28 Novembro 2020
Ao longo de um ano, investigamos o modus operandi de Carrefour e Extra-Pão de Açúcar. O que encontramos não são casos isolados, mas violências cotidianas contra trabalhadores e fornecedores.
A reportagem é de Victor Matioli e João Peres, publicada por O Joio e o Trigo, 27-11-2020.
Não, não é um caso isolado. A morte de João Alberto Freitas num Carrefour de Porto Alegre é o extremo de um modo de atuação. Nem a rede francesa, nem as outras corporações do setor de supermercados podem alegar que não sabem da existência de quartinhos nas lojas nos quais clientes e trabalhadores são revistados – e, por vezes, algo mais do que revistados. Tampouco os diretores podem ignorar que as terceirizadas responsáveis pela “prevenção de perdas” são especialistas na contratação de policiais militares.
Nós, também, não podemos alegar surpresa: ao longo de um ano, investigamos o modus operandi de Carrefour e Extra-Pão de Açúcar, as duas redes que controlam esse setor no Brasil, com 32% do faturamento (equivalente à soma das 78 empresas seguintes). Violência, física ou simbólica, é a prática das relações com trabalhadores, fornecedores e a sociedade. Abaixo, reproduzimos os relatos de alguns trabalhadores e uma parte do nosso livro Donos do mercado na qual narramos as violações trabalhistas em série cometidas por esse setor da economia, que emprega quase dois milhões de pessoas.
“Este ano foi o primeiro”, desabafou Reinaldo Ferreira, aliviado. Era a primeira vez em muito tempo que celebrava o próprio aniversário em casa, com a esposa e a filha de oito anos. “Eram de doze a dezesseis horas por dia ali dentro”, lembra. “Na realidade, eu passei quatro anos preso. Entrava às dez da manhã e ficava até onze, meia-noite, uma da manhã.” Aos domingos, trabalhava ainda mais: das sete da manhã às dez da noite. “Nos feriados, então, nem se fala.”
Reinaldo começou a trabalhar para o Grupo Pão de Açúcar em abril de 2016, aos 32 anos. Foi contratado como repositor em uma unidade do Assaí no bairro do Morumbi, em São Paulo. Era dedicado, atento e aprendia rápido. Não demorou para que chamasse a atenção do gerente da loja. “No meu 11º mês ele me deu uma camisa de chefe de setor e disse ‘a partir de hoje você vai seguir um outro rumo, você tem potencial’”, nos contou em fevereiro de 2020, numa conversa pelo telefone.
Com menos de um ano de casa, Reinaldo passou a liderar os 32 repositores da mercearia do Assaí. “Todo mundo queria saber o que eu fiz, porque no varejo é difícil se tornar chefe em onze meses”, lembra orgulhoso. O novo cargo trouxe muitas responsabilidades, mas pouco poder. Nenhuma decisão era tomada sem o aval do subgerente e do gerente da loja. Ele apenas representava os repositores e transmitia as ordens da gerência. Mas, para todos os efeitos, Reinaldo era “chefe”, ocupava um cargo de confiança e tinha um salário um pouco maior que o dos subordinados.
Como todos os outros chefes, ele parou de bater ponto e já não tinha horário marcado para entrar e sair da loja. Como ocupava um cargo de chefia, nunca recebeu horas extras. No começo de 2020, depois de alguns atritos com o novo gerente da loja, Reinaldo foi demitido. Não precisou de muitos dias para decidir mover uma ação contra a ex-empregadora.
“Existe uma brecha na CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], no artigo 62, que diz que quem tem cargo de confiança não tem direito a horas extras”, nos explicou o advogado trabalhista Leandro Fernandes, que defendeu Reinaldo no processo. “Muitos funcionários, como o Reinaldo, recebem uma promoção e viram ‘chefe de seção’, mas acima deles ainda existem subgerentes e gerentes. O empregador erroneamente rotula o funcionário como chefe e não entrega o ‘poder’ de chefe. Ele não pode contratar, demitir ou punir ninguém sem o aval dos superiores. Daí os funcionários trabalham doze, treze, até catorze horas por dia sem receber horas extras.”
De acordo com o advogado, todas as grandes redes varejistas lançam mão do método. Só o que muda é o nome do cargo — líder, chefe de setor ou gerente de departamento. “Ele recebe o título e tem um acréscimo salarial muito pequeno, que geralmente fica abaixo do mínimo de 40% estipulado pelo artigo 62 da CLT. Em compensação, ele dobra turno. Já tive clientes que viravam a noite na loja quando tinham que fazer inventário.”
Quando Reinaldo soube que a promoção elevaria seu salário de R$ 1.200 para R$ 2.200, levou dias para conter o riso solto. Depois de anos de trabalho duro em longas jornadas, mudou de opinião. “Eu trabalhava dezesseis horas por dia para ganhar R$ 2.200… não vale a pena”, lamenta.
Outra parte da história assombra o ex-repositor: durante os anos de chefia, teve o corpo maltratado pela má alimentação. A empresa permitia que ele fizesse apenas uma refeição por dia, como todos os outros funcionários, mesmo trabalhando dobrado. “Se, por exemplo, eu entrasse às seis da manhã, tinha que esperar até uma da tarde para comer, assim eu conseguia segurar até o final do expediente sem comer”, explica. “Mas, se eu entrasse às dez da manhã, precisava comer às seis da tarde. Quando dava muita fome eu ia na cantina comer alguma coisa, mas o gerente brigava, dizia que eu estava em horário de trabalho.”
Conhecemos Reinaldo no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, minutos depois da audiência de conciliação com a ex-empregadora. Abatido, o ex-chefe de setor claramente não queria estar ali. A ação não foi movida com uma finalidade meramente arrecadatória, mas quase por um imperativo moral. “Eles deviam ter me reconhecido mais”, nos disse, numa das salas de espera do Tribunal. “Eu valorizei muito a empresa, trabalhei muito, mas eles não fizeram o mesmo.” Não houve acordo na audiência e o processo seguiu tramitando.
Ao lado do cliente, Leandro Fernandes parecia otimista, mas não muito. Ele sabe melhor do que ninguém que o Pão de Açúcar não desiste facilmente da briga. “Em um processo de duzentos mil reais eles chegam a oferecer cinco, seis mil reais para fechar acordo”, nos disse algumas semanas depois, em seu escritório, no centro de São Paulo. “Ou seja, praticamente não há proposta.”
Ele defende ex-funcionários de todas as maiores redes varejistas do país, mas garante que o GPA é a mais intransigente: “Muitas vezes eles preferem pagar duzentos mil lá na frente do que cinquenta mil num acordo.” A lógica, segundo ele, é impedir que outros funcionários se atrevam a processar a empresa de olho em um acordo. “Mas isso é burrice”, assegura. “O precedente não se abre com acordo, mas com uma sentença. Então, se você não faz um acordo, mas perde a ação, aí sim há um precedente. É uma jurisprudência que eu, por exemplo, posso usar em futuros casos semelhantes.”
Não é difícil encontrar o nome “Companhia Brasileira de Distribuição” nas listas afixadas à frente de cada vara do prédio do TRT na Barra Funda, em São Paulo. Se não ela, o Carrefour marca presença. Ou algum dos muitos CNPJ pelos quais se apresentam as duas gigantes. As folhas colocadas no mural de cada vara exibem a pauta de audiências do dia.
O dia de trabalho no Extra Anchieta tinha sido especialmente longo. Um reparo no piso da loja segurou Carlos até as oito horas da noite da quinta-feira, duas a mais do que o habitual. Já passava das nove quando finalmente chegou em casa, em Cidade Tiradentes, a trinta quilômetros de distância. Perto das duas da manhã, uma ligação interrompeu o sono: um apagão havia deixado o Extra no escuro e os geradores não estavam funcionando. Ele avisou os outros funcionários da manutenção e seguiu em direção à loja pela Avenida Ragueb Chohfi.
“Quando fui entrar no Largo de São Mateus, uma carreta de areia que vinha descendo a avenida me acertou atravessando o semáforo”, revive. “Não sobrou nada.” 45 dias em coma. 180 hospitalizado. Toda a ossatura da perna esquerda perdida. Mas a empresa não se omitiu, deu a ele todo o apoio de que precisou. “Até o Abilio foi me ver no hospital”, conta com um sorriso. “Eu não lembro, tava meio em coma ainda, mas ele falou com minha família.” Não foi o acidente de trabalho, contudo, que motivou o processo contra o Pão de Açúcar.
Depois de cinco anos afastado, Carlos voltou à empresa com a promessa de que ocuparia um cargo administrativo, mais tranquilo, no setor de planejamento da manutenção. Mas não foi bem assim. Ele continuou fazendo os consertos de sempre. “Você entra numa sala de máquinas no verão, a temperatura chega a setenta, oitenta graus.” Parece ruim, mas é pior quando se está carregando botijões de gás de treze quilos. “Demora duas horas pra repor dez botijões, mas você tem que entrar, tem que ficar lá dentro.”
Demitido em 2015, após quinze anos de trabalho, Carlos processou a empresa porque nunca recebeu adicional de insalubridade, que deveria aumentar seu salário em 40%. Também cobrou pelas horas extras trabalhadas sem remuneração e pelos adicionais noturnos jamais recebidos. O valor inicial da ação era de quarenta mil reais. Duas perícias o deram razão: ele não poderia desempenhar as funções que vinha desempenhando, e o local de trabalho era de fato insalubre.
Na rotina de um supermercado, são as operadoras de caixa que fazem as relações públicas da empresa. Os clientes praticamente não têm contato com outros funcionários. Se faltou um produto, se o atendimento na padaria não foi bom, se a loja está suja: é a caixa que vai levar o sermão. “A gente é muito agredida pelos clientes”, conta Alessandra, que trabalhou por três anos no famoso e problemático Atacadão de Taipas. Os palavrões e xingamentos proferidos pelos consumidores abalavam a operadora, mas foi o comportamento da empresa que a traumatizou.
Em meados de 2019, Alessandra engravidou. Quando a barriga começou a ganhar volume, foi obrigada a trocar o uniforme-padrão — calça jeans e camiseta cinza — por um macacão cor-de-rosa. É uma regra do Atacadão: todas as gestantes precisam se vestir assim. Exclusivo, para Alessandra, foi só o tratamento que recebeu dos colegas. “Começaram a me chamar de Peppa”, lembra. O apelido fazia referência a um desenho animado protagonizado por uma porca cor-de-rosa. “Eu me sentia muito constrangida, intimidada, envergonhada. É uma situação muito difícil alguém te dizer isso porque você está gorda.”
A operadora alertou o supervisor, que nada fez. “Ele só falava que ia resolver, mas você via que não tomava atitude nenhuma.” As agressões vinham dos chamados “apoios”, 271 funcionários que fazem estornos e cancelamentos e auxiliam o caixa. Toda vez que pedia ajuda, Alessandra recebia também uma ofensa. “Eu ficava das onze da manhã às três da tarde sentada e evitava tomar água, pra não ter que ir ao banheiro, porque não tinha quem ficasse no meu lugar”, explica, como se fosse aceitável.
Incapaz de fazer surgir alguma empatia na empregadora, a caixa só encontrou alívio em janeiro de 2020, quando começou sua licença-maternidade. Alessandra imediatamente pediu demissão e processou o Atacadão por danos morais. Em um acordo com a empresa, recebeu três mil reais, o equivalente a dois salários.
Por uma infeliz coincidência, todos os 110 mil funcionários do GPA são seres humanos. Como os outros da espécie, eles têm algumas necessidades básicas, como respirar, dormir e se alimentar. Gláucia cuidou dessa última necessidade por nove anos. Como nutricionista da terceirizada Nutri Stilo, ela supervisionava os refeitórios de algumas unidades do Extra: formulava cardápios, acompanhava a produção, contratava e demitia cozinheiras, levava os uniformes e checava cartões de ponto e holerites.
Em setembro de 2019, o Pão de Açúcar decidiu trocar a Nutri Stilo pela Irmãos Porfírio, que já era responsável pela limpeza de algumas lojas. “Foi de uma vez”, lembra a nutricionista. “A empresa mandou mais de cem pessoas embora. Demitiu todos os nutricionistas e a maioria das cozinheiras. Foi horrível.” Enquanto retomava o fôlego e planejava seus próximos passos, uma nova surpresa: “Não pagaram férias, 13º, rescisão, nada.”
Para Gláucia, a Nutri Stilo disse que o Pão de Açúcar não pagou a multa rescisória prevista no contrato. “A empresa disse que a gente deveria entrar na Justiça se quisesse receber alguma coisa.” Foi o que ela fez. Se vencer o processo, a nutricionista receberá mais de 250 mil reais. Na audiência de conciliação, o GPA propôs um acordo: “Me ofereceram dez mil reais. Não tem cabimento.” O processo ainda corria em meados de 2020.
Vanessa sabe tudo sobre os açougues e as padarias do Pão de Açúcar: trabalhou quase cinco anos em cada uma das praças. Cumpriu incontáveis turnos de 8h20 no Extra da Freguesia do Ó e no Assaí de Taipas. No meio do caminho, fez um teste no setor de mercearia — onde ficam o arroz e o feijão — mas não se adaptou ao ritmo. “Tem gente que consegue correr. Eu, se ficar no meu pé, não vou nem pra frente, nem pra trás”, conta sem graça. “Não sei se é por causa da deficiência. Eu sou intelectual leve, mas sou. Quando não dava conta, o chefe pegava no pé.”
Onde quer que estivesse, o trabalho era puxado. Fatiar, embalar, pesar produtos. Repor e limpar geladeiras. Entrar e sair da câmara fria. Para essa última função, faltavam equipamentos de proteção: “Todo mundo usava o mesmo jaleco por causa do frio. Eu mesma uma vez fui usar e quase desmaiei por causa do fedor.”
A relação cada vez mais conturbada com o chefe terminou em agosto de 2019, numa demissão por justa causa. “Falaram que eu alterei um atestado, mas até hoje eu não sei que atestado é esse.” Vanessa foi ao médico em uma sexta-feira, trabalhou no sábado, mas faltou no domingo por conta de dores nas costas. Na segunda-feira, descobriu que o atestado apresentado no sábado indicava três dias de afastamento — não apenas um. Por suspeita de fraude, perdeu o emprego. Também por suspeita de fraude, processou o Pão de Açúcar: “Justa causa é uma coisa que sua carteira vai levar por toda a vida”.
“Eu estava sendo perseguida pelo meu chefe, ele falava que queria me mandar embora. Os outros funcionários falavam que devia mandar, mas ele não tinha motivo”, explica. “Aí, de repente, aparece esse motivo.” Vanessa pleiteia o pagamento de uma indenização de oitenta mil reais pela demissão.
Nem só de varejo vive o Carrefour. Além dos 475 supermercados, em 2020 o grupo francês mantinha 124 farmácias e 74 postos de gasolina espalhados pelo Brasil. Edeneide era frentista em um desses postos, instalado no estacionamento de um hipermercado Carrefour. Dividia com uma colega a operação de seis bombas: praticamente não parava de trabalhar durante o turno, que ia das sete às 15h20.
O serviço era feito com base em um sistema de metas. Se vendesse mais gasolina aditivada do que comum, Edeneide ganhava uma comissão. Se não conseguisse, ficava sem o bônus. “Tinha que vender de todo o jeito, a cada meia hora o gerente ia com um papel na pista e falava quantos litros a gente tinha vendido”, conta. “Eles colocavam muita pressão, saiu bastante gente de lá com problemas psicológicos.”E físicos. A frentista passou por inúmeros ciclos de fisioterapia para atenuar dores nas pernas e na lombar. Mas foram os olhos que lhe custaram o emprego.
Todos os frentistas precisam usar alguns equipamentos de proteção individual (EPIs) durante o trabalho, como avental e óculos. A sobreposição do EPI aos óculos de grau, contudo, atrapalhava Edeneide sobremaneira. “Tinha dor de cabeça e nos olhos, sentia tontura, ânsia de vômito…” Por mais que pedisse uma solução ao gerente, nunca foi ouvida. Num sábado, com fortes dores de cabeça, tirou os óculos de proteção para descansar. O gerente notou e a ameaçou: se não usasse o EPI, perderia a premiação do dia. “Voltei chorando pra pista e tive que usar.”
Depois de algumas advertências, Edeneide procurou um médico. Ouviu que tinha direito a EPI com grau, já que a sobreposição a prejudicava. “Eu entreguei a receita médica pro gerente, mas ele disse que o Carrefour não fazia esse EPI especial”, explica. A dor de cabeça e o mal-estar viraram rotina. Alguns meses depois do desentendimento com os líderes, enquanto estava afastada para cuidar das dores na lombar, Edeneide foi demitida. Ela processou a empresa por danos morais, além de cobrar horas extras não remuneradas. O valor da ação pode chegar a 180 mil reais.
“Lá você é um Bombril, faz tudo o que eles mandam fazer.” Lá, mais uma vez, é o Atacadão de Taipas, provavelmente a localidade mais citada neste livro. Maurílio foi contratado pelo braço de atacarejo do Grupo Carrefour para trabalhar como repositor de frios, mas fazia de tudo — desde organizar a câmara fria até operar empilhadeira.
“A gente, que trabalha na câmara fria, independente se é repositor de frios ou não, tem direito a insalubridade, mas eles não pagam pra ninguém”, explica com uma inevitável indignação. “E quando você entra na Justiça pra pedir a insalubridade, você só consegue de cinco anos. Mesmo se trabalhou mais, dez anos por exemplo, você só consegue dos cinco.” Ele acredita que esse é um cálculo estratégico da empresa: “Se o funcionário ficar lá mais de cinco anos, eles já estão no lucro. Nesse tempo eles pegam esse dinheiro, que não é de um, é de cem, duzentos funcionários e aplicam em algum lugar que rende mais do que a gente pobre consegue. Quando vão te pagar, é dinheiro de bala pra eles.” No caso de Maurílio, nove mil reais. Na audiência de conciliação, contudo, a rede ofereceu dois mil ao ex-repositor. “Ridículo”, lamenta.
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Caixa do Carrefour: “Eu ficava das onze da manhã às três da tarde sentada e evitava tomar água, pra não ter que ir ao banheiro, porque não tinha quem ficasse no meu lugar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU