Por uma numa renda básica parcial, que incorpore as características de uma renda básica universal (incondicional, regular, em dinheiro, individual e universal). Entrevista especial com Fábio Waltenberg

"Podemos colher duas lições da crise pandêmica: que as desigualdades são imensas e de diversas naturezas, e que é plenamente possível combatê-las", diz o economista

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 12 Janeiro 2021

Se, de um lado, a crise pandêmica tornou as desigualdades sociais do país ainda mais evidentes, de outro, o auxílio emergencial implementado no ano passado indica alternativas para enfrentar o problema. Esse é o balanço feito pelo economista Fábio Waltenberg, em entrevista à IHU On-Line. Segundo ele, depois de vários progressos na distribuição de renda desde a promulgação da Constituição de 88, o Brasil conseguiu, "paradoxalmente, reduzir a pobreza e a desigualdade no ano da pandemia. E também de forma paradoxal, isso foi alcançado por meio de políticas públicas implementadas – muitas delas a contragosto ou por pressão da sociedade civil – por um governo que defendia uma plataforma ultraliberal, de austeridade fiscal extrema", menciona.

 

Os efeitos do auxílio emergencial, que atingiu mais de 70 milhões de brasileiros, acentua, são "um indicativo de que um programa focalizado em pobres e miseráveis, como é o Bolsa Família, já não atende mais às necessidades" e de que precisamos caminhar rumo à implementação de um programa de transferência de renda que atenda aos vulneráveis. "É preciso pensar em programas que alcancem um público mais amplo, abarcando também os chamados 'vulneráveis', pessoas que podem não ser pobres no momento em que se tira uma 'fotografia da pobreza', mas cuja renda está sujeita a frequentes oscilações – em situações como a pandemia, mas não apenas nela – de modo que são figurantes ou mesmo protagonistas no 'filme da pobreza', padecem de insegurança econômica crônica, e não há razão para que permaneçam nessa condição no século XXI", sugere.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o economista defende a manutenção do auxílio emergencial durante este ano, enquanto seja estruturado um novo programa de distribuição de renda básica parcial. "O Brasil está rodando num ritmo de mais de 50.000 casos diários de Covid, e mais de 1.000 mortes diárias – fora as subnotificações. Se o auxílio emergencial era essencial e fazia todo sentido em abril do ano passado, não há nenhuma razão para que não faça sentido agora. Então seria preciso estendê-lo pelo tempo necessário, talvez ao longo de todo o ano de 2021. Enquanto isso, poderíamos pensar no programa permanente que ficaria em seu lugar a partir de 2022". E acrescenta: "É claro que é um programa custoso, mas temos que comparar esses custos com os custos de não implementá-lo. Não implementá-lo significará um número de mortes muito mais alto (algo cujo valor ou custo é incalculável), visto que mais gente terá que sair na rua para tentar ganhar a vida de algum jeito".

 

Fábio Domingues Waltenberg (Foto: Fiocruz)

Fábio Domingues Waltenberg é pesquisador do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento e professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense - UFF. Atualmente, é coordenador de Cooperação Acadêmica, na Superintendência de Relações Internacionais da UFF. É graduado e mestre em Economia pela Universidade de São Paulo - USP e doutor em Economia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Que balanço o senhor faz da situação social e das desigualdades sociais no Brasil no último ano, tendo em vista a crise pandêmica e seus efeitos? Entre os inúmeros problemas sociais que enfrentamos, quais ficaram ainda mais evidentes nos últimos meses?

Fábio Waltenberg - Acho que há certo consenso em dizer que o ano passado deixou claro a que ponto as desigualdades sociais são marcadas no Brasil. É algo que todos nós brasileiros sabemos, em alguma medida, talvez com mais detalhes nós que estudamos essas questões. Mas a pandemia escancarou a desigualdade de diversas naturezas: acesso à saúde, acesso à educação (remota ou presencial), estabilidade do emprego e possibilidade de trabalho remoto, estabilidade ou não da renda, qualidade do transporte, da moradia etc.

Por outro lado, algo positivo foi revelado no ano passado: vivemos um experimento em larga escala de distribuição de renda. Ao longo de muitos anos, já vínhamos fazendo distribuição de renda, de forma crescente em termos de volume, quantidade e sofisticação, desde a Constituição de 1988, passando por medidas implementadas nas décadas recentes, mas neste ano alcançamos um patamar inédito com o auxílio emergencial, além de uma série de políticas de assistência social locais (municipais ou estaduais). O resultado disso foi a mitigação de algumas das consequências socioeconômicas da pandemia, além de uma suavização da própria recessão, que teria sido muito mais profunda e duradoura na ausência dessas políticas, e das políticas de manutenção de empregos, por exemplo. Paradoxalmente, conseguimos reduzir a pobreza e a desigualdade no ano da pandemia. E também de forma paradoxal, isso foi alcançado por meio de políticas públicas implementadas – muitas delas a contragosto ou por pressão da sociedade civil – por um governo que defendia uma plataforma ultraliberal, de austeridade fiscal extrema.

Então podemos colher estas duas lições: que as desigualdades são imensas e de diversas naturezas. E número dois, que é plenamente possível combatê-las.

 

 

IHU On-Line - As suas reflexões sobre desigualdades sociais não reduzem esse problema a uma questão de renda. Como avançarmos na administração de bens comuns para toda a sociedade, especialmente num momento de crise?

Fábio Waltenberg - Renda é muito importante, mas muitas outras coisas também são essenciais. Educação e saúde, por exemplo, mas também transporte, moradia, liberdade de ir e vir, emprego, cultura, reconhecimento social etc.

Com crise ou sem crise, é necessário pensar em tudo isso simultaneamente. Não é à toa que os governos costumam ter secretarias para cuidar de todas essas questões. Existe um conhecimento acumulado sobre políticas públicas em todas essas áreas, produzido nas universidades, em organizações não governamentais, nos próprios governos. É preciso aproveitar isso da melhor maneira possível.

 

 

IHU On-Line - Algumas estimativas apontam que o número de novos miseráveis no país pode aumentar de 10 milhões para 20 milhões em 2021. Como o senhor interpreta essa projeção, o que ela nos indica sobre o passado, o presente e o futuro do país em termos sociais?

Fábio Waltenberg - O número de miseráveis, de pobres e de vulneráveis dependerá do conjunto de políticas que forem implementadas ao longo do ano. Se os governos, especialmente o federal, considerarem que a pandemia já acabou e que devemos voltar à “normalidade”, teremos problemas graves. Primeiro, porque a situação socioeconômica do país já era muito ruim, e os prognósticos eram péssimos, mesmo antes da chegada do vírus ao país. Segundo, porque este ano promete ser muito difícil, com a pandemia ainda muito forte, com a nova variante do vírus, oriunda do Reino Unido, e mais contagiosa, circulando de forma acelerada, e a ausência até o momento de um plano crível de vacinação, ao contrário de dezenas de outros países. Se houver essa miopia, esse erro de cálculo, essa pressuposição de que o pior já passou, a crise social será brava.



IHU On-Line - Todo final e início de ano, especialmente em períodos de crises agudas como a que vivemos, é marcado pela esperança. Como cultivar a esperança no atual cenário brasileiro?

Fábio Waltenberg - Apesar das inegáveis e evidentes dificuldades, acho que podemos encontrar esperança em várias coisas.

Primeiro, pelo que já falei, que nos últimos anos temos acumulado no Brasil um grande conhecimento teórico e prático sobre políticas públicas, inclusive políticas sociais, e que podemos beber nessa fonte sempre que quisermos para desenhar, propor, debater as políticas que poderão ser implementadas este ano.

Em segundo lugar, como já dito, o ano passado foi um ano muito triste e muito duro em razão das mortes, da incompetência dos governos em conduzir políticas que poderiam ter refreado o ritmo de transmissão do vírus e reduzido o número de pessoas queridas mortas. Foi também muito difícil devido a todas as limitações que tivemos de encarar em nossas vidas – todos nós em alguma medida. Mas também foi um ano em que a sociedade civil pressionou o Congresso e o governo federal em prol de medidas mitigadoras dos efeitos mais nefastos da pandemia, com sucesso consubstanciado, por exemplo, na introdução do auxílio emergencial. Nas eleições municipais, ouvi candidatos de todo o espectro político falando sobre garantia de renda, algo inimaginável alguns anos ou meses atrás. Isso nos dá esperanças de que a democracia cumpre o seu papel, que os representantes políticos respondem às demandas da sociedade.

Por fim, uma terceira fonte de esperança encontra-se no fato de termos testemunhado diversas formas de solidariedade, de fraternidade entre pessoas, que se ajudaram muito durante a pandemia – não apenas na própria família e entre conhecidos, mas organizando ajuda a pessoas desconhecidas e carentes que passaram por dificuldades. Esses atos nos levam a crer que há, assim, razões para termos esperança em dias melhores, mesmo num quadro tão hostil.

 

 

IHU On-Line - Alguns teóricos avaliam que uma "cegueira moral" é o que arrasta o Brasil para o fosso. Concorda? Em que medida o problema das desigualdades sociais e as questões relativas ao enfrentamento da pandemia de Covid-19 podem ser vistos como um problema moral no país?

Fábio Waltenberg - Não conheço exatamente qual é a tese da “cegueira moral” e suas consequências.

À primeira vista, não tendo a pensar desta forma, não me parece que o problema das desigualdades sociais e as questões relativas ao enfrentamento da pandemia se devam a um problema moral.

Acho importante assinalar que há, sim, posições normativas ou ideológicas que se preocupam menos ou mais com as desigualdades sociais em geral, e, em particular, durante a pandemia. É evidente, por exemplo, que o atual governo federal não tem no combate às desigualdades uma de suas prioridades. Por exemplo, na discussão do novo sistema de financiamento da educação básica (novo Fundeb), crucial para uma maior ou menor desigualdade educacional nos próximos anos, num primeiro momento, o governo simplesmente se omitiu. E, no final, atuou para reduzir a fração de recursos públicos efetivamente destinada às escolas públicas, em prol de alguns tipos de escolas privadas. Nesse caso específico, por exemplo, não creio que uma questão moral seja central, mas sim uma questão de preferência ideológica.

Complementarmente, a impressão que temos é que há uma resistência do governo federal a escutar especialistas em políticas públicas, a aproveitar o conhecimento teórico e prático acumulado ao longo das últimas décadas, como já comentamos, e canalizá-lo para o enfrentamento da pandemia e de outras mazelas sociais. Talvez também por uma questão ideológica.

 

 

IHU On-Line - Quando se trata de analisar a situação social do país, os pesquisadores têm uma posição unânime: houve avanços, mas não foram suficientes. Qual é a raiz deste problema?

Fábio Waltenberg - Creio que posso responder de duas maneiras. Primeiro, com relação ao enfrentamento dos problemas sociais decorrentes da pandemia, creio que já falamos um pouco nas questões anteriores: há barreiras que impedem o pleno aproveitamento do potencial que temos para enfrentar os problemas sociais. Além disso, se tratava de uma situação inédita e de certa forma não sabíamos exatamente o que tinha de ser feito.

Segundo, e de modo mais geral, indo além da pandemia apenas, acho que é de certa forma esperado que nunca tenhamos todos os avanços que gostaríamos. Primeiro, porque não há consenso: o que é um avanço para mim, pode ser visto como um retrocesso por outro, e vice-versa. Segundo, nunca alcançaremos uma situação considerada ideal, sempre teremos a sensação de que há muitos avanços ainda por fazer. Fiz doutorado na b, um país extremamente desenvolvido e com uma desigualdade relativamente baixa, e me espantava a que ponto as pessoas consideravam que havia problemas sérios a resolver em seu país, que os avanços haviam sido insuficientes.

De qualquer forma, se tomarmos um horizonte de tempo mais amplo, de médio prazo – por exemplo, entre meados dos anos 1980 e meados da década que acaba de terminar –, houve avanços muito grandes em qualquer área que se observe. Há mais crianças e jovens na escola, a longevidade aumentou, a qualidade de saúde da população melhorou, a mortalidade infantil caiu muito, reduzimos a incidência de uma série de doenças, a pobreza caiu, enfim, a lista é longa. É importante lembrar dos avanços, mesmo que mais lentos e de alcance menor do que o desejado.

A desigualdade de renda e riqueza talvez seja o aspecto em que realmente avançamos pouco, em grande medida porque a Constituição Federal de 1988 não nos legou um sistema tributário eficiente e justo, e ainda conseguimos piorá-lo ao longo dos anos, reduzindo ainda mais a tributação do capital e introduzindo novas distorções, que dão margem a fenômenos como a “pejotização” (relações trabalhistas camufladas de relações empresariais para pagar menos impostos) ou o chamado “planejamento tributário” (medidas legais que buscam evitar o pagamento de impostos).

 

 

IHU On-Line - Considerando a atual conjuntura, que questões precisam ser discutidas urgentemente no país para enfrentar as crises social, sanitária, econômica e política?

Fábio Waltenberg - Com a professora Celia Kerstenetzky, da UFRJ, acabamos de publicar um artigo na revista Novos Estudos, do Cebrap, em que discutimos o novo livro do economista francês Thomas Piketty, relacionando-o com o debate sobre reforma tributária no Brasil e com as múltiplas crises que nos afligem – social, sanitária, econômica. Entendemos que, diante de uma crise multifacetada como esta que estamos vivendo, poderíamos aproveitar a oportunidade para reformular de maneira séria e profunda o nosso sistema tributário, assim como países hoje desenvolvidos aproveitaram situações de crise como as grandes guerras ou a Grande Depressão para implementar reformas que mudaram o curso da história e abriram espaço para a criação e o florescimento de estados de bem-estar social robustos e sofisticados. Mas o ano acabou… e a reforma tributária foi adiada novamente, não sabemos em que medida será discutida e se haverá espaço para discussões sobre justiça tributária nesse debate.

Reforma tributária é uma discussão estrutural, que é muito importante, claro. Mas há também questões sociais, sanitárias e econômicas urgentes, que não podem esperar por uma reforma tributária que nem sabemos se será aprovada e em que termos. O caminho do curto prazo é o da sociedade civil pressionando e trabalhando em conjunto com governos para formular políticas municipais, estaduais e nacionais para enfrentar as questões.

Sobre crise política, em particular, creio que não tenho muito a dizer.

 

 

IHU On-Line - Grosso modo, os economistas se dividem entre aqueles que dizem que há dinheiro para resolver todos os problemas sociais do país e aqueles que defendem o equilíbrio fiscal, argumentando que não há dinheiro. Uma terceira via é possível? 

Fábio Waltenberg - Acho que essa divisão a que você se refere é muito marcada entre os macroeconomistas, especialmente os ortodoxos, que em todos os momentos defendem o equilíbrio fiscal rigoroso, e parte dos heterodoxos, que têm uma visão de que há, sim, recursos para investir nas questões sociais. Especificamente, há um conjunto de economistas que vem discutindo a chamada teoria monetária moderna, que entende que não há limites para o quanto um governo pode gastar. A questão não é quanto gastar, mas sim seguir algum critério de avaliação de custos e benefícios para escolher bons investimentos. (Um economista ortodoxo muito conhecido, André Lara Resende, tem defendido essa teoria, enfrentando muitas dificuldades dentro da ortodoxia.)

O termo “terceira via” ficou muito associado às políticas de Tony Blair e de Bill Clinton nos anos 1990, no Reino Unido e nos EUA, como uma tentativa – com resultados bastante contestáveis – de combinar gasto social com disciplina de mercado. Não sei se era a isso que você se referia. Creio que não, então vou tomar terceira via apenas como uma alternativa às posições mais extremas de que não podemos gastar nada e de que podemos gastar o quanto quisermos. Nesse sentido, talvez uma corrente teórica interessante seja a do chamado “investimento social”, defendida por diversos pesquisadores, e cujo maior expoente talvez seja o holandês Anton Hemerijck. Sua ideia é reformar o welfare state para adaptá-lo à contemporaneidade, garantindo segurança econômica a todos, como sempre se fez, mas procurando investir muito nas pessoas (educação, saúde, cuidados), e também em arranjos que facilitem a conciliação entre vida familiar e vida profissional, por exemplo, para mulheres (creches de boa qualidade em período integral) e idosos (com locais adaptados a suas necessidades e jornadas de trabalho flexíveis).

No caso brasileiro, sob o risco de me tornar um pouco repetitivo, temos que lembrar que as nossas restrições de certa forma são autoimpostas. Se tivéssemos um sistema tributário mais eficiente e mais justo, certamente poderíamos enfrentar melhor os problemas sociais brasileiros. Tributaríamos menos os mais pobres do que fazemos hoje, tributaríamos mais os ricos, eventualmente no cômputo geral teríamos até mais recursos para gastar mais.

 

 

IHU On-Line - Alguns economistas apontam para os limites da própria economia na resolução e enfrentamento das desigualdades sociais. O senhor concorda? Quais são os limites da economia para tratar desta questão? Se a economia tem limites, onde podemos encontrar vias de saída para enfrentar o problema das desigualdades?

Fábio Waltenberg - Sim, concordo. Acho que nenhuma ciência sozinha é capaz de abarcar toda a complexidade das desigualdades sociais. Como economista, tenho meu viés, que creio que transparece aqui nas minhas respostas: falo de tributação, de gastos com políticas sociais etc. Mas as desigualdades manifestam-se, por exemplo, em detrimento de mulheres, negros, minorias como LGBT etc. Essas desigualdades são mais bem compreendidas, explicadas e possivelmente enfrentadas com os aportes de outras ciências sociais. Outro exemplo: economistas da saúde podem contribuir muito para o debate sobre desigualdades em saúde, mas certamente o conhecimento de estudiosos de saúde pública, por exemplo, são imprescindíveis. E assim por diante, em cada área, a economia pode contribuir, mas não pode atuar sozinha.

 

 

IHU On-Line - Uma das pautas do governo neste início de ano é a manutenção ou não do auxílio emergencial. Como essa questão deveria ser conduzida, considerando a atual conjuntura do país?

Fábio Waltenberg - O Brasil está rodando num ritmo de mais de 50.000 casos diários de Covid, e mais de 1.000 mortes diárias – fora as subnotificações. Se o auxílio emergencial era essencial e fazia todo sentido em abril do ano passado, não há nenhuma razão para que não faça sentido agora. Então seria preciso estendê-lo pelo tempo necessário, talvez ao longo de todo o ano de 2021. Enquanto isso, poderíamos pensar no programa permanente que ficaria em seu lugar a partir de 2022.

É claro que é um programa custoso, mas temos que comparar esses custos com os custos de não implementá-lo. Não implementá-lo significará um número de mortes muito mais alto (algo cujo valor ou custo é incalculável), visto que mais gente terá que sair na rua para tentar ganhar a vida de algum jeito. Não implementá-lo também aumentará os custos públicos e privados com tratamentos de saúde, com internações etc.



IHU On-Line - Como resolver o problema do desemprego, que já atinge 40 milhões de brasileiros?

Fábio Waltenberg - Seria importante fazer investimentos públicos geradores de emprego. Aguardar que o setor privado gere empregos não é uma boa opção, afinal, qual investidor privado investirá em uma conjuntura de tanta incerteza como a atual?

Poderiam ser obras de infraestrutura, por exemplo, das quais o país é tão carente, e que sempre são lembradas quando se discute geração de emprego. Mas também se poderia aumentar o emprego público no setor de serviços, como os de saúde, educação e cuidados. Seria uma política ao mesmo tempo de oferta e de demanda, pois esses empregos dariam a dignidade do trabalho e uma renda a muitas pessoas, minimizando os seus próprios problemas e dificuldades (além de fazer girar a economia), mas também serviria para oferecer serviços em áreas importantes durante e depois da pandemia. Teremos que cuidar da saúde física e mental das pessoas, tentar tirar os incontáveis atrasos educacionais.

 

 

IHU On-Line - Cresce o número de trabalhadores informais, de plataformas e daqueles que veem no empreendedorismo uma opção de trabalho. Tendo em vista esse cenário, ainda faz sentido discutir uma política de valorização do salário mínimo?

Fábio Waltenberg - De fato, a economia está em transformação. Além disso, a economia brasileira, como a de outros países latino-americanos, mesmo antes desse processo de “uberização”, já se apoiava de forma muito forte no mercado de trabalho informal. É preciso formular políticas específicas para lidar com essas novas formas de relação de trabalho.

Mas isto não significa que devamos abrir mão da regulação do mercado de trabalho formal, inclusive da valorização do salário mínimo. Por várias razões. Primeiro, porque há milhões de pessoas que trabalham no setor formal, a maior parte delas com salários baixos e sem grande poder de barganha diante de empregadores, que precisam que a proteção de sua renda venha do governo. Não valorizar o salário mínimo significaria promover a pobreza entre trabalhadores – fenômeno velho conhecido nos EUA, por exemplo, os chamados “working poor” –, o que não é uma política inteligente sob nenhum aspecto. Segundo, porque o salário mínimo também define o valor dos benefícios da previdência social. Então, parar de aumentar o salário mínimo seria prejudicial aos beneficiários desses programas, muitos dos quais vivem no limiar da pobreza. Terceiro, o salário mínimo não serve apenas para pautar o mercado formal de trabalho, mas também como balizador dos salários no setor informal. Um achatamento do salário mínimo teria como resultado um achatamento dos salários no setor informal – prejudicaria até mesmo os “uberistas”, no final das contas.

 

 

IHU On-Line - Durante a pandemia, a discussão sobre a instituição de uma renda básica voltou à pauta. Alguns sugerem uma renda condicionada, enquanto outros defendem uma renda universal incondicional. Como o senhor tem refletido sobre essa questão? A renda básica pode ser uma alternativa para os desafios atuais? Sim, não e por quê?

Fábio Waltenberg - Antes de mais nada, preciso dizer que faço parte da Rede Brasileira de Renda Básica, de forma que, naturalmente, sou favorável à implementação de uma renda básica universal. No longo prazo, me parece que é uma política mais libertadora por proporcionar certa segurança econômica contínua, é menos invasiva, menos estigmatizante, mais democrática. No curto prazo, mesmo que não seja possível a implementação de uma renda básica universal plena, me parece evidente que temos de caminhar rumo a ela, deixando para trás políticas de transferência condicionada como o Bolsa Família, que foram muito importantes em seu tempo, mas que já não são capazes de responder a todos os desafios contemporâneos. Seria possível pensar numa renda básica parcial, que vá incorporando paulatinamente as características de uma renda básica universal (incondicional, regular, em dinheiro, individual e universal).

Um bom exemplo é o programa em curso no município de Maricá, no Rio de Janeiro. Mais de 1/4 da população recebe uma renda básica, incondicional, em dinheiro, todos os meses, no valor equivalente a R$130 por pessoa. Ela é paga em mumbucas, moeda de uso exclusivamente municipal, visando ao desenvolvimento da economia local. Durante a pandemia, o benefício rapidamente foi reajustado para 300 mumbucas, garantindo o sustento em condições dignas dos beneficiários – e até a geração líquida de empregos durante a pandemia. Há planos para estender o público a partir deste ano.

O fato de o auxílio emergencial nacional ter alcançado mais de 70 milhões de pessoas é um indicativo de que um programa focalizado em pobres e miseráveis, como é o Bolsa Família, já não atende mais às necessidades. É preciso pensar em programas que alcancem um público mais amplo, abarcando também os chamados “vulneráveis”, pessoas que podem não ser pobres no momento em que se tira uma “fotografia da pobreza”, mas cuja renda está sujeita a frequentes oscilações – em situações como a pandemia, mas não apenas nela – de modo que são figurantes ou mesmo protagonistas no “filme da pobreza”, padecem de insegurança econômica crônica, e não há razão para que permaneçam nessa condição no século XXI.

 

 

IHU On-Line - Pessoas de diferentes estratos sociais são atingidas de modo distinto pelas crises sanitária, econômica e social. Os efeitos distintos da crise reforçam o sentimento de indiferença na sociedade brasileira? Que valores seriam capazes de manter a coesão social?

Fábio Waltenberg - Não creio que a sociedade brasileira manifeste mais ou menos indiferença do que outras sociedades. Acho que, em qualquer sociedade, há pessoas mais solidárias do que outras, há quem enxergue na solidariedade pessoal ou religiosa (caridade) o caminho mais promissor, há quem enxergue na solidariedade institucional (estado de bem-estar social) o caminho mais promissor.

É claro que o fato de vivermos numa sociedade extremamente desigual dificulta bastante as coisas: em que medida um cidadão de uma classe social enxerga seu concidadão de outra classe social como um igual, como um irmão?


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