01 Dezembro 2020
“A Amazônia será a nova Minamata?” Esse foi um dos principais questionamentos de Paulo Basta, coordenador da pesquisa pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), na apresentação do estudo sobre os impactos do mercúrio em áreas protegidas e povos da Floresta Amazônia. Minamata é a cidade japonesa que, nos anos 1950, presenciou uma contaminação em massa pelo metal pesado que provocou a morte de milhares de pessoas. Só a partir desse trágico episódio, uma série de iniciativas foi implementada internacionalmente para conter o uso de mercúrio.
A reportagem é de Tainá Aragão, publicada por Amazônia Real, 26-11-2020.
A pesquisa, realizada pela Fiocruz em parceria com o WWF-Brasil, apresentada em 30 de outubro, no auditório do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), em Santarém, no sudoeste do Pará, mostra uma contaminação por mercúrio de 100% dos indígenas Munduruku. O território da etnia está localizado no médio Rio Tapajós, entre os municípios de Itaituba e Trairão. Eles têm sofrido exposição contínua do produto por cerca de 70 anos de atividade garimpeira na região, diz o estudo.
Por conta do desastre no Japão, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou, em 2013, a Convenção de Minamata sobre Mercúrio. O instrumento já foi ratificado por cerca de 140 países. Mesmo o Brasil sendo signatário desta Convenção desde 2018, os casos de contaminação no país continuam subnotificados. “O mercúrio passa por uma notificação muito marginal, como intoxicação exógena. Só a gente da Fiocruz, a partir da pesquisa, temos mais de 500 casos de contaminação (de indígenas Munduruku) por mercúrio para notificar e esses casos não aparecem nas estatísticas oficiais”, afirma o pesquisador Paulo Basta.
Em novembro de 2019, a pesquisa, realizada nas Aldeias Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy da Terra Indígena Sawré Muybu, procurou investigar o impacto à saúde humana e ao ambiente causado pela atividade garimpeira. Descobriu-se que todos foram expostos ao mercúrio. E, ainda mais grave, para cerca de 200 pessoas, incluindo crianças, adultos e idosos, os níveis de contaminação eram superiores ao considerado seguro pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é de até 6µg.g-1 (micrograma existentes em 1 grama). “Os níveis de contaminação variaram de 1,4 a 23,9 µg Hg/g por cabelo e, aproximadamente, 6 em cada 10 participantes apresentavam níveis de mercúrio acima 6µg.g-1”, diz a pesquisa.
A situação mais crítica foi encontrada na Aldeia Sawré Aboy, nas margens do rio Jamanxim. O afluente da margem direita do Tapajós é um dos cursos d’água atualmente mais impactado pela mineração ilegal. Naquela aldeia, 9 em cada 10 pessoas avaliadas apresentaram níveis de mercúrio acima do considerado seguro. Os resultados confirmam que quanto mais próximo da atividade garimpeira, maior será o índice de contaminação.
“Se utilizarmos como referência a aldeia Sawré Muybu, que fica mais próxima do município de Itaituba e mais distante das atividades de mineração, podemos dizer que o fato de viver na aldeia Poxo Muybu aumenta em 40% o risco de se contaminar por mercúrio. Enquanto, as pessoas que vivem em Sawré Aboy apresentam risco duas vezes maior de estarem contaminadas por mercúrio, quando comparadas às pessoas que vivem em Sawré Muybu”, evidencia o estudo.
O estudo da Fiocruz incluiu visitas domiciliares e entrevistas, avaliação clínico-laboratorial, coleta de amostras de cabelos, células da mucosa oral e coleta de amostras de peixes. A contaminação entre os Munduruku se dá como em Minamata, no Japão, principalmente pelo consumo de peixe, base alimentar das comunidades indígenas e ribeirinhas da região. Em uma testagem com 88 espécies de peixe, todas estavam contaminadas por mercúrio. Os que apresentaram maior nível foram os peixes carnívoros.
Pesquisadores com lideranças Munduruku, em Santarém (PA) (Foto Amazônia Real/Tainá Aragão)
“A recomendação não é parar de comer peixe, não é aceitável, não é justa em se tratando de povos tradicionais”, adianta a pesquisadora da Fiocruz, Ana Claudia Vasconcellos. “A principal recomendação é interromper imediatamente as atividades garimpeiras, para assim, interromper o processo de contaminação que já se sustenta há 70 anos aqui.”
O que acontece no Rio Tapajós é que o mercúrio vem se sedimentado no leito do rio e se transformando em material orgânico. Assim, ele passa a integrar a cadeia alimentar, contaminando animais, como botos, tracajás, camarões e outros animais que vivem no rio.
No corpo humano, a exposição contínua produz fadiga, irritabilidade, dores de cabeça, falta de sensibilidade nos braços e nas pernas e dificuldade de deglutição. Mas podem resultar também em sintomas mais graves, como distúrbios sensoriais nas mãos e pés, danos à visão e audição, fraqueza e, em casos extremos, paralisia e morte. Nos recém-nascidos, chegam a gerar problemas neurológicos.
Líder Alessandra Munduruku (Foto: Amazônia Real/Tainá Aragão)
Para Alessandra Munduruku, líder indígena recém-premiada pela edição 2020 do Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, os dados só confirmam o que há tempos os indígenas vinham denunciando. “Eu me sinto muito triste sabendo que nossos parentes estão contaminados. Isso demonstra que realmente é o que a gente está falando. Sempre a gente fala dos invasores e do impacto do garimpo e dizem que não, porque nunca viu mercúrio. Mas a gente sabe que o mercúrio orgânico tá no peixe e a gente tava consumindo e eu espero que o MPF (Ministério Público Federal) e Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) façam alguma coisa e barrem esse projeto de Lei 191”, enfatiza a líder.
O Projeto de Lei nº 191/20 regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas. A iniciativa do governo federal vai ao encontro de declarações do presidente Jair Bolsonaro que desde a posse defende o aproveitamento econômico de territórios indígenas.
De acordo com a Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), desde 2018 existem 453 pontos de garimpagem ilegal na Amazônia brasileira. Se for considerado todo ecossistema Amazônico, presente em nove países da América Latina, existem mais de 2.500 pontos de garimpos ilegais. No Brasil, ainda há a presença de 18 garimpos ativos em Terras Indígenas, apesar da Constituição Federal não autorizar esse tipo de atividade. Leia reportagem sobre a TI Yanomami.
A pesquisa foi resultado de uma cooperação técnica-cientifica que envolveu universidades públicas (USP, UFRJ, UFOPA, UEZO), institutos de pesquisa do Ministério da Saúde (Instituto Evandro Chagas (IEC) e Fiocruz), equipes multidisciplinares do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Rio Tapajós e Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). A sociedade civil organizada participou por intermédio da Associação Indígena Pariri do médio Tapajós.
A contaminação por mercúrio é considerada uma “síndrome neurológica”, pois atinge a formação do cérebro e compromete o desenvolvimento psicossocial. Heloísa Nascimento, professora da Universidade Federal Oeste do Pará (Ufopa) e integrante da pesquisa, explica que a exposição do mercúrio afeta não somente a formação embrionária, mas o aleitamento e o acesso nutricional das crianças.
Garimpo no rio Tapajós (Foto: Amazônia Real/Cedida por Julia H.)
“O mercúrio atravessa a barreira da placenta, do cérebro. Quando a gente mediu o mercúrio no leite da mãe, vimos que ele é proporcionalmente maior que o contido no seu organismo”, diz a pesquisadora. “Além de diminuir a capacidade de inteligência, de atenção e concentração, o mercúrio também contamina o peixe e o leite materno, e isso é altamente desastroso e injusto socialmente.”
Gerações do povo Munduruku já nascem contaminadas por mercúrio e em número superior ao do de adultos: 7 em cada 10 adolescentes de 10 a 19 anos apresentavam índices de mercúrio acima da média. Algumas crianças apresentam deformações graves pelo envenenamento. Na pesquisa realizada nas aldeias, 9 (15,8%) de 57 crianças apresentaram problemas no teste.
Entre as crianças identificadas com graves índices de contaminação, uma se destacou. “Uma criança de 11 meses de idade, residente na aldeia Sawré Muybu, apresentou problemas relativos na componente motricidade ampla. A referida criança apresentou concentração de mercúrio igual a 19,6 µg.g-1 na amostra de cabelo analisada, nível pelo menos 3 vezes superior aos limites de segurança”, diz o estudo sobre a criança da comunidade mais próxima da atividade garimpeira ilegal.
Em paralelo a essa pesquisa realizada pela Fiocruz, o neurocirurgião santareno Erik Jennings apresentou dados de um estudo sobre mercúrio na região do Alto Tapajós. Foram examinadas 109 pessoas, também em novembro de 2019, e apenas 1 pessoa apresentou nível de mercúrio no sangue considerado normal.
Equipe de pesquisa fazendo avaliação clínica na aldeia Sawre Muybu, no Pará (Foto: Fiocruz)
O monitoramento dos moradores da margem de seis rios distintos, Cururu, Tapajós, Tropas, Cabitu, Teles Pires e Kadiriri, indicou que as outras 108 estavam com níveis acima de 10μg/L (microgramas de mercúrio por litro de sangue), índice que, segundo a OMS, enquadra o indivíduo como exposto ao mercúrio. Mais de 50% dos participantes apresentaram níveis entre 50 e 100μg/L. As pessoas relataram muitas queixas físicas, a maioria de ordem neurológica.
“Esse tipo de contaminação é difuso. O cara que está lá no garimpo está contaminando muito longe as pessoas do povo dele. Todos os rios da margem esquerda e direita do Tapajós possuem garimpo e os rios viraram verdadeiros esgotos de lama. Então, a questão do mercúrio não é de quem está no barranco, na atividade garimpeira, ela contamina todo mundo”, alerta Jennings.
Esse estudo foi realizado em parceria com o Laboratório de Epidemiologia Molecular (Lepimol) da Ufopa.
Parar imediatamente as atividades garimpeiras ilegais na região é a medida mais urgente e eficaz. Mas há outras recomendações indicadas pelo estudo da Fiocruz, incluindo o desenvolvimento de um plano de descontinuidade do uso de mercúrio na mineração artesanal de ouro, elaborar um Plano de Manejo de Risco para as populações cronicamente expostas ao mercúrio e ampliar o monitoramento dos níveis de mercúrio nos peixes consumidos.
Elaborar um conjunto de orientações à população das áreas afetadas também é uma das recomendações. Tais orientações tendem a disponibilizar informações sobre o consumo seguro de pescados e dos riscos à saúde, assim, como as restrições de ingestão para as espécies mais contaminadas, com respeito aos aspectos culturais de cada grupo étnico.
Cripurizão, nome alusivo a região de garimpo situada na zona rural de Itaituba, no Pará (Foto: Amazônia Real/Cedida por Julia H.)
“A gente pretende produzir material educativo para as escolas, fazer trabalhos com as mulheres porque elas que preparam o alimento e também engravidam, sendo uma discussão forte. A gente produz evidências científicas para levar às autoridades, mas também queremos levar isso para as comunidades, para as pessoas afetadas”, enfatiza a pesquisadora da Fiocruz, Ana Claudia Vasconcellos.
Os resultados da pesquisa foram entregues às lideranças indígenas e aos representantes do MPPA e do MPF. Segundo o procurador da República de Itaituba, Gabriel Dalla Favera de Oliveira, os procedimentos levam à abertura morosa de um inquérito civil. Num primeiro momento, a investigação tende a inquirir como os órgãos ambientais estão fiscalizando as atividades garimpeiras na região, quando o correto, segundo os pesquisadores, seria interromper as atividades.
“Já temos uma noção bem ampla e específica dessa localidade. Eu sou procurador em Itaituba e dado a robusteza dos dados não temos dúvidas que vamos instaurar um inquérito civil e, a partir daí, já definir os objetos de atuação”. Mesmo com a urgente necessidade de fechamento de garimpos ilegais e as recentes operações realizadas pelo Ministério Público, o procurador reconhece que as operações não conseguem chegar aos culpados da exploração de minérios em terras indígenas, o que dificulta o processo de penalização.
Mulheres Munduruku da Aldeia Sawre Apompu pescam em rio contaminado por mercúrio (Foto: Amazônia Real/Cedida por Julia H.)
“Essas operações não têm o nível de eficácia que a gente gostaria que tivesse porque as pessoas que estão realizando a atividade (garimpeira), justamente pelas características da floresta, conseguem evadir-se. Então é muito raro que haja prisão, pois não se encontram as pessoas, somente evidências da exploração”, explica o procurador.
“A gente tem que aplicar o princípio do poluidor pagador. Quem tem responsabilidade deve ser onerado, e que a multa seja revertida para as comunidades afetadas. Se o Executivo nesse momento da história está deixando a desejar e jogando contra a população, acreditamos que o Judiciário possa atuar em prol dessas causas que atingem diretamente a população, são nesses parceiros que a gente acredita”, contrapõe o pesquisador Paulo Basta.
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Estudo revela contaminação por mercúrio de 100% dos Munduruku do Rio Tapajós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU