17 Junho 2010
Autor de Um futuro para o campo - Reforma Agrária e Desenvolvimento Social (Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2007), o professor Sérgio Pereira Leite concedeu a entrevista a seguir, por telefone, à IHU On-Line, na qual falou sobre a Reforma Agrária. Para ele, “não basta somente pensar a Reforma Agrária como política de combate à pobreza, mas também é fundamental pensar nela como uma política de desenvolvimento e como uma política de combate à desigualdade social”. Leite refletiu sobre a política brasileira em torno da Reforma Agrária, apresentando pesquisas que defendem o quanto ela ainda é necessária no Brasil.
Sérgio Pereira Leite é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp. Mestre em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas. Fez o pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (França). Hoje, é professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No livro Um futuro para o campo - Reforma Agrária e Desenvolvimento Social, o senhor explica o que é Reforma Agrária. Por que ainda é importante explicar essa questão?
Sérgio Pereira Leite – Apesar de estar presente na agenda política, econômica e social brasileira há muito tempo, essa é uma questão que ainda é atual, sobretudo quando constatamos dados como os do censo agropecuário brasileiro. Esse estudo foi feito, em 2006, pelo IBGE, e aponta que o Brasil ainda é um dos países com maior índice de concentração fundiária do planeta. Havia uma expectativa de que este censo revelasse uma concentração um pouco mais atenuada em relação à pesquisa feita em 1995, no entanto, as revisões que o IBGE fez demonstraram a permanência de um Índice de Gini [1] da terra extremamente elevado. Lembrando que quanto mais próximo de 1 está o Índice de Gini, maior é a concentração absoluta da terra; e quanto mais próximo de 0, significa que há uma maior distribuição dos ativos fundiários.
Assim, no caso brasileiro, o índice está acima de 0,85. Isso significa que existe uma concentração extremamente forte da propriedade fundiária no Brasil. Só esse fato justifica a atualidade do debate acerca da Reforma Agrária, que é uma forma de distribuir os ativos fundiários. Além disso, há uma quantidade grande de pessoas demandando terra, portanto, sem terra. Não se trata apenas de um distributivismo agrário, e sim de pensar em lógicas, em projetos de desenvolvimento efetivamente includentes.
Portanto, não basta somente pensar a Reforma Agrária como política de combate à pobreza, mas também é fundamental pensar nela como uma política de desenvolvimento e como uma política de combate à desigualdade social. Essas duas atribuições políticas de desenvolvimento e mecanismo de combate à desigualdade social são atributos estratégicos e atuais da Reforma Agrária hoje.
IHU On-Line – O que o senhor pensa do Brasil ter uma das maiores liberações de recursos para safras do mundo?
Sérgio Pereira Leite – Nos últimos oito anos, houve um aumento relativamente acentuado na oferta de recursos para esta finalidade quando comparamos, por exemplo, com as décadas de 1980 e 1990. Estamos trabalhando hoje com uma oferta de crédito bastante superior, e isso me parece um dado bem interessante no sentido de disponibilizar recursos para atividades produtivas no meio rural ligadas ao custeio e ao investimento agrícola.
Mas é preciso chamar atenção para a distribuição desSes recursos. O Brasil possui dois Ministérios para tratar das questões rurais: o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Na lógica da política de crédito rural, há um predomínio na oferta de recursos para os segmentos vinculados a uma agricultura mais empresarial em detrimento da agricultura familiar na distribuição global dos recursos. Porém, há de se constatar também um aumento importante na oferta de recursos do crédito para os agricultores familiares, ainda que eles absorvam uma quantidade na distribuição de recursos bem menor do que aquela destinada aos grandes e médios empreendimentos rurais.
Agora, por outro lado, o censo agropecuário de 2006 revela outra questão interessante que é a participação dos agricultores familiares na geração da riqueza. Apesar de ocuparem uma parcela de terra relativamente pequena quando comparado ao número total de hectares e estabelecimento agropecuários, eles geram empregos e produzem recursos e riquezas acima do percentual das terras que ocupam. Esses agricultores mostram que a agricultura familiar possui uma boa efetividade econômica, no sentido não só da eficácia e da eficiência, mas de uma certa capacidade de, com seus recursos e mão-de-obra, gerarem valores bastante expressivos. Neste sentido, poderia manter ou vir a fazer jus de uma parcela maior dos recursos direcionados ao crédito rural, mas, enfim, diria também que boa parte dos créditos agrícolas destinados à agricultura familiar é empréstimo que é devolvido às agências financiadoras, segundo a legislação.
No entanto, quando observamos, por exemplo, a destinação de créditos para o segmento de médio e grande porte da agricultura brasileira, a situação de endividamento é muito mais expressiva, o que tem gerado sucessivos pacotes do Governo Federal na renegociação destas dívidas. Já no que tange à capacidade de gestão do crédito, há bons indicadores na agricultura familiar, salvo determinados segmentos e modalidades de empréstimos.
IHU On-Line – O que o Brasil pode aprender com as experiências já realizadas em outros países?
Sérgio Pereira Leite – Em geral, podemos pensar que, se olharmos um conjunto significativo de países, tanto do lado ocidental quanto do lado oriental do planeta, parece evidente que todo o processo de crescimento e estratégia de desenvolvimento para as diferentes sociedades implica necessariamente numa prévia distribuição dos ativos fundiários. Pensar uma sociedade com maior grau de justiça social e de desenvolvimento implica em pensar uma sociedade que realizou, em algum momento de sua história, um efetivo processo de Reforma Agrária.
Essa conta, o Brasil ainda não fechou. Há experiências - tanto relacionadas às economias capitalistas ocidentais como a outras trajetórias - que vão mostrar que uma sociedade com condições de crescer e se desenvolver a passos mais amplos, mais prudentes e mais justos, com menor heterogeneidade social, realizou, em algum momento desta trajetória, uma distribuição destas terras. Vários resultados internacionais apontam nesta direção, e isso poderia ser aproveitado pelo Brasil. Alguma coisa já foi feita, como, por exemplo, a experiência dos assentamentos rurais. O impacto que eles produzem nas regiões onde são efetivamente criados mostra que há uma modificação sensível nas condições de vida da própria família comparada à sua situação anterior ao assentamento. Há diversas pesquisas que demonstram isso. Essas famílias têm maior segurança alimentar e dinamizam as regiões onde os assentamentos foram criados.
Eu me refiro aqui a uma dinamização econômica, a uma dinamização política, a uma dinamização social, mostrando que, em diferentes contextos, a presença dos assentamentos, por exemplo, reativou circuitos de comercialização, feiras, implicou na construção de unidades de beneficiamento, produção de sementes etc.
IHU On-Line – Analisando as propostas colocadas em jogo em relação às eleições deste ano, quando a Reforma Agrária, no Brasil, será realizada?
Sérgio Pereira Leite – Essa é uma pergunta difícil. Minha impressão é de que é preciso intensificar o ritmo de realização da política de assentamentos rurais do Brasil. Há diversas ordens de obstáculos e de elementos que implicam em certa morosidade do processo, inclusive na chamada fase judicial de desapropriação dos imóveis rurais. Porém, dado o contexto e a quantidade de pessoas que esse processo envolve, é preciso intensificar a realização da Reforma Agrária e o ritmo da implementação da política de assentamentos rurais do Brasil.
Espero que o próximo governo encampe e abrigue estrategicamente este programa de Reforma Agrária. Espero que não só o contemple, mas também estimule uma maior capacidade de implantação dos projetos, o que envolve não somente o Governo Federal, mas uma série de outros atores sociais vinculados à realização desta política, bem como a capacidade de pressão dos diferentes movimentos sociais rurais que demandam terras para assentamento das famílias que hoje se encontram excluídas deste processo social.
IHU On-Line – Como o senhor vê as possíveis mudanças que o Código Florestal brasileiro pode sofrer?
Sérgio Pereira Leite – É preciso pensar com muito cuidado as mudanças do Código Florestal, porque parte das demandas pela modificação da lei está mais relacionada a um movimento de expansão das atividades da grande lavoura, especialmente aquela direcionada à exportação. No ponto de vista da Reforma Agrária, é possível sim fazer e ampliar o número de assentamentos sem que para tanto seja necessário mexer no Código Florestal, que não deixa de ser uma demanda do segmento de produção de monoculturas em larga escala.
IHU On-Line – A revisão dos índices de produtividade pode colaborar com o início da Reforma Agrária efetiva no Brasil?
Sérgio Pereira Leite – Estou totalmente de acordo com isso. Segundo a Constituição Federal, para que você identifique uma terra que não cumpra sua função social e, portanto, seja passível de desapropriação para realização da Reforma Agrária, é preciso observar justamente, além do cumprimento da legislação trabalhista e do cumprimento da legislação ambiental, dois indicadores relacionados ao processo de eficiência econômica na exploração e no grau de utilização das terras.
O problema é como calcular estes dois indicadores. No momento, os cálculos são feitos ainda com base nas estatísticas produzidas pelo IBGE, tendo como referência o censo agropecuário dos anos 1970. Acontece que entre 1970 e 2010, houve uma mudança substantiva na forma de produzir no campo, que, inclusive, é objeto de declaração dos mais diferentes segmentos e setores de nossa agricultura, rebatendo no aumento importante da produtividade física de culturas e criações. Nada mais justo do que atualizar estes índices trazendo-os mais próximos à realidade na qual nós estamos efetivamente trabalhando hoje.
O IBGE recentemente divulgou os dados relativos aos estabelecimentos agropecuários brasileiros no censo agropecuário de 2006. Por que não tomar os indicadores levantados a partir das estatísticas recentes sobre a situação atual do campo e aí se fazer os cálculos necessários? A renovação e a atualização dos índices são, inclusive, mais fidedignas ao quadro real da realidade agropecuária hoje, e, portanto, mostram quem é e quem não é produtivo hoje, no campo.
IHU On-Line – A Reforma Agrária depende de mobilização social?
Sérgio Pereira Leite – A experiência histórica, não somente brasileira, mostra claramente que, sem mobilização e sem pressão, não haverá Reforma Agrária. Ela é estratégica, tem efetivamente a capacidade de levar o problema como uma demanda concreta, objeto da intervenção do Estado através de seus instrumentos de política. A política de Reforma Agrária, por ser uma política redistributivista, é conflitiva e provoca um resultado de ganhadores e perdedores muito claros.
Então, se o projeto estratégico de desenvolvimento do país é aquele que busca uma melhor capacidade de desenvolvimento mais justo e equânime, é preciso entender que, neste projeto, tem que entrar claramente uma política de Reforma Agrária, e, para que essa política de Reforma Agrária ocorra, é fundamental que os setores diretamente relacionados à mesma se mobilizem, lutem e se organizem em torno deste projeto.
IHU On-Line – Qual é o futuro que o senhor prevê para o campo brasileiro?
Sérgio Pereira Leite – Há um futuro que desejamos: um futuro rural com gente no campo, um rural mais equânime, uma sociedade mais justa, que efetivamente expresse uma expansão das capacidades humanas com melhores capacidades de vida e de produção.
Mas o futuro, propriamente dito, é resultante das ações e processos contraditórios. Cabe a nós, pesquisadores, esta tarefa de mostrar que a Reforma Agrária hoje ainda é necessária, é uma questão atual e estratégica para o Brasil e uma condição necessária para a promoção do desenvolvimento.
Notas:
[1] Coeficiente de Gini é uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini. É comumente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda, mas pode ser usada para qualquer distribuição. Consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda, e as demais nada têm). O índice de Gini é o coeficiente expresso em pontos percentuais (é igual ao coeficiente multiplicado por 100).
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"A Reforma Agrária hoje ainda é necessária’. Entrevista especial com Sérgio Pereira Leite - Instituto Humanitas Unisinos - IHU