26 Fevereiro 2021
“É evidente que nos últimos anos o exercício institucional da autoridade do fundador [Enzo Bianchi] assumiu aspectos altamente problemáticos em Bose. A maneira como o fundador escolheu para lidar com sua própria renúncia e as consequências da visita apostólica revelaram uma dolorosa falta de sentido da instituição”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano, professor da Villanova University, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 23-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A crise interna que se estabeleceu na Comunidade Monástica de Bose em relação ao seu fundador, Enzo Bianchi, é um dos mais dolorosos episódios na história da Igreja pós-Vaticano II na Itália.
E isso ecoa para além dos Alpes.
A crise explodiu no fim de 2019 com uma visita apostólica que foi requerida por essa comunidade mista de homens e mulheres monásticas. Ocorreu entre 06 de dezembro daquele ano e 06 de janeiro de 2020.
Três pessoas formaram a delegação visitante: o abade beneditino Guillermo Arboleda, a abadessa cisterciense Anne Emmanuelle Devéche e o padre canossiano Amedeo Cencini.
Ele realizaram longas sessões de escuta com o fundador (Bianchi), o novo prior eleito da comunidade (Luciano Manicardi) e todos os membros.
Depois dos visitantes submeterem seus relatórios ao Vaticano, o cardeal Pietro Parolin assinou um “decreto singular” em 13 de maio que ordenava Bianchi e outros três monges – dois irmãos e uma irmã – a se afastarem da comunidade com dez dias de notificação (o que aconteceu em 21 de maio).
O Papa Francisco aprovou o decreto da Secretaria de Estado in forma specifica, o que significa que a decisão é final e não pode ser recorrida.
Mas tem havido um impasse nos últimos nove meses. O fundador recusou a deixar Bose e ainda está vivendo em um eremitério próximo à comunidade monástica no sopé dos Alpes, não longe de Turim (1).
Foi solicitado pelo padre Cencini, que é o delegado pontifício, para pautar uma nova resolução contra Bianchi em 04 de janeiro. Ele deu ao fundador até 16 de fevereiro para se mudar para um pequeno mosteiro pertencente à comunidade em Cellole, uma cidade próxima a San Gimignano, na Toscana.
Mais uma vez, Bianchi, que fará 78 anos em março, não saiu.
Os problemas que a Comunidade de Bose está vivendo não são inteiramente novos na história recente da Igreja.
Em movimentos ou comunidades eclesiais recém fundadas, a transição de um fundador para o primeiro sucessor na posição de autoridade é naturalmente problemática.
Dada a história ainda jovem dessas comunidades nos anos seguintes ao Concílio Vaticano Segundo (1962-1965), esse tipo de transição é um dos elementos característicos do atual momento na história da Igreja Católica.
Também não é uma questão totalmente nova no longo período da história da Igreja. Normalmente associamos cismas na Igreja aos cismas papais. Mas a história também está repleta de cismas monásticos.
A situação de Bose, porém, é diferente das rupturas ocorridas em outras comunidades eclesiais e monásticas.
Uma diferença é o importante papel que desempenhou na Igreja italiana e europeia nos últimos 50 anos, por meio de seus esforços para promover o ecumenismo, a recepção do Concílio Vaticano II e a redescoberta da Sagrada Escritura.
Muitos de nós, incluindo este escritor, pertencemos à “geração Bose”. Ainda, fazemos parte de várias gerações de católicos (e não católicos) que redescobriram a fé cristã e um sensus Ecclesiae reconciliado, graças a esta comunidade que Bianchi fundou em 1965.
Mas a história de Bose também é diferente por causa da personalidade carismática de Bianchi, que teve uma visibilidade pública de longo alcance diferente de qualquer outro fundador na era pós-conciliar.
Pode-se traçar um certo paralelo entre Bianchi e Thomas Merton, como alguém que ajudou a reviver o interesse pela vida monástica e pelo ecumenismo; alguém que teve grande sucesso como escritor e como intelectual público; e alguém que tem sido onipresente na mídia católica e secular.
Obviamente, a comparação não é exata. Merton nunca fundou a sua própria comunidade e, devido à sua morte prematura e trágica em 1968, aos 53 anos, nunca teve que lidar com o problema da transição do seu patrimônio espiritual (mas também material).
Mas há também uma diferença, entre muitas, entre Bianchi e os fundadores de outras novas comunidades eclesiais (como Sant’Egídio, Focolares, o Caminho Neo-Catecumenal...).
Bose é um mosteiro onde os membros escolhem livremente viver juntos em um ambiente monástico e uma regra monástica é uma parte fundamental da proposta.
Este tipo de comunidade é exatamente o tipo de entidade em que os problemas no exercício da autoridade e do poder espiritual podem facilmente assumir uma forma diferente e problemática, em comparação com outros movimentos onde os católicos leigos podem viver sua existência sem abandonar totalmente sua forma anterior de vida.
Aqueles que frequentaram o Mosteiro de Bose e suas fraternidades para retiros espirituais e cursos bíblicos, especialmente aqueles que permaneceram em contato com seus membros, há muito tempo têm uma noção e viram evidências de que algo como a crise atual estava se aproximando.
Na verdade, esta não é a primeira crise da história da Bose. É bem sabido, por exemplo, que um grupo de irmãs saiu em 2009.
Mas a situação piorou nos últimos anos com a questão da dupla autoridade, que surgiu dramaticamente por causa da forte personalidade do fundador.
A renúncia de Bianchi como prior em janeiro de 2017 (que ele havia anunciado muito antes) acabou sendo apenas nominal. Foi como se nunca tivesse ocorrido, a ponto de ele deslegitimar a autoridade de seu sucessor e de todos os outros oficiais eleitos pela comunidade.
Esta também é uma história bem conhecida em muitas comunidades eclesiais.
Mas a diferença neste caso foi a escolha de alavancar a popularidade generalizada de Bianchi contra a decisão do Papa e do secretário de Estado, alegando que essa decisão era parte de uma conspiração (sem o conhecimento de Francisco) destinada a silenciar o espírito ecumênico e evangélico de Bose.
Foi uma escolha grave para uma pessoa que se tornou referência eclesial – ainda mais por causa da sua vocação monástica.
Existem duas questões que devem ser consideradas.
O primeiro é a questão eclesial. Em cada comunidade, em uma situação de exceção, existem diferentes tipos e graus de autoridade legítima de tomada de decisão.
A crise de Bose nunca foi um problema que pudesse ser resolvido por artigos de opinião redigidos em jornais de grande circulação por amigos de um ou de outro partido.
Os irmãos e irmãs da comunidade viviam uma prolongada situação de angústia e mereciam uma resposta da Igreja ao seu pedido de ajuda.
Nunca houve dúvida de que, para Enzo Bianchi, a autoridade eclesiástica competente é a Igreja Católica e o Papa. Ele sempre foi claro que não existe autoridade ecumênica que possa resolver as tensões na comunidade.
O fundador da Bose é católico, assim como a grande maioria dos membros da comunidade. Dissidência é diferente de rebelião.
Mas parece aqui que o fundador usou sua popularidade pessoal entre as elites intelectuais italianas para desrespeitar publicamente a instituição e desobedecer ao papa.
Isso nos leva à questão da hermenêutica de Bose.
Vários jornalistas e personalidades conhecidas escreveram artigos ou comentaram nas redes sociais, oferecendo diferentes interpretações sobre o que está no cerne da atual crise da comunidade.
Eles usualmente têm sido de dois tipos.
Há aqueles que estiverem em Bose e reconhecem as grandes contribuições que Bianchi fez na promoção do ecumenismo, redescobrindo a patrística e ganhando uma melhor apreciação do Cristianismo Oriental.
Mas eles também sabem os limites dessa realidade monástica, e esperam e rezam para que Bose possa historicizar o fundador e reformular suas intuições.
E há aqueles que foram a Bose, principalmente porque estavam fascinados pela personalidade midiática de Bianchi ou pela profunda amizade pessoal com ele.
Esses dois tipos representam duas diferentes concepções de Igreja e sobre o que a comunidade de Bose realmente é.
Ninguém pode tirar nada de Enzo Bianchi, por sua imensa contribuição para a comunidade que criou e para toda a Igreja.
Sou um dos muitos cuja fé foi renovada e fortalecida tanto por Bianchi como pela comunidade que ele fundou, e serei sempre grato a eles e a ele. O problema é quando alguém se torna incapaz de distinguir o fundador da comunidade, mesmo diante de sérias distorções no exercício da autoridade.
O problema é quando o fundador é visto como o símbolo ou instrumento de um partido eclesial ou político a ser travado contra uma série de alvos ideológicos: um catolicismo supostamente ainda medieval, o Vaticano, os bispos, uma forma de monaquismo que não é ecumênico o suficiente e assim por diante.
O Papa Francisco advertiu a assembleia do Sínodo dos Bispos de 2015 a abandonar a “hermenêutica da conspiração”.
As palavras do papa, que não foram dirigidas apenas ao Sínodo, parecem ter caído em ouvidos surdos.
Da “hermenêutica da suspeição” do século 19 ao 20, a Igreja agora tem que lidar com a hermenêutica agora dominante da desconfiança sistemática da autoridade eclesial.
E isso não vale apenas para os tradicionalistas que se opõem ao Papa Francisco. No atual clima eclesial, os gritos de conspiração lançados contra o Vaticano e a instituição eclesiástica serão sempre aplaudidos.
Enzo Bianchi foi para mim pessoalmente um professor do sensus Ecclesiae e me espanta que esse tipo de ressentimento anti-institucional, que vê tramas tramadas por toda parte contra um verdadeiro Cristianismo utópico, tenha se reunido ao seu redor.
É um falso ecumenismo que leva a se distanciar da própria Igreja por causa do ressentimento.
A Igreja tem um aspecto institucional que é essencial. Simplesmente não é verdade que os direitos fundamentais de Bianchi e dos três outros membros da comunidade não foram respeitados.
O Vaticano os informou por escrito por que os decretos papais aprovados foram emitidos. Por respeito, informou apenas a eles.
As demandas por total transparência e responsabilidade – mesmo neste caso – são frequentemente difíceis de distinguir das demandas mais iconoclastas que levariam a um novo “despojamento dos altares”.
O monaquismo também tem um aspecto institucional essencial.
A regra monástica é uma instituição que dá estrutura a uma determinada forma de vida dentro de um conceito de autoridade que liberta.
O carisma não é um fim em si mesmo, mas um instrumento ao serviço da comunidade e de toda a Igreja.
É evidente que nos últimos anos o exercício institucional da autoridade do fundador assumiu aspectos altamente problemáticos em Bose. A maneira como o fundador escolheu para lidar com sua própria renúncia e as consequências da visita apostólica revelaram uma dolorosa falta de sentido da instituição.
A visita apostólica e a decisão do Vaticano, por mais dolorosas que sejam, representam uma oportunidade para um recomeço – também para o fundador.
O atual impasse encontrará uma saída em algum ponto. Mas o caso de Bose também espera soluções em nível eclesial.
A maneira como alguns estão usando a crise de Bose para tentar dividir o catolicismo em diferentes partidos ideológicos diz muito sobre este momento na vida da Igreja.
1.- Enzo Bianchi, no momento, já vive na nova comunidade.
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Assumindo publicamente uma posição sobre a controvérsia de Bose. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU