Quando começou a escrever o romance Torto Arado, o baiano de Salvador (BA) Itamar Vieira Junior, hoje com 41 anos, não sabia quais rumos o livro tomaria. Ele tinha apenas 16 quando deu vida a duas irmãs descendentes de quilombolas, nascidas e criadas no sertão da Bahia, na região da Chapada Diamantina. A adolescência ainda não havia lhe trazido a maturidade que chegaria mais tarde, com as vivências e carreira profissional, que lhe permitiu finalizar, anos depois, o romance vencedor do Prêmio Jabuti de 2020, que desde o último mês de dezembro figura entre os livros mais vendidos no país.
O reconhecimento pela obra chegou antes em Portugal, onde Torto Arado foi premiado em 2018 pelo Leya, importante premiação destinada a obras de língua portuguesa. Também no país europeu, Itamar venceu o Prêmio Oceanos, em 2020. O romance finalizado, publicado no Brasil pela editora Todavia, acompanha a história das irmãs Bibiana e Belonisia, no sertão da Bahia, tendo como elemento central o direito à terra, ao retratar um Brasil preso ao passado escravista. As meninas são descendentes de quilombolas e crescem em uma comunidade de trabalhadores rurais, entre a rotina do campo, marcada pela servidão, e as tradições religiosas afro-brasileiras. Ainda na infância, um acidente com uma faca, narrado no primeiro capítulo, as torna intimamente ligadas.
O livro, que traz influências de romances ambientados no Nordeste brasileiro, de romancistas como Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, além do poeta João Cabral de Melo Neto, reúne acúmulos da trajetória de 15 anos de Itamar como servidor público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela condução da reforma agrária no país, que encontra-se paralisada atualmente. “Eu estava completamente influenciado, e comecei a escrever uma história que também se passava [no Nordeste], que tinha como mote a terra, o direito à terra. Claro, eu não tinha maturidade para escrever esse romance. Eu cheguei a escrever 80 páginas, mas essas páginas se perderam numa mudança que fizemos”, conta o escritor.
Itamar, que também é geógrafo e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), lembra que não foram poucas as vezes em que presenciou trabalhadores em condições análogas à escravidão durante seu trabalho como servidor do Incra. “Talvez o desejo de escrever esse romance tenha renascido justamente disso, de encontrar um Brasil profundamente marcado por um passado mal resolvido. [Como servidor do Incra], encontrei muitos trabalhadores vivendo em condição de servidão, vivendo como agregados em fazendas, sem direito à terra, com direito à moradia precária, porque não é possível construir casas de alvenaria, porque elas demarcam o tempo da pessoa com a terra.” Itamar Vieira Junior também viu de perto a realidade do campo, marcada pelos conflitos fundiários que fizeram 32 vítimas fatais somente em 2019, conforme dados divulgados em 2020 pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). “O campo é um lugar de muitas tensões. Parece que é um Brasil que está encalhado ali, no passado, que resiste em ser superado", pontua. "Eu vi muitos trabalhadores que conheci ao longo desses 15 anos morrerem nesses conflitos fundiários, tudo isso me marcou de uma maneira muito forte, e atravessa o romance.”
Capa da edição brasileira do livro 'Torto Arado', de Itamar Vieira Junior (Foto: Divulgação)
Leitor desde a infância, Itamar celebra a excelente aceitação do livro, tanto pela crítica quanto pelo público de leitores. Autor de dois livros de contos: Dias (2012) e A Oração do Carrasco (2017), o escritor considera que Torto Arado é uma contribuição pequena para colocar em debate temas como a realidade do campo e o direito à terra, mas destaca o poder da literatura “de nos transferir para o lugar do outro”. “É uma forma de levar a realidade do campo brasileiro, a realidade do trabalhador rural, do trabalhador quilombola, do indígena, para que essas pessoas tomem conhecimento e possam estar mais atentas também a essas questões, que dizem respeito a todos nós." Ele cita como exemplo o alimento que chega à mesa da população, produzido, em sua maior parte, pelos pequenos e médios agricultores. "O grande agricultor, o grande latifundiário, o agronegócio, ele produz commodities para exportação. Então, a segurança alimentar de todo brasileiro passa, também, pelo trabalho dessas pessoas. Nossas vidas estão intimamente ligadas. Eu acho que o romance tem mostrado isso para as pessoas, para os leitores”, aponta. Para além das celebridades e críticos literários que fazem questão de compartilhar suas experiências de leitura em páginas da internet e nas redes sociais, o desejo de Itamar é que seu livro chegue a comunidades de trabalhadores como aquela retratada em Torto Arado.
“Eu não gostaria que esse fosse o único e último romance a falar sobre o campo brasileiro, sobre essa realidade tão diversa e tão profunda. Eu queria que ele fosse visto como começo e, quem sabe, as próximas histórias não serão contadas por eles próprios, pelos próprios trabalhadores, pelas próprias pessoas que vivem no campo", reflete. O autor espera que a história das irmãs Belonisia e Bibiana, que também é uma história de reconhecimento e empoderamento, seja compartilhada entre os trabalhadores e trabalhadoras que vivem a realidade do campo. "Esse é o meu sonho, o meu desejo, que eles se empoderem e que, a partir de suas histórias, contem que esse Brasil é múltiplo e diverso.” Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, o escritor fala sobre o romance Torto Arado e reflete sobre temáticas presentes no livro, como o direito à terra, educação e ancestralidade.
A entrevista é Geisa Marques, publicada por Brasil de Fato, 10-02-2020.
Torto Arado é um romance que você começou a escrever ainda na adolescência, mas ele traz muitos elementos que são fruto de uma bagagem, de consciência política, como é o caso do tema central de luta pela terra, exploração do trabalho, memória e ancestralidade. Como foi sua trajetória para a escrita do livro, que também traz muito da sua biografia e da sua carreira profissional como servidor do Incra?
Torto Arado, como você bem disse, é um romance que me acompanha há muito tempo. A primeira tentativa de escrevê-lo foi na adolescência ainda, eu tinha só 16 anos, mas estava profundamente marcado pelas leituras dos romances da geração de 30 e 45, principalmente os romances que se passam no Nordeste brasileiro, aí temos a Rachel de Queiroz, o Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, são muitos.
Eu incluiria também o poeta João Cabral de Melo Neto, que foi uma leitura desse período, e o Guimarães Rosa com Grande Sertão: Veredas.
Eu estava completamente influenciado, e comecei a escrever uma história que também se passava, que tinha como mote a terra, o direito à terra. Claro, eu não tinha maturidade pra escrever esse romance. Eu cheguei a escrever 80 páginas, mas essas páginas se perderam numa mudança que fizemos.
Depois eu comecei a cursar Geografia na universidade e dei continuidade aos estudos acadêmicos até o nível de doutorado. E também, nesse ínterim, prestei concurso público em 2005, e fui trabalhar no Incra. Comecei trabalhando no estado do Maranhão e, depois de três anos, voltei pra Bahia.
Tenho dito isso nas entrevistas, que trabalhar no Incra é um privilégio pra mim. De fato, foi uma grande escola - é uma grande escola, porque eu continuo trabalhando lá - já tenho 15 anos trabalhando lá. Muitas pessoas acham clichê, mas eu gosto muito dessa expressão "Brasil profundo", porque fala de raízes, de história, então eu pude conhecer esse Brasil profundo a partir desse trabalho que eu tenho no Incra.
Eu sempre digo que trocaria todos os meus títulos acadêmicos, trocaria tudo, pelo que aprendi entre os trabalhadores rurais. Meu primeiro contato com trabalhadores rurais, acampados, assentados, agricultores familiares, quilombolas, indígenas, ribeirinhos foi com esse trabalho, e de lá pra cá muita coisa eu pude aprender.
Então, tudo que existe, embora Torto Arado seja um história ficcional, tenha personagens ficcionais, se passe numa localidade ficcional, muito do que aparece no romance eu aprendi de fato com esses trabalhadores. Tudo que diz respeito à terra, ao ciclo do trabalho, do plantio, da colheita.
Eu costumo dizer que Torto Arado é uma declaração de amor à terra. Mas essa declaração de amor à terra não é do Itamar. É uma declaração que me foi transmitida inúmeras vezes pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais. Acho que sem minha experiência como servidor público, sem essa trajetória que eu tive - e que ainda tenho - ao lado dos trabalhadores, esse trabalho não teria a profundidade, talvez, que ele tem.
Você falou que o Incra é uma escola pra você e que nesses 15 anos como servidor ouviu muitas histórias de amor à terra, mas imagino que não somente histórias de amor, mas também histórias tristes que existem no meio rural, que envolvem a exploração de mão de obra, pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão, essa que, infelizmente, ainda é uma realidade muito presente no Brasil, e que muitas vezes permanece invisível. O quanto você presenciou de histórias assim, como essas que são contadas no livro?
Muitas vezes. Muitas vezes eu presenciei essa história. E talvez o desejo de escrever esse romance tenha renascido justamente disso, de encontrar um Brasil profundamente marcado por um passado mal resolvido.
Encontrei muitos trabalhadores vivendo em condição de servidão, vivendo como agregados em fazendas, sem direito à terra, com direito à moradia precária, porque não é possível construir casas de alvenaria, porque elas demarcam o tempo da pessoa com a terra, e as casas de barro, de pau a pique, podem ser desfeitas facilmente e não deixam resquícios da presença daquelas pessoas ali.
O campo vive uma violência permanente ainda, é um lugar de muitas tensões. Parece que é um Brasil que está encalhado ali, no passado, que resiste em ser superado. Eu vi muitos trabalhadores que eu conhecia, ao longo desses 15 anos, morrerem nesses conflitos fundiários. Tudo isso me marcou de uma maneira muito forte e atravessa o romance.
Eu fico pensando assim, eu continuei estudando e, depois, no doutorado, me dediquei a estudar o processo de regularização fundiária de comunidades quilombolas, especialmente de uma comunidade quilombola. E, assim, tudo isso resultou num grande texto. Eu fiz a minha pós-graduação com o auxílio do Incra. O Incra me permitiu naquele período estudar, me deu todas as condições para que eu pudesse realizar esse trabalho. Era uma espécie de qualificação.
A gente sabe que o alcance [de um trabalho acadêmico] não é muito grande. Ele é um trabalho muitas vezes rígido e fica muito restrito ao círculo acadêmico, ao círculo das pessoas que estudam, naquele campo, e mesmo assim não circula.
Me lembro que eu já escrevia, tinha dois livros de contos publicados, já escrevi outros romances que não publiquei, mas esse romance, a ideia de Torto Arado nunca me abandonou. Então, eu resolvi escrever.
Como sou um leitor desde muito tempo, desde a infância, eu sei que a literatura tem esse poder de nos transferir pro lugar do outro, de nos colocar no lugar do outro. E eu fico muito satisfeito, muito feliz de ver toda essa divulgação que o livro tem tido.
O reconhecimento dos prêmios ajuda com isso também, mas principalmente os leitores que, de boca a boca, vão indicando o livro. E eu vejo que muitas pessoas ficam sensibilizadas com essa história.
É uma forma de levar a realidade do campo brasileiro, a realidade do trabalhador rural, do trabalhador quilombola, do indígena, para que essas pessoas tomem conhecimento e possam estar mais atentas também a essas questões, que dizem respeito a todos nós.
O alimento que chega à nossa mesa é produzido em grande medida pelo pequeno e médio agricultor. O grande agricultor, o grande latifundiário, o agronegócio produz commodities para exportação. Então, a segurança alimentar de todo brasileiro passa, também, pelo trabalho dessas pessoas. Nossas vidas estão intimamente ligadas. Acho que o romance tem mostrado isso para as pessoas, para os leitores.
Sua tese de doutorado, que você mencionou na resposta anterior, é sobre o processo de regularização fundiária da comunidade quilombola de Iúna, que fica em Lençóis, na Chapada Diamantina (BA). E essa comunidade, inclusive, foi palco de uma chacina, em 2017, que vitimou seis pessoas. Em 2019, conforme os últimos dados da Comissão Pastoral da Terra, foram 32 assassinatos decorrentes de conflitos no campo. Como você vê esse cenário que temos hoje, com processos de reforma agrária paralisados, e quais são os caminhos, os mecanismos, que a gente tem, mas que não têm sido usados para coibir esses conflitos - que seguem fazendo vítimas fatais - e garantir, de fato, o direito à terra?
A questão da terra passa por muitas coisas e vem de uma escolha que o Brasil fez no passado de dar direito à terra apenas a quem podia comprá-la. E, claro, pouquíssimas pessoas podiam comprá-la, e nem todos que chegaram a tê-la, chegaram a gozar do domínio da terra, as compraram.
Então, tudo isso, de alguma forma, reflete nessa tragédia social brasileira, que é a falta de acesso à terra, principalmente pelas camadas mais vulneráveis da sociedade. E aí estão as comunidades tradicionais, os trabalhadores sem terra, todos eles fazem parte disso.
Ao longo de um século, o Brasil fez inúmeras iniciativas de reforma agrária. Algumas avançaram um pouquinho, outras não conseguiram avançar. E, nos últimos anos, a gente tem um retrocesso imenso. Parece que o Programa Nacional de Reforma Agrária foi abandonado pelos governantes.
A gente precisa ter muito claro que se trata de uma política de Estado. É uma política que está na Constituição Federal. Independente de um político, da sua filiação ideológica, o que ele deve cumprir é, de fato, o que está na Constituição, que é direito de todo brasileiro. E isso vem sendo negado, principalmente aos trabalhadores rurais.
Há muitos trabalhadores acampados, que ainda não foram assentados. Há assentamentos que estão completamente desassistidos. Há também a regularização de território quilombola, indígena, que se encontra paralisada.
A gente tem atendido às demandas judiciais - que são muitas - pra se fazer valer os direitos desses trabalhadores. Mas a política mesmo, que deveria ser feita, a continuidade de todos esses processos é paralisada a todo momento, por inúmeras razões: acusações contra servidores, dizendo que houve um desvio de função, desvio ideológico para aplicação das políticas.
A despeito de paralisar as políticas, dizem que estão auditando os processos. Isso é uma coisa que sempre acontece, ou então a supressão de recursos.
Os recursos destinados ao trabalho de campo, à aquisição de terra, à assistência técnica dos trabalhadores rurais, tudo isso tem passado por profundos cortes nos últimos quatro anos, e isso tem refletido sobremaneira nesses números, nesse índice, por exemplo, que você colocou, que a Pastoral da Terra divulga anualmente dos conflitos fundiários.
Só pra você ter uma ideia, durante muitos anos, eu participei de inúmeras reuniões da Câmara da Ouvidoria Agrária, que se tornou a Câmara de Conciliação Agrária, para justamente mitigar esses conflitos. Então, tínhamos reuniões mensais. Isso envolvia um ouvidor nacional, acompanhado sempre de muitas pessoas, de muitos servidores, que poderiam estar ajudando a mitigar aqueles conflitos. E tudo isso paralisou nos últimos anos.
É com grande preocupação que a gente tem acompanhado todo o desmonte dessa política de regularização fundiária e reforma agrária. Eu vejo os movimentos ainda organizados, e acho que a instância civil está ali batalhando pelos direitos de seus grupos.
O Brasil precisa ainda de educação. Precisamos estar discutindo, precisamos levar esse tema ao debate público, cada vez mais, para poder fazer com que essa história, com que essas questões ganhem a atenção devida.
Eu sei que o romance é algo muito pequeno perto de tudo que eles precisam, de tudo que eles passam. Mas, de alguma forma, como eu tenho sido provocado a todo momento a falar sobre o romance, sobre essa realidade no campo e até mesmo sobre o meu percurso como servidor e como pesquisador acompanhando as questões da terra, tudo isso coloca um tanto em evidência essa questão. Mas ainda é muito pouco.
De fato, eu acho que as transformações que a gente precisa vão advir da educação, de uma educação massiva da população. Só assim que a gente vai dar voz e prosseguir com essas políticas de reparação que são tão necessárias, e que passam por tudo.
Como eu disse, a segurança alimentar de um país de quase 220 milhões de habitantes passa pelo campo e passa pelos agricultores, pelos camponeses, que precisam e que trabalham com isso. E nós, que precisamos também do seu trabalho. Para isso, a gente precisa dar condições de trabalho e dignidade, precisa fornecer fomentos, investimento, educação. Sem isso, a gente não consegue transformar esse país.
E é algo que não se encerra na titulação da terra, são necessárias outras políticas também, mais adiante. Terra, como nós sabemos, tem, o que falta é vontade política?
Exatamente. Terra tem, e é muita. Eu acho que precisa de vontade política para fazer valer esse direito, que não é um direito que nos é dado por um governo, é um direito que está na Carta que rege as leis desse país, é um direito constitucional. Para que ele deixe de existir, é preciso mudar a Constituição. E estamos com essa Constituição desde 1988. A gente precisa, de fato, fazer valer o que está ali.
Outro ponto que você aborda no livro é a educação e o conhecimento como meio de reconstrução do passado, de resgate da própria história - que muitas vezes não é contada. Para você, qual é o valor da ancestralidade - que é muito presente no romance - e a importância de se conhecer essas histórias para, então, compreender a sua condição no mundo, quais são suas lutas?
Importantíssimo. E o romance dá uma mostra muito pequena do que é isso, o valor de se conhecer a própria história, a sua própria ancestralidade. As circunstâncias que os levaram a viver aquela realidade de vulnerabilidade, muitas vezes de exclusão em si.
E ali no romance a gente tem uma família, uma comunidade de trabalhadores, que ao longo do tempo, com os intercâmbios que vão estabelecendo com outros grupos, eles [os personagens] vão se reconhecendo quilombolas e vão assumindo essa identidade.
Mas isso não é assumido de uma hora pra outra. Pra assumir, pra se reconhecer, é preciso conhecer, é preciso aprender, se educar. A palavra educação vem do latim ex-ducere, quer dizer sair de si para o outro, sair de si para fora, e educação é isso.
Então, o romance vai mostrando como isso vai sendo construído, à medida que eles vão entendendo que eles descendem de escravizados que não tiveram nenhum direito quando foram libertos.
A reforma agrária já era uma reivindicação muito forte dos abolicionistas naquele período, mas ela não foi emplacada naquele momento, então, aqueles trabalhadores que eram escravizados passaram a viver errantes ou nas fazendas onde já serviam. E, claro, eles não recebiam remuneração, só tinham o direito de permanecer ali, tendo seu trabalho explorado.
O romance vai estabelecendo essa conexão. E à medida que as personagens vão conhecendo esse passado, elas vão se empoderando, elas vão criando domínio da situação, e veem que aquela terra, onde as famílias estão ancestralmente, há quase cinco gerações, lhes pertence também, porque é seu território.
E aí eu vou evocar uma legislação que é muito importante, que diz respeito a isso. O Brasil é signatário de uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a convenção 169 da OIT, desde o fim da década de 80.
O Brasil participou e ratificou essa convenção no início dos anos 2000. Essa convenção fala do direito ao território que os povos originários, os povos indígenas - ainda utilizam um termo que caiu em desuso “indígenas e tribais” - no mundo todo têm direito.
Se você for olhar os processos históricos da América, de Norte a Sul, a formação de comunidades afrodescendentes, por exemplo, de comunidades que no Brasil são chamadas de quilombolas, mas que em outros países ganharam outros nomes - os creoles, na Nicarágua, os maroons, no Suriname; os cimarrones, na Colômbia; os garífunas, em Belize - então, é uma realidade que diz respeito à diáspora africana, que diz respeito a essa diáspora que é parte da nossa história.
Então, conhecer a nossa história, assim como as personagens de origem humilde vão construindo esse conhecimento sobre a sua própria história, isso nos mostra como educação, como conhecimento pode nos empoderar e pode ser o começo de ruptura com esse ciclo de exploração ancestral que esse país vive.
Ali está uma pequena amostra. O romance é algo muito pequeno perto da realidade. Mas isso serve de exemplo pra gente saber qual o papel da educação, qual o papel de se conhecer a própria história, de resgatar a ancestralidade.
A gente vai encontrando o nosso lugar no mundo, e encontrar o nosso lugar no mundo é nos reconhecer como cidadãos plenos de direitos. Eu acho que passa por isso.
O livro tem tido uma excelente recepção pela crítica literária e também pelos leitores, que fazem questão de compartilhar com você, especialmente pelas redes sociais, como foi a experiência de leitura de Torto Arado. Como você tem visto toda essa repercussão e onde você gostaria de ver essa história chegar e ser compartilhada?
É muito interessante, porque quando eu escrevi esse livro, já na segunda versão, eu tinha essa pretensão de contar uma história que talvez não fosse conhecida de muitos brasileiros. À medida que as pessoas vão lendo o livro, eu não sabia que o livro faria esse percurso, e o livro pouco a pouco foi ganhando terreno, ganhando leitores.
Quando eu vi o livro fazendo esse percurso, as pessoas começaram a me procurar para falar que o livro lembrou da memória, reavivou as memórias afetivas, familiares, ancestrais, de muitos. Outros que nunca viveram essa realidade ficaram profundamente comovidos.
Tudo isso tem sido surpreendente, pessoas de Norte a Sul do país, de fora do país - porque o livro está ganhando edições estrangeiras - essas pessoas têm me procurado para falar sobre a sua experiência de leitura, eu acho tudo isso muito valioso.
E você me perguntou onde eu gostaria que o livro chegasse. O livro foi publicado primeiro em Portugal, por conta do Prêmio Leya, ele venceu um prêmio como original ainda, e foi publicado lá. Aí depois saiu a edição brasileira. Eu lembro que as primeiras pessoas que eu enviei exemplares foi o povo da Iúna, da comunidade da Iúna, onde eu havia trabalhado. Eu fiz o mesmo com minha tese.
Eu lembro que eu dei minha tese a eles assim que foi defendida. Eu encadernei e disse: olha, isso aqui é um documento importante sobre vocês, a formação de vocês, e a história de vocês. Então, se algum dia vocês precisarem mostrar algum documento pra não perder o espaço onde vocês vivem, seja na justiça ou em qualquer outra instância, saibam que vocês têm isso aqui, vocês têm posse disso aqui.
[É um documento] feito a partir da pesquisa de um servidor, de um discente de universidade pública, com todo o apoio e financiamento que eu tive da universidade pública e do meu ambiente de trabalho. Então saibam que isso é um documento importante para vocês. Da mesma forma, eu fiz com o romance, encaminhei pra eles.
Eu gostaria muito é que todas as comunidades de trabalhadores, das mais diferentes origens, pudessem ler essa história, pudessem compartilhar essa história entre si e pudessem acrescer, porque eu não gostaria que esse fosse o único e último romance a falar sobre o campo brasileiro, sobre essa realidade tão diversa e tão profunda.
Eu queria que ele fosse visto como começo, e, quem sabe, as próximas histórias não serão contadas por eles próprios, pelos próprios trabalhadores, pelas próprias pessoas que vivem no campo. Esse é o meu sonho, o meu desejo, que eles se empoderem e que, a partir de suas histórias, contem que esse Brasil é múltiplo e diverso.
Você é um escritor negro e nordestino que está em um momento de muito sucesso e visibilidade em um mercado dominado por brancos. A sua introdução na carreira literária foi marcada por barreiras devido a esses fatores?
Foram muitas barreiras, mas elas não foram suficientes para me demover da ideia de continuar escrevendo, porque escrever era algo muito íntimo, muito antigo, que vem da minha infância. Então, só me restava procurar caminhos para fazer isso.
Cada um dos três livros foram publicados porque eu concorri de forma anônima, e o livro foi contemplado, venceu prêmios. Acho que agora, depois do sucesso de Torto Arado e de todos os prêmios que vieram depois da sua publicação, a minha relação com a literatura muda radicalmente, ela passa a se profissionalizar também.
Mas eu percebo que haviam inúmeras barreiras, mas nenhuma delas foi forte o suficiente para me demover, talvez, do que seja a minha vocação, porque eu encaro a escrita como uma vocação.
Então, da mesma forma, eu espero que isso sirva de exemplo para os inúmeros ouvintes que irão nos escutar, que estão nos lugares mais remotos do país, que não desistam dos seus sonhos, que não deixem que nada os destrua, por mais alto que seja o muro, ele não é indestrutível. Eu encontrei muitos muros em meu caminho, mas eles foram demovidos, a partir dessa persistência e de saber que nada podia me parar.
Quando os leitores terão uma nova história escrita por você publicada? Você disse, antes, que é um leitor desde a infância, o que você costuma ler?
Tenho lido muita coisa por circunstância de trabalho mesmo. Às vezes as pessoas me pedem texto pra uma revista, mas eu vou citar um romance que considero importante e que me fez ampliar o meu conhecimento sobre a história da diáspora africana, que é Os Senhores do Orvalho, do haitiano Jacques Roumain, que foi publicado no Brasil ano passado, mas é um romance antigo.
Eu vi muitas conexões entre Torto Arado e a realidade do campo brasileiro na realidade que é representada naquele romance do Jacques Roumain. É muito interessante, eu deixo essa dica pra quem tiver interesse, puder ir atrás pra ler.
Tenho alguns projeto de escrita, um livro de contos será publicado ainda este ano, mas é uma reedição de contos antigos com contos que foram escritos depois. E o projeto de um romance também, que ainda irá versar sobre a relação do homem com a terra, assim como Torto Arado.
A história se desloca para o recôncavo da Bahia. É uma terra que está sob domínio da Igreja. Não conto mais porque a gente só descobre à medida que vai escrevendo. Não me dei prazo para entregar, para concluir. Eu gosto de fazer tudo com meu vagar, acho que tudo acontece no tempo que tem que ser, mas espero entregar ao público algo à altura de Torto Arado.
Uma mensagem para finalizar a entrevista.
Eu queria dizer que a gente tem passado por um período muito duro, um período de retrocessos de direitos. Temos passado por um período duro também por conta da atual pandemia, que tem ceifado tantas vidas, algo coletivo. É uma tragédia coletiva, que não afeta somente o Brasil, afeta quase todos os países do mundo.
Mas deixo uma mensagem de que devemos ter esperança acima de tudo. Mas não uma esperança passiva, uma esperança engajada, que nossas ações sejam transformadoras da nossa realidade, sejam transformadoras do mundo que vivemos. E que essa esperança engajada possa nos dar o mundo que queremos: um mundo mais justo, mais humano, mais igualitário e com muito menos desigualdade do que hoje.