04 Dezembro 2020
“Talvez o aprendizado mais profundo com a implosão clerical seja que o amor de Deus é maior do que qualquer pecado que possamos cometer, qualquer pecado que nossos líderes da Igreja possam cometer e, sim, ainda maior do que o mal intrínseco do sistema hierárquico de nossa Igreja”, escreve Christine Schenk, irmã da Congregação de São José, mestre em enfermagem e teologia e co-fundadora de FutureChurch, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 01-12-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eu me encontrei lamentando a abismal pecaminosidade do sistema clerical católico. O tão esperado lançamento do relatório McCarrick lança luz sobre o fracasso dos bispos cúmplices e do papa João Paulo II em acreditar nas vítimas do então arcebispo Theodore McCarrick, mesmo depois que o cardeal de Nova York John O’Connor advertira ao Papa para que o nomeasse cardeal de Washington D.C.
A dolorosa falsidade do sistema clerical também ficou em exibição deprimente na celebração do 30º aniversário da FutureChurch, onde a teóloga Doris Wagner Reisinger recebeu o Prêmio Jovens Líderes Católicas da organização. Reisinger falou sobre o abuso sofrido como uma jovem freira e seus esforços para levar um padre proeminente do Vaticano à justiça. Em sua experiência, as irmãs católicas muitas vezes foram envolvidas em uma conspiração de silêncio que protege os padres abusadores.
Em novembro de 2018, Reisinger e dois outros sobreviventes quebraram esse silêncio. Eles foram ajudados por Joshua McElwee do National Catholic Reporter, que relatou que o abusador de Reisinger – o padre Hermann Geissler – ainda ocupava seu alto cargo na Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano. Dias depois que a história foi publicada, Geissler renunciou e o papa Francisco solicitou ao Supremo Tribunal do Vaticano – a Assinatura Apostólica – para investigar as acusações.
Infelizmente, a Signatura absolveu Geissler sem nunca ouvir o testemunho pessoal de Reisinger, embora, de acordo com um comunicado escrito do Vaticano de 2014, ele tivesse admitido sua culpa. Um renomado professor de direito canônico, Thomas Schüller, da Universidade de Münster, na Alemanha, considerou a decisão da Signatura um “veredito escandaloso”.
A Igreja Católica sofre com um sistema clerical fraudulento, incapaz de se controlar. É tentador perder a esperança na marca “católica”, que muitas de nós já tivemos muito orgulho de reivindicar.
Pode ser a hora de reconhecer nosso desespero.
O sistema clerical não está mais funcionando. Talvez nunca tenha sido feito para funcionar, só que não percebemos.
Com esses pensamentos agitando meu coração, eu vi uma gravação recente da “Missa” de Leonard Bernstein, apresentada originalmente no Ravinia Festival de Chicago, em 2018. Eu adorei esse brilhante teatro musical quando ele estreou em 1971. A “missa” de Bernstein era contra a guerra, contra o sistema e abordava a alienação de uma geração.
Para os católicos, a parte mais perturbadora da “missa” é observar o sacerdote celebrante se desfazer completamente em uma mistura musical de cacofonia chocante e lirismo religioso crescente.
O texto da liturgia romana, às vezes cantado em latim e às vezes em inglês, é justaposto aos gritos angustiados da congregação de alienação, descrença e cinismo. À medida que o padre veste sua vestimenta litúrgica, ele se torna uma figura fria, racional, impassível, que acredita a todo custo. As letras cantadas em inglês expressando a descrença, raiva e desespero dos adoradores cresceram. Enquanto isso, o texto latino cantado avança implacavelmente, aparentemente alheio aos gritos do povo por paz, sentido e respeito próprio.
A tensão aumenta até o Cordeiro de Deus quando, em meio a demandas ensurdecedoras de “dai-nos a paz”, o celebrante, em um frenesi de frustração, joga o cálice e os elementos sagrados no chão. Imerso em um silêncio repentino e chocado, ele canta:
Veja...
Não é isso...
...estranho ...
....
Vidros brilham... brilhante...
Então ele... quebrou...
Eu nunca notei isso.
Quão facilmente as coisas quebram.
Vidro... e o vinho...
Espesso... como o sangue...
Rico... como o mel e o sangue...
Hey... não achas engraçado?
...
Quero dizer, isso supostamente é sangue...
Quero dizer, isso é sangue...
Seu...
Isso era...
Quão facilmente as coisas quebram...
Depois de muitas linhas do celebrante, esse é o silêncio abafado. Então, um solo de flauta inicia com duas crianças sopranos (um menino e uma menina na versão que vi) que convidam os desorientados adoradores a cantar “God a secret song: Lauda, Laude”. Então vagarosamente, os antes desolados congregantes começam a cantar e abraçar uns aos outros enquanto lauda, laude constrói-se em um grande, glorioso coro de louvor e paz.
Há 50 anos, Bernstein parece ter sido incrivelmente presciente.
Sua “missa” retrata, em uma longa experiência estética e (para mim) religiosa, a metamorfose católica da mentalidade eclesial da Idade Média para a era moderna.
Como muitas metamorfoses, é doloroso assistir.
Desde o início de nossa história, esperava-se que o padre estivesse acima e separado das pessoas comuns. O padre de Bernstein acredita que é sua responsabilidade “orar para que eles cheguem ao céu” por causa de sua condição de mediador divinamente escolhido. Obviamente, isso implica que as pessoas não podem entrar na presença de Deus exceto por meio dele.
Na inspirada obra-prima de Bernstein, antes que as pessoas pudessem experimentar Deus por si mesmas, o celebrante teve que renunciar a seu lugar entre elas e Deus. Isso só acontece depois que o padre e as pessoas reconhecem totalmente a verdade sobre seu desespero e alienação. Ao lançar o cálice, o celebrante abre mão de seu papel mediador. Antes do silêncio e da introdução à música final, ele canta:
O quê?
Você ainda está esperando?
Ainda esperando por mim, apenas eu, para cantar para você no céu?
Bem, você está por si mesmo.
Embora possa ser extraordinariamente doloroso para aqueles de nós que crescemos em um mundo onde o “Pai” era uma espécie de figura mágica e misteriosa, tal renúncia é necessária se os católicos desejam atingir a maturidade plena dentro de uma comunidade de fé.
Assistir à evidente implosão do sistema clerical me leva a questionar se nós – o povo de Deus – estamos sendo convidados a uma experiência de fé mais profunda. Estamos sendo solicitados a ter mais fé em nós mesmos e em nossa capacidade de conhecer e amar a Deus dentro de uma comunidade de fé – uma comunidade que inclui nossos sacerdotes, mas não é definida nem depende excessivamente deles?
Não temos projetado nossa própria santidade/pecaminosidade em nossos irmãos sacerdotes, esperando que eles sempre rezem Deus por nós, sem aceitar que a luta e o fracasso são uma parte necessária da jornada espiritual para o sacerdote e as pessoas?
Talvez o aprendizado mais profundo com a implosão clerical seja que o amor de Deus é maior do que qualquer pecado que possamos cometer, qualquer pecado que nossos líderes da Igreja possam cometer e, sim, ainda maior do que o mal intrínseco no sistema hierárquico de nossa Igreja.
Mas às vezes as coisas têm que quebrar antes que a graça de Deus possa brilhar. Afinal, o mistério pascal é um mistério. O Cristo ressuscitado brilha somente após o quebrantamento da crucificação.
“Quão facilmente as coisas se quebram...”
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A implosão de clericalismo dramatizado na “Missa” de Leonard Bernstein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU