20 Agosto 2020
Voltemos a falar de Bose e do seu ex-prior e fundador, Enzo Bianchi. Nesses últimos dois meses, lendo artigos que apareceram em algumas publicações, a situação não se pacificou em nada. Pelo contrário, de acordo com a Settimana News (uma revista online dos dehonianos), parece que Bianchi não deixou Bose, como lhe havia sido pedido pelo decreto vaticano, mas ainda está em Bose.
A esse respeito, o artigo afirma: “Continua sendo difícil de interpretar a persistente presença do fundador em Bose”. Depois de um dia, no dia 15 de agosto, com um tuíte, chegou a amarga e dolorosa desmentida de Enzo Bianchi: “Não deem ouvidos a notícias fantasiosas sobre mim. Afastei-me da comunidade há três meses, sem ter tido mais contato com ela. Vivo em radical solidão em um eremitério fora da comunidade e, dadas as minhas condições de saúde (não sou mais autônomo), tenho um irmão que me visita. Amém”.
Non ascoltate notizie fantasiose su di me. Mi sono allontanato dalla comunità da tre mesi,senza aver avuto più contatti con essa .Vivo in radicale solitudine in un eremo fuori comunità e date le mie condizioni di salute (non sono più autonomo)ho un fratello che mi visita. Amen
— enzo bianchi (@enzobianchi7) August 15, 2020
Mas como está a situação? Tentamos entender, nesta entrevista, com Riccardo Larini, ex-monge de Bose e pessoa muito próxima da comunidade.
A entrevista é de Pierluigi Mele, publicada por Confini, 19-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Larini, pelo que eu entendo, tudo está se encaminhando de forma muito ruim. O que você acha?
Acima de tudo, parece-me evidente que a situação é tratada de uma maneira, para usar um eufemismo, fortemente inadequada, especialmente por parte de quem tem ou deveria ter a autoridade necessária para promover o crescimento da comunidade e o diálogo entre as partes em conflito. De fato, não é possível que informações parciais e caluniosas sobre algumas das pessoas envolvidas saiam constantemente da comunidade, especialmente quando deveria ter sido iniciado um longo e cansativo processo de diálogo. Esse primeiro elemento me parece francamente muito grave, assim como me parece grave que alguns meios de comunicação católicos tenham retomado de forma muito parcial e tendenciosa esses “comunicados” provenientes do interior da comunidade, quase como se quisessem tomar partido em favor de uma das partes em conflito. Fiquei chocado com a falta de ética jornalística, de humanidade e de espírito evangélico que captei nas entrelinhas do artigo que você citou.
Que informações você tem sobre Bianchi?
O fundador de Bose, como ele mesmo disse, está atualmente no eremitério que, no início dos anos 2000, a comunidade concordou unanimemente que fosse construído para ele, também em vista o momento em que, deixando o priorado, ele se retiraria para viver afastado. É uma habitação fora da comunidade, com acesso viário independentes, totalmente idônea, em condições normais, para garantir plena autonomia a quem aí mora. Desde o início de junho, ele não participa mais, de forma alguma, da vida da comunidade, e só alguns irmãos estão autorizados a ter contato com ele, que lhe levam o necessário ou o ajudem a manter em ordem o eremitério e o terreno ao redor. Dada a idade e o enorme estresse que ele viveu nesses meses, ele está profundamente provado, tendo passado por sérios problemas de saúde, aliás.
Passemos ao decreto vaticano. Um decreto que a Santa Sé, inexplicavelmente, nunca publicou (e isso, honestamente, faz com que aumente a falta de clareza sobre todo o caso). Do que Bianchi é “acusado”? De interferência? De pressões? De abusos de poder? E o que lhe foi imposto?
Como você sabe, eu venho pedindo há meses a publicação integral do decreto, pelos óbvios motivos que você mesmo ressaltou. Estou entre aqueles (não poucos: nesta triste fase da história da Igreja, os corredores vaticanos têm uma vedação semelhante à do Titanic) que puderam lê-lo, por isso posso falar com conhecimento. O decreto vaticano compõe-se de prescrições dirigidas aos quatro membros que foram afastados e de indicações sobre a forma que a comunidade deverá assumir no futuro do ponto de vista canônico e litúrgico. Estas últimas pretendem enquadrar Bose, que até agora tinha sido juridicamente uma associação de leigos para proteger seus membros não católicos, no leito das congregações religiosas católicas de tipo monástico, pondo fim, ao mesmo tempo, às experiências litúrgicas que, na minha modesta opinião, estão na raiz da carga profética da comunidade (e que diversos papas apreciaram profundamente, como testemunha o fato de o Mons. Piero Marini ter usado constantemente os serviços de Bose para moldar as liturgias pontifícias, e de as traduções do Saltério por obra de Enzo Bianchi serem utilizadas por inúmeras paróquias e associações católicas). Entre estas, a pregação dos leigos e das mulheres.
Em relação às prescrições para as pessoas afastadas, a única acusação feita é de interferência no governo da comunidade. Não há nenhum vestígio nos textos vaticanos de abusos ou de pressões psicológicas de qualquer tipo. Os três irmãos e a irmã afastados receberam a ordem de não manter relações com outros membros da comunidade e de irem morar cada um em lugares diferentes. Como já se sabe, para três dos afastados, a medida é temporária, enquanto para Bianchi é por tempo indeterminado. Essa é a letra do procedimento, após o qual há alguns irmãos e irmãs que gostariam que fosse definitivo o afastamento do fundador de <strong">Bose e de qualquer pessoa que não seja hostil a ele, e que se esforçaram e estão se esforçando nessa direção. Digo isso com extrema tristeza, mas por dever de verdade, porque, como cristão, não acredito e não posso acreditar na palavra “definitiva” em uma situação desse tipo, quaisquer que sejam as causas, nem posso aceitar que, em um contexto monástico, não haja espaço para um caminho de reconciliação e de misericórdia.
Quais foram os erros de Bianchi?
Afirmo primeiro que eu não moro em Bose desde 2005, embora sempre tenha mantido contatos cordiais e fraternos com muitos irmãos e irmãs, visitando regularmente a comunidade e também dando aulas de teologia ecumênica aos noviços. A minha fonte, portanto, é a minha experiência em comunidade até aquele ano e os muitos boatos que infelizmente estão se espalhando dentro dela, muito divergentes e contraditórios, já que a comunidade está atualmente dividida em pelo menos três blocos.
Como eu sempre tive a coragem de falar na cara das pessoas, Enzo Bianchi sabe que eu considero um erro o fato de ele ter querido continuar participando da vida comunitária depois de deixar o priorado, embora ninguém imaginasse, mesmo que há apenas três anos, quando Manicardi foi eleito prior (com o máximo apoio de Bianchi), que poderiam florescer divisões tão fortes. Teria sido bom também para ele se distanciar, mas ele quis permanecer (legitimamente, diga-se, com grande clareza), embora arriscadamente, como irmão sui generis, fiador de um caminho e de uma série extraordinária de intuições, testemunhadas pelo fato de que não há uma única pedra em Bose ou nas suas fraternidades que não tenha sido pensada e levantada por ele. No entanto, preciso dizer que ele fez isso à luz do sol, comunicando-o desde o início, de forma muito clara, por exemplo no seu discurso (público e publicado) de despedida do priorado. E ninguém, nem mesmo entre aqueles que hoje o contestam profundamente (e que até há menos de três anos, para ser muito preciso, eram todos seus fidelíssimos colaboradores de uma vida inteira), teve a coragem de dizer que não concordava quando era o momento certo, nem, pelo que eu sei, até a chegada dos “inspetores” vaticanos até o inverno passado.
Em 2014, foi o próprio Bianchi quem pediu, segundo uma fórmula que tínhamos pensado juntos quando eu ainda estava na comunidade em 2003, e que muitos irmãos e irmãs também não queriam adotar, por estarem horrorizados com a possibilidade de interferências externas, uma visita fraterna de guias monásticos de comunidades vizinhas, das quais, ao contrário do que alguns afirmam, não veio à tona nenhum grave elemento em relação ao então prior e fundador, que alguns anos depois, como pré-anunciado desde o ano 2000, começou espontaneamente (e não depois de tal “visita” de 2014) a sucessão ao priorado.
No entanto, pelo que eu sei também por meio de diversas pessoas muito equilibradas dentro da comunidade, que não querem tomar partido e que, neste momento, têm medo de falar, o fundador da Bose não mudou “para pior” em comparação com os anos em que eu estava presente pessoalmente na comunidade. Por isso, acho que posso excluir problemas sérios ligados a violências psicológicas e abusos de poder. Embora não seja difícil para mim imaginar que o seu comportamento pode ter sido para alguns uma ingerência no governo da comunidade. Uma personalidade extraordinária e forte como a dele está destinada a ter um forte impacto também mediante apenas a sua presença física, e certamente ele pode ter dito algumas palavras de desaprovação à obra de Manicardi, mas isso certamente não o torna um monstro.
Sabemos como é difícil a relação, na dinâmica da vida religiosa, entre o fundador e o governo da comunidade por ele fundada. E recentemente houve casos semelhantes na Igreja Católica, que levaram à remoção do fundador. Mas, no caso do Bose, você acha que há uma obstinação contra Bianchi?
Infelizmente, a minha resposta é: absolutamente sim. Não é preciso um diploma de psicologia para compreender isso. As vozes mais “veementes” contra Bianchi são em grande parte aquelas de quem era mais fiel a ele, e não por anos, mas sim por décadas, desposando e endossando em tudo cada decisão e comportamento dele, sem nunca questionar nada (assumindo que houvesse coisas a questionar). Alguns amigos da comunidade me ligaram abalados depois de conversarem com algumas irmãs e irmãos de Bose que lhes explicaram como a comunidade só poderia viver se Enzo desaparecesse para sempre (palavras textuais) do seu horizonte e, com ele, qualquer pessoa que não desposasse a narrativa daqueles que, repentinamente, começaram a contestá-lo.
Chegou-se a tais níveis de irracionalidade a ponto de se pressionar o plenipotenciário da Santa Sé para que Enzo também deixasse o seu eremitério o quanto antes, como se, hoje em dia, com a tecnologia de que todos dispõem, uma maior distância física pudesse impedir eventuais contatos “ilícitos” entre membros da comunidade e o seu fundador. E negando, de fato, ao próprio Bianchi, a calma necessária para identificar um lugar diferente aonde pudesse ir para passar, neste momento muito provavelmente, o resto dos seus dias, continuando a desempenhar um ministério que ninguém, começando pelo Papa Francisco, pretende lhe negar ou tirar. Um conhecido teólogo italiano definiu a situação como um “parricídio freudiano”, e eu temo que infelizmente ele tenha razão.
Como a comunidade e os seus responsáveis estão reagindo a este “terremoto”?
Quanto aos responsáveis, incluindo aqueles enviados de fora para supervisionar em nome do exercício da jurisdição direta do papa sobre todos os fiéis católicos, eu acho que já dei claramente a minha opinião e honestamente estou estarrecido com o fato de que continuam vindo à tona tantos boatos da comunidade sem um controle eficaz, mas, pior ainda, sem que se intua o início de algum processo real de diálogo e de pacificação das almas liderado pelas autoridades prepostas.
Pelo contrário, de fora, capta-se um sentimento de raiva verdadeiramente funesto por parte de alguns, alimentado também por pessoas que detêm funções importantes no mosteiro. A comunidade sofre, parece-me claro, e com ela sofrem todos aqueles que, como eu, a amam profundamente. Desde o momento da renúncia de Bianchi, há três anos, muitos saíram da comunidade, e fala-se de mais de uma dezena de casos até mesmo depois da visita canônica (excluindo os afastados). E é intelectualmente desonesto sugerir que haveria uma “comunidade contra Bianchi”, acabando assim por fazer convergir toda a atenção e eventuais acusações inteiramente sobre o fundador de Bose.
Há uma comunidade dividida, porque não soube viver uma transição epocal e difícil, como humanamente pode acontecer com quatro pessoas afastadas, alguns que gostariam de se enfurecer ainda mais e um consistente grupo de pessoas que se inclinam por um dos dois lados, mas que, acima de tudo, gostariam de um verdadeiro caminho de paz, e que estão abaladas. E eu sinceramente acredito que os irmãos e as irmãs de Bose mereceriam sinais de esperança, depois de todas as sementes de dilaceração que foram semeadas, e de uma esperança que não se baseie no “fim” de ninguém.
Na sua opinião, de quem partiu o pedido de intervenção do Vaticano?
Honestamente, não sei, nem encontrei respostas certas. Mas, neste ponto, parece-me que isso importa bem pouco.
Dois meses após a eclosão do caso, você conseguiu entender, na medida do possível, os objetivos do delegado apostólico ou do Vaticano?
Na realidade, já são três meses... Como eu já disse na minha primeira entrevista, eu tenho muito pouco interesse em jogos de poder, inclusive os dos palácios vaticanos. Além disso, eu não estou nem na cabeça do Pe. Cencini, nem na de quem o enviou, nem na muito nobre do Papa Francisco.
O silêncio da Igreja italiana é desconcertante. Sequer uma tentativa de mediação foi tentada? Por que não defender um fruto rico nascido do Evangelho e do Concílio?
Eu ouvi falar imediatamente de arcebispos e cardeais indignados com as modalidades de intervenção e as decisões tomadas tanto em relação à comunidade quanto ao seu fundador e aos seus membros “afastados”. Quanto a mim, acima de tudo, eu escrevi imediatamente em maio a Manicardi e a Bianchi, oferecendo-me para mediar, e depois escrevi também ao ecônomo de Bose, Guido Dotti, muito ativo nos contatos com a imprensa, mas apenas Bianchi me respondeu, aceitando a minha oferta, enquanto os outros nunca me escreveram uma única linha de confirmação de recebimento da minha mensagem.
Depois, tentei contatar alguns bispos amigos, oferecendo a minha ajuda com discrição e pedindo-lhes que me ajudassem a compreender e a dar os passos mais oportunos para poder ajudar. Mas encontrei um silêncio ensurdecedor. As únicas vozes claras que imediatamente falaram bem de Bianchi, defendendo tanto Bose quanto ele de acusações de sabe-se lá qual tipo, foram as de Dom Bettazzi e do cardeal Ravasi, a quem vai o agradecimento meu e de todos aqueles que trazem essa história no coração. Quanto ao resto, espero que os amados “príncipes da Igreja” deixem de se comportar como tantos Nicodemos, mas encontrem a coragem de intervir em uma situação gerida até hoje de modo verdadeiramente pouco cristão.
Para a “geração Bose”, citando o historiador do cristianismo Massimo Faggioli, é um grande sofrimento. Muitos deles estão se perguntando: o que restará da experiência profética dessa história?
Eu especifico que me reconheço apenas em parte na definição bastante eficaz do amigo Massimo Faggioli, alguns anos mais jovem do que eu, no sentido de que eu considero a verdadeira “geração Bose” à qual ele alude como um fenômeno que se desenvolveu sobretudo a partir de segunda metade dos anos 1990, quando houve um forte aumento nos fluxos de hospitalidade, devido à crescente popularidade de Bianchi e das Edições Qiqajon, e uma notável diversificação dos visitantes da comunidade.
Muitos dos novos jovens estavam em busca de espiritualidade, com menos consciência da dimensão profética (e até política) da fé em comparação com as primeiras gerações de visitantes a Bose. Digo isso porque aquele tipo de profecia provavelmente já havia sido notavelmente atenuada com as novas entradas na comunidade de noviços e noviças de uma origem cultural e eclesial diferente durante os anos 1990. É claro que, como eu já disse em outras ocasiões, o papel fundamental, eu diria até único, de Bose desde o princípio e ao longo do tempo no seio do mundo das comunidades religiosas italianas é o fato de ser um lugar de estudo, liberdade e pensamento, que faz e fez respirar um número enorme de pessoas em tempos de progressivo enrijecimento e de viradas “para a direita” e para os falsos tradicionalismos do panorama cultural do cristianismo italiano.
Os protagonistas dessa história, sem dúvida, foram muitos, graças à extraordinária capacidade de Enzo Bianchi de favorecer o crescimento humano e cultural dos seus coirmãos e coirmãs. Mas é claro que a falta de um estímulo do seu nível certamente terá um impacto sobre o futuro da comunidade, independentemente de como as tensões atuais forem resolvidas. Se, por outro lado, aquilo que você quer me perguntar é o que será de Bose, de forma mais geral, adiemos a resposta para uma eventual próxima entrevista. Agora, a única esperança seria e é contra spem. E é isso que nos torna cristãos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O Vaticano quis enquadrar a Comunidade de Bose. Bianchi não é um monstro.” Entrevista com Riccardo Larini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU