23 Novembro 2020
"O grupo Carrefour tem sede na França e está presente em 30 países. O Brasil é o seu segundo maior mercado, atrás apenas do francês, e faturou aqui, no ano passado, 62 bilhões de reais. Será que esse comportamento agressivo e covarde de seus seguranças no Brasil, mesmo que terceirizados, teria lugar na França? E quantas notas o Carrefour Brasil ainda terá que emitir para lamentar agressões ocorridas em suas lojas?", questiona Edelberto Behs, jornalista, que atuou na Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil - IECLB de 1974 a 1993, como repórter e editor do Jornal Evangélico e depois como assessor de imprensa.
No Dia da Consciência Negra deste ano a notícia mais comentada na imprensa e nas redes sociais foi o assassinato brutal de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, negro, jardineiro, cometido por dois seguranças do Supermercado Carrefour, em Porto Alegre, acompanhado de perto por funcionária da empresa que nada fez para impedir a ação violenta.
A primeira negra eleita para a Câmara de Vereadores de Joinville, a professora Ana Lúcia Martins, pelo Partido dos Trabalhadores, recebeu uma mensagem virtual ameaçadora – “agora só falta a gente matar ela e entrar o suplente que é branco (sic)” -, além de ter, logo após o resultado das urnas, suas redes sociais invadidas.
Embora elogiada no trabalho, uma recepcionista negra de clínica médica em Nova Lima, Grande Belo Horizonte, foi demitida porque apareceu, depois do período de férias, com tranças, visual que “não combinaria com a imagem da clínica”. A recepcionista se recusou a mexer nos cabelos e por isso foi desligada. Ela entrou na Justiça e será indenizada em 30 mil reais.
O general vice-presidente da República, Hamilton Mourão, afirmou a repórteres, ao comentar a morte de João Alberto, que não existe racismo no Brasil, “convicção” reafirmada logo depois pelo presidente Jair Messias Bolsonaro ao falar para representantes dos países do G20, deixando-os “em choque”.
Em sua coluna na Folha de S. Paulo, o jornalista Jânio de Freitas comentou que a frase de Mourão é a mais racista de todas. “Considerar que inexiste racismo no Brasil é dizer que toda a discriminação social sofrida pela negritude, sua desvalorização remuneratória, a maior vitimação nas ações policiais, a proporção maior na pobreza, e tanto mais, compõem um tratamento correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros”, escreveu o articulista. A sentença de Mourão indica que o racismo “seria considerado o humanamente normal e o legalmente adequado para os negros”.
A diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), jornalista Norma Couri, enfatizou, em artigo lembrando no portal da entidade o Dia da Consciência Negra, que o preconceito “contra o cabelo crespo existe”. Ela analisa: “Jovens negros são os culpados de sempre para policiais, mesmo policiais negros, porque o racismo cola até nos iguais que querem parecer menos iguais. O número de pretos e pardos assassinados no Brasil é 132% maior do que brancos, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)”.
Couri apresenta outro dado: “Neste país de 199 mil milionários, um quarto da população vive abaixo da linha de pobreza, e desses 52 milhões, 76% são negros”. Segundo o IBGE, as classificações amalgamadas no conceito de negro configuram três quartos das vítimas de assassinatos. Em 2019, três de cada quatro vítimas de homicídio ou latrocínio no Brasil eram negras, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Na edição de julho passado o jornal Extra Classe, do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS), apresentou a história do turista angolano Gilberto Andrade de Costa Almeida, 26 anos, negro, e sua namorada, a costureira Dorildes Laurindo, 53 anos, que passaram um final de semana em Tramandaí e no retorno a Cachoeirinha foram atacados por soldados da Brigada Militar. A capa do jornal dizia na manchete: “A polícia que mata por engano, mas não erra a cor da pele”.
O casal de namorados estava num Fiat Palio, um carro de aplicativo, dirigido por Luis Carlos Pail Junior, que furou uma sinaleira em Cachoeirinha, na noite de 17 de maio, quando passaram a ser perseguidos por três policiais militares do 17º Batalhão de Gravataí.
“Quando Gilberto e Dorildes saíram do carro, receberam uma saraivada de balas intencional”, escreveu o repórter Flávio Ilha. “Não nos deram voz de prisão, de advertência, nada. Só atiraram. Nós gritamos que éramos inocentes, que não tínhamos armas, mas não adiantou. Eles atiraram para matar”, relatou Gilberto.
Dorildes recebeu tiros no abdômen, na barriga e um terceiro nas costas. Gilberto foi baleado no joelho, na coxa, no glúteo e no antebraço. Dorildes faleceu dias depois. Além de baleado, o angolano ficou dias no hospital, algemado a uma cama, transferido depois para a Penitenciária Estadual de Canoas, sem qualquer acusação, onde foi liberado por decisão judicial no dia 29 de maio.
É preciso reconhecer: Nossos brucutus são mais eficientes na arte de matar comparados aos “lerdos” policiais estadunidenses que executaram, por asfixia, o negro George Floyd, 46 anos, em 7 minutos e 46 segundos. Eles – o vigia Magno Braz Borges e o policial militar temporário Giovane Gaspar da Silva, contratados pelo Grupo Vector que presta serviços terceirizados de segurança ao Carrefour - precisaram menos de 4 minutos para asfixiarem João Alberto.
Em nota publicada no Twitter, o Carrefour afirmou que “ao tomar conhecimento deste inexplicável episódio, iniciamos uma rigorosa apuração interna, e imediatamente tomamos as providências cabíveis para que os responsáveis sejam puníveis legalmente”.
O repórter Marcelo Auler destaca, em sua página nas redes sociais, que na realidade o crime pode ter mais responsáveis, além dos dois seguranças. “É o caso de Adriana Alves Dutra, agente de fiscalização do supermercado, que aparece na cena do crime filmando toda a agressão sem nada fazer para impedi-la. Além de se omitir diante do espancamento que filmava, ela tentou impedir que um homem, de 41 anos, que trabalha como entregador de mercadorias no próprio Carrefour, também filmasse as cenas”.
Em nota no Twitter e também no intervalo do Jornal Nacional, o CEO do grupo Carrefour no Brasil, Noel Prioux, pediu desculpas à família de João Alberto e classificou o espancamento como uma tragédia. O vice-presidente de Recursos Humanos da empresa, João Senise, disse que “o que aconteceu em nossa loja não representa quem somos e nem os nossos valores”.
Acontece, porém, que o Carrefour não tem lá o melhor histórico de abordagem a clientes. A empresa foi condenada a pagar indenização por agressão a Luís Carlos Gomes, homem negro com deficiência física, agredido em 2018 em São Bernardo do Campo.
Gomes relatou que passou a ser seguido por um gerente de prevenção depois de ter aberto uma lata de cerveja no estabelecimento. Ao gerente juntou-se outro segurança, que passaram a xingá-lo, chamando-o de “vagabundo” e de “ladrão”, mesmo ele assegurando que iria pagar a cerveja no caixa.
O ex-presidente do Conselho de Defesa da Pessoa Humana de São Paulo, Ivan Seixas, referiu, em matéria para o GGN, o caso do vigia e técnico em eletrônica Januário Alves de Santana, negro, preso e torturado por 20 minutos, em 2009, por seguranças do Carrefour de Osasco. Januário foi acusado pelos seguranças de ter roubado um carro e também furtado compras que colocava no porta-malas desse carro. “No entanto, o carro era seu e as compras ele acabara de pagar no caixa. Tudo por ser negro”, concluiu Seixas.
Em dezembro de 2018, também em Osasco, um cachorro foi envenenado e espancado por um segurança da rede Carrefour, causando comoção na comunidade. Em agosto passado, um promotor de vendas terceirizado da rede, informa matéria da Folha de S. Paulo, morreu enquanto trabalhava em uma unidade do grupo, em Recife. “O corpo foi coberto com guarda-sóis e cercado por caixas enquanto a loja seguiu em funcionamento”. O corpo só foi removido pelo Instituto Médico Legal depois de quatro horas.
No processo contra o Carrefour no episódio de agressão contra Luís Carlos Gomes, em São Bernardo do Campo, a defesa alegou que o boletim de ocorrência não era suficiente para comprovar os fatos, mas a empresa reconheceu na ação que a conduta do funcionário não foi a “mais correta”, e afirmou que não admite o comportamento e que o respeito é imprescindível. O que mudou na rede nos três anos desde o episódio paulista?
O Carrefour é uma empresa associada ao Instituto Ethos, organização que atua na defesa de negócios socialmente responsáveis. Ironia das ironias, o hipermercado recebeu, em 2019, o prêmio de melhor empresa no setor de varejo do Guia Exame de Diversidade!
O grupo Carrefour tem sede na França e está presente em 30 países. O Brasil é o seu segundo maior mercado, atrás apenas do francês, e faturou aqui, no ano passado, 62 bilhões de reais. Será que esse comportamento agressivo e covarde de seus seguranças no Brasil, mesmo que terceirizados, teria lugar na França? E quantas notas o Carrefour Brasil ainda terá que emitir para lamentar agressões ocorridas em suas lojas?
O Carrefour Brasil anunciou que romperá o contrato com a empresa responsável pelos seguranças, além de demitir o funcionário responsável pela loja na hora do ocorrido. Quantos mais estão na conta das demissões, também os tantos outros que assistiram a barbárie e nada fizeram? O grupo se abstém, assim, de responsabilidades?
Contatado pela Folha, o professor da Fundação Getúlio Vargas, Gesner Oliveira, não quis se manifestar sobre o caso Carrefour, mas explicou que não se contratam terceirizados sem saber se estão alinhados com os valores das empresas, também em relação aos Direitos Humanos. Ele não comentou o caso específico ocorrido em Porto Alegre e em outras lojas da rede, mas escancarou a responsabilidade da empresa.
Um grupo de negros alforriados criou em Porto Alegre, 16 anos antes da assinatura da abolição da escravatura pela princesa Isabel, a Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora, ainda em atividade. Pesquisa na década de 1990 mostrou que existiam então 1,3 mil associações espalhadas pelo Brasil.
O associativismo, explicou para a Folha de S. Paulo o professor Petrônio Domingues, da Universidade Federal de Sergipe e estudioso do tema, funciona “tanto como reação ao racismo existente, que não permitia (na Primeira República) a inserção dos negros em muitos espaços, quanto como afirmação do negro, buscando viver a partir de seus próprios termos”. A tarefa e o desafio continuam abertos em pleno século XXI!
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Caso Carrefour: mais um episódio brutal que se encaixa no racismo patente no país. Artigo de Edelberto Behs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU