
A atualização da enquete operária, com inspiração no operaísmo italiano e construída de forma coletiva pela revista socialista Notes From Below, parte da noção de composição de classes, que envolve dimensões técnicas, sociais e políticas. Isso significa considerar desde as condições e a organização do trabalho (inclusive métodos de controle e gerenciamento), passando por marcadores sociais (de gênero, raça e sexualidade, por exemplo) dos trabalhadores e como é a vida para além do tempo de trabalho – e que se afetam mutuamente no que chamamos de “mundo do trabalho”. A composição de classes também abarca como a organização dos trabalhadores transforma-se em uma força política na luta de classes.
E, pasmem, quem trabalha na indústria de games é um… Trabalhador. As condições de trabalho na área dependem de fatores como o tipo de empresa (se produz game AAA, é independente ou cooperativa, por exemplo), mas, em linhas gerais, há longas e intensas jornadas de trabalho, com o borrar de fronteiras entre lazer e trabalho. Há, ainda, uma cooptação das subjetividades dos trabalhadores pela ideologia do “faça o que você ama” (Illouz, 2011) e a naturalização do estresse e das noites mal dormidas nos momentos antes da entrega de um projeto (crunch time). Isso acontece também por meio de uma glamourização e/ou idealização do trabalho em games, como acontece também em outras áreas, como o jornalismo, por exemplo (Figaro; Nonato; Grohmann, 2013).
Além disso, a divisão de trabalho na indústria de games estrutura desigualdades e invisibilidades no setor, algo também retratado por Ergin Bulut (2020) em A Precarious Game: the illusion of dream jobs in the video game industry. Isso significa considerar desde o trabalho não pago de modders e testadores até a predominância branca e masculina no segmento AAA. As condições sociais de muitos desses trabalhadores, como não ter responsabilidades com filhos ou trabalho doméstico, ajudam a explicar a própria composição da força de trabalho no setor. As condições precárias de trabalho também envolvem a área de eSports. No Brasil, o Ministério Público do Trabalho abriu inquérito para investigar as condições de trabalho e os impactos na saúde de trabalhadores em clubes de eSports.
Além dos aspectos mencionados acima, para compreender o trabalho na área de games, é preciso considerar todo o circuito de trabalho (Qiu; Gregg; Crawford, 2014) nas cadeias produtivas de valor. Isso significa analisar as materialidades envolvidas na produção de um videogame com todas as suas peças a partir das atividades de trabalhadores de várias áreas. Qual caminho um console faz até chegar ao consumidor, desde a extração de minérios até a produção de videogames na China, passando por sua distribuição? E a produção e a circulação dos jogos, desde a concepção e o desenvolvimento até chegar ao Steam ou Switch, por exemplo? Isso levando em conta tanto as condições de trabalho quanto as próprias infraestruturas materiais, pois, como lembra Huws (2014, p. 157), não há cultura digital “sem geração de energia, cabos, satélites, computadores, telefones celulares e milhares de outros produtos materiais, sem a extração de matéria-prima que forma essas mercadorias”.
Em meio a esse cenário, os trabalhadores da área de games estão se reconhecendo como trabalhadores e se organizando coletivamente, como o Game Workers Unite (GWU), movimento internacional de base com objetivo de sindicalizar a indústria de games, convocando os trabalhadores a se organizarem, de baixo para cima, a partir de células locais. O GWU já está presente em doze países, inclusive Argentina e Brasil. As lutas são para reduzir a exploração do trabalho, que os trabalhadores sejam ouvidos, em organização distribuída e contra linguagens e comportamentos opressores. Outro caso citado por Jamie Woodcock é o Independent Workers’ Union of Great Britain (IWGB), que reúne, entre outros, entregadores, motoristas e também trabalhadores de games.
Esses movimentos prefigurativos evidenciam que nenhum trabalhador é “inorganizável”. Se há novos métodos de controle e organização do trabalho, é preciso que haja novas maneiras de organização e resistência dos trabalhadores. E esse é o laboratório da luta de classes (Cant, 2019) também encarnado na área de games. O fato de os trabalhadores ainda não estarem organizados não significa que não haja resistência ou potencialidade de organização coletiva. E isso não nasceu ontem. Há uma mistura de elementos e pessoas com histórico no sindicalismo e outras que estão experienciando sua primeira vez em uma organização coletiva.
As experiências acima somam-se a novas formas de associação e organização de trabalhadores das plataformas digitais que têm ocorrido nos mais diversos setores e países. Nesses movimentos, a comunicação também é a base para a organização e ocorre também por plataformas digitais, desde WhatsApp e Facebook até Discord, justamente destinada a gamers. É por meio desses espaços que os trabalhadores produzem conteúdo, discutem ideias e organizam ações.
Há questões materiais e concretas que conectam os trabalhadores dos mais variados países em um momento de derrocada do que Nancy Fraser (2020) chama de “neoliberalismo progressista” – e que perdeu sua capacidade de convencimento. A pandemia do coronavírus explicitou ainda mais as condições precárias e a exploração do trabalho, assim como a deterioração das subjetividades dos trabalhadores. E isso abre possibilidades para ampliar a circulação das lutas dos trabalhadores: “podemos começar a ver o germe de uma alternativa que surge da recusa dos trabalhadores das plataformas” (Englert; Woodcock; Cant, 2020, p. 56).
A circulação das lutas dos trabalhadores de games também envolve lutas por outras circulações de sentidos, por outras narrativas. Não existe luta anticapitalista que não passe pelo circuito da cultura. Um exemplo é o jogo Tonight We Riot, produzido pela Pixel Pushers Union 512 e distribuído pela Means Interactive, ambas cooperativas de trabalhadores. Explicitamente socialista, o jogador não comanda uma pessoa só, mas um movimento de trabalhadores contra o capitalismo a partir de ação direta: “enquanto um de nós sobreviver, a Revolução continuará”.
Outro exemplo é o Workers Game Jam, encontro de desenvolvedores para criação de jogos que tenham como foco a organização coletiva dos trabalhadores, desde negociação de salários até organização de piquetes, protestos e greves. Organizado por Game Workers Unite e Notes From Below, o encontro teve a sua segunda edição em 2020, inclusive com a participação de brasileiros.
Marx no Fliperama é uma potente contribuição para lutar por outras circulações – de sentidos e dos trabalhadores, de forma a acentuar o caráter experimental, laboratorial e radical dos games (Dyer-Witheford; de Peuter, 2009), imaginando e explorando alternativas ao realismo capitalista. O caso do Tonight We Riot também é parte de um movimento prefigurativo por outras formas de trabalho na área de games, que, de fato, auxiliem na circulação das lutas dos trabalhadores. Jamie Woodcock nos faz pensar por quais jogos e indústria/trabalho em games devemos lutar. Que façamos experimentos narrativos e organizativos (sempre políticos) com relação à luta anticapitalista. Boa diversão!
[1] O texto é o prefácio de Marx no Fliperama, de Jamie Woodcock. Traduzido e publicado no Brasil pela Autonomia Literária, parceira editorial de Outras Palavras.
[2] Woodcock explica este método com mais detalhes em texto com Sai Englert e Callum Cant sobre o operaísmo digital (Englert; Woodcock; Cant, 2020).
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2001.
BACCEGA, Maria Aparecida. Novela é cultura. Revista Veja. Ano 29, n. 4, 24 de janeiro de 1996, p. 7-10.
BULUT, Ergin. A Precarious Game: the illusion of dream jobs in the video game industry. New York: ILR Press, 2020.
CANT, Cant. Riding for Deliveroo: resistance in the new economy. London: Polity, 2019.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
DYER-WITHEFORD, Nick; DE PEUTER, Greig. Games of Empire: global capitalism and video games. Minnesota: University of Minnesota Press, 2009.
ENGLERT, Sai; WOODCOCK, Jamie; CANT, Callum. Operaísmo Digital: tecnologia, plataformas e circulação das lutas dos trabalhadores. Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos. v. 22, n. 1, 2020, p. 47-58.
FIGARO, Roseli; NONATO, Claudia; GROHMANN, Rafael. As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista. São Paulo: Atlas, 2013.
FISHER, Mark. Capitalist Realism. Winchester: Zero Books, 2011.
FRASER, Nancy. O Velho Está Morrendo e o Novo Não Pode Nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. São Paulo: Ed. UFMG, 2003.
HUWS, Ursula. Laborin the Global Digital Economy. New York: Monthly Review Press, 2014.
ILLOUZ, Eva. O Amor nos Tempos do Capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2011.
QIU, Jack; GREGG, Melissa; CRAWFORD, Kate. Circuits of Labour: a labour theory of the iPhone Era. Triple C. v. 12, n. 2, p. 1-15.
WILLIAMS, Raymond. Televisão: tecnologia e forma cultural. São Paulo: Boitempo, 2017.
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Games, nova fronteira no combate cultural - Instituto Humanitas Unisinos - IHU