10 Novembro 2020
Para o ativista, o capital, representado pelas mineradoras, não está interessado em mudar sua conduta para salvar vidas.
A entrevista é de Pedro Stropasolas e Rodrigo Chagas, publicada por Brasil de Fato, 06-11-2020.
Indígena nascido à beira do rio Doce, o ativista e escritor Ailton Krenak acredita que a lama não contaminou apenas o Watu, o rio que assume a condição de “entidade”, de “avô” para os Krenak. Foi também a destruição de uma enorme rede de vida.
No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), espalhou cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração em toda a bacia do rio Doce. Além das 19 vítimas e dos 860 hectares de Mata Atlântica destruídos, a lama da Samarco/Vale/BHP atingiu quatro terras indígenas e mais de 43 municípios
O rejeito da mineração contaminou os 675 quilômetros do Rio Doce e seus 113 afluentes. Pelo menos 11 toneladas de peixes morreram.
Na semana em que o crime de Mariana completa cinco anos, Ailton Krenak conversou com o Brasil de Fato sobre a morte do rio Doce e a impunidade de um crime sem reparação e justiça.
Para Krenak, não é coincidência que o crime tenha tido muito impacto nas populações negras e indígenas da região. Ele relembra a herança escravocrata das cidades minerárias históricas como Mariana e Ouro Preto.
"A mineração não tem dignidade nenhuma não, ela paga salário porque é obrigado, se ela pudesse, continuaria escravizando as pessoas", ressalta.
O líder indígena ressalta que as mineradoras investem muito mais em propaganda "pra fazer uma espécie de lavagem da sua história suja" do que investir em tecnologia pra diminuir o dano ambiental da atividade "que eles continuam fazendo como querem", enfatiza.
“É uma ofensa pras pessoas que perderam familiares, perderam a base de sua subsistência, de sua vida, assistir uma propaganda dizendo que tudo está voltando ao normal”, aponta Krenak sobre a publicidade da Vale e da Fundação Renova e o discurso que estariam “recuperando” a bacia do Rio Doce.
Quanto ao domínio das mineradoras nos municípios mineiros, que se ampliou após o crime, Krenak entende que Minas Gerais e o Brasil integram a plataforma extrativista presente em muitos continentes, onde as corporações “deitam e rolam”.
“Não é falta de esclarecimento, é a persistência de uma atividade extrativista econômica e que não tem coragem de evoluir, porque se a mineração tivesse coragem de investir e evoluir ela não fazia o dano que ela faz nos lugares onde ela se instala”, argumenta.
Ailton Krenak é militante histórico da causa indígena e ambiental. Participou da Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição de 1988 e da Aliança dos Povos da Floresta, idealizada por Chico Mendes. É autor dos livros Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, O Amanhã Não Está à Venda e A Vida Não é Útil.
A partir do crime da Samarco/Vale/BHP, há cinco anos, como se transformou a relação do povo Krenak com o rio Doce, como a destruição impactou a cultura, os laços afetivos e comunitários entre vocês?
Uma enorme rede de vida foi abalada pela lama que desceu da barragem de Mariana numa extensão de mais de 600 quilômetros de lama em alta pressão, com a velocidade do vento, matando e destruindo a paisagem ribeirinha também. Não só a calha do rio, a beirada do rio.
Vocês souberam que, um ano depois, os macacos estavam morrendo e, quando foram colher os restos pra levar pra fazer biopsia, descobriram que eles estavam morrendo porque a cadeia alimentar deles, a cadeia que eles integram tinha sido destruída e eles estavam sendo atacados por uma febre, que chamaram de febre amarela.
Espécies de insetos, de pequenos organismos que viviam da atmosfera do rio, da ecologia do rio, das beiradas do rio, morreram. Elas foram calcinadas pela lama, o que sobrou foram vagas na cadeia ecológica daquela bacia do rio Doce e algumas espécies que se alimentavam da produção do rio migraram ou morreram. As capivaras, que são animais grandes, migraram. Elas deram no pé.
Vai completar cinco anos agora que esse evento aconteceu, a lista de espécies da fauna, ictiofauna, que desapareceu e não voltou até agora é reconhecida por universidades e os fóruns que ficaram instituídos como observatórios.
A pandemia favorece muito o esquecimento do dano que esse crime ambiental causou na vida de milhares de pessoas e que está sendo minimizado.
Recentemente, a Vale passou a veicular uma campanha de mídia, na televisão, nos horários de novela e tudo, dizendo pras pessoas que está recuperando, restaurando a bacia do rio Doce.
Mostra alguns canteiros de obras e mostra imagens de rios com água limpa. Não sei onde eles arrumaram aquelas imagens, sugerindo que as pessoas estão pescando e produzindo, criando peixe na bacia do rio Doce.
Eu não conheço nenhum lugar onde estão com criatórios de peixe dentro da bacia do rio Doce mas eles mostram isso nos filmes.
As pessoas deveriam pegar o trem da Vale e descer até Vitória. Pode pegar o trem da Vale mesmo pra ver a mentira que ela está fazendo com sua propaganda enganosa. É uma pouca-vergonha a Vale insistir em dizer que está recuperando a bacia do rio Doce. As famílias que estão às margens do rio Doce, muitas delas, não têm nem canal de interlocução com a Renova, com a Vale.
É uma ofensa pras pessoas que perderam familiares, perderam a base de sua subsistência, de sua vida, assistir uma propaganda dizendo que tudo está voltando ao normal. A opinião pública tem que saber que não tem nada voltando ao normal. E nós estamos numa pandemia, e seria cínico dizer que durante esse ano que tudo parou, a Renova, Vale, Samarco, a BHP, estão produzindo tanto resultado assim.
Em seu livro Ideias Para Adiar o Fim do Mundo você diz: "O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo". O que é e foi Watu para o povo Krenak?
O Watu é uma transcendência do sentido físico material de um rio para uma entidade que é nosso parente. Nós chamamos ele de avô. Então nós conversamos com Watu como você conversa com algum familiar seu, com sua avô, com seu avô, com seu irmão. Quando uma criança nasce, ela é apresentada para esse avô que é o rio e, com trinta dias de vida, os pais dessa criança mergulham o corpinho daquela criança nas águas do Watu pra vacinar ele.
É o entendimento de que aquilo vai blindar a criança, vai proteger a criança contra doenças. Mesmo antes da invenção das vacinas, os nossos antigos acreditavam que tinha eficácia em botar nossas crianças dentro da água, falar com o rio e pedir pra ele proteção para aquelas pessoinhas que estavam começando suas vidas, pra poderem andar, serem fortes.
Depois essas crianças que se tornavam pessoas saudáveis e fortes continuavam conversando com o rio e pedindo pra ele – “me dá peixe” –, e conversando com ele pra ele dar saúde, comida...
Essa reciprocidade das pessoas do povo Borum, que são os Krenak, com o rio que é Watu, com o território onde nós vivemos, com a montanha, ela não é uma analogia sobre seres vivos e humanos. É uma cosmogonia, é o jeito que esse povo pensa que é o mundo.
Não é só o rio Doce, é assim que nós pensamos que é o mundo. Com a dissociação da ideia de que o mundo é uma coisa e nós, os humanos, somos outra, nasceu essa abstração que chamam de meio ambiente.
Meio ambiente é uma invenção da cabeça das pessoas que não conseguem viver a experiência de conversar com o rio, com a montanha, de se sentir afiliado ao território onde vive. Então essas pessoas sem cultura, sem identidade precisam imaginar uma ciência ambiental pra dar conta do estrago que eles estão fazendo na Terra, na vida.
Nos seus livros mais recentes, você desenvolve ideias que contrapõem princípios do sistema capitalista, como o "tempo não é dinheiro", "o amanhã não está à venda" e "a vida não é útil". A compensação do crime cometido pela mineração está muito associada a distribuir dinheiro a pessoas atingidas. Qual o impacto disso na região?
A razão por que ela está resumida em dinheiro é exatamente porque não foram capazes de confrontar a realidade ambiental, ecológica, a questão de que a bacia do rio já vinha sendo dragada, danada, destruída ao longo dos últimos 100 anos, desde que construíram a ferrovia acompanhando o corpo do rio e passaram a incidir sobre a mata, sobre a vegetação, sobre a vida selvagem e transformaram o rio em um corpo pelado, um corpo desnudado, pegando sol e pegando tudo quanto é lixo e resíduo da bacia, as cidades jogando seus resíduos lá dentro.
Todo esse dano implicaria em um investimento muito maior, para recuperar ambientalmente a bacia do rio Doce. Então, é moleza transformar isso em compensação financeira. É o jeito fácil de fazer todo mundo esquecer o que aconteceu e seguir a vida – continuar consumindo, continuar afetando cada vez mais a qualidade de vida nos seus próprios territórios.
Eu não vejo como um desvio o fato de a única coisa que a Renova esteja fazendo seja pagar em dinheiro o dano que as pessoas sofreram, porque isso aí é o imediato e, provavelmente, para as corporações que praticaram esse crime é uma mixaria o que eles pagam pra essas pessoas.
A dualidade de pensar que tem a empresa e os atingidos é um resumo, é uma maneira de você resumir a conversa. Os atingidos, a gente dá dinheiro, uma compensação financeira pra eles, faz uma vila nova, instala eles lá e está resolvido. É uma maneira muito esperta de essas corporações largarem para trás de si um rastro de destruição e dizerem que estão produzindo progresso.
Eu costumo dizer que agora estamos vivento uma economia do desastre. Famílias que viviam de subsistência, de uma hora pra outra, passaram a viver da indenização. Essas pessoas deixam as suas vidas e passam a viver uma outra vida, que é a vida de quem vai administrar o dinheiro da indenização. É como se você se aposentasse antes do tempo, como se você tivesse sua vida suspensa e uma vida substituta pra você ir pra fila todo mês pegar dinheiro pagar conta e comprar coisa. É um confinamento.
Daria pra gente fazer um paralelo. Se a gente não tivesse na bacia do rio Doce o risco de contágio pela covid, as pessoas estariam confinadas da mesma maneira: esperando um caminhão-pipa, esperando a cesta básica e esperando o pagamento no dia certo do mês. Quer dizer, eles viraram dependentes de um sistema financeiro que eles não conhecem, que eles não têm capacidade de entender.
É claro que dinheiro vai circular ali. Isso tudo pode mascarar uma situação de uma economia do desastre. Você cria um dano e depois põe dinheiro lá, isso não é novidade. Está cheio de país por ai, fazendo guerra, primeiro joga a bomba no lugar, depois vão lá reconstruir o país.
Agora estamos na fila, eles destroem a bacia do rio Doce, depois destroem a bacia do Paraopeba, e assim vão arregaçando com os rios. O rio São Francisco está sob ameaça de implantar mais uma barragem nele. O rio São Francisco todo mundo sabe que ele está desmilinguindo. Ele está doente e você faz mais uma barragem lá. Quando acontecer qualquer evento que colapse a vida do rio São Francisco, quem vai indenizar as milhares de pessoas que vivem na bacia do São Francisco?
É uma falta de governança, é falta de saber que isso aqui é um país e que as bacias hidrográficas constituem o território brasileiro. Elas não são propriedade particular das mineradoras. Se elas estragarem essas terras, elas devem muito mais do que indenização pra essas famílias. Elas estão causando um dano ao bem comum, a um patrimônio que é do país inteiro, que é do povo brasileiro. Agora, se o povo brasileiro ficou todo idiota e não sabe mais nem ver quando está sendo roubado, então a gente vai ficar na mão dessas corporações.
Passados cinco anos, a lógica do capital e da mineração se fortaleceu com o crime de Mariana?
Olha, tudo que é produzido da terra, tudo que é extraído da terra, a água, o minério, a floresta, a madeira, a produção agrícola, tudo isso sofreu um "apertamento", sofreu um estrangulamento. A disputa no mundo inteiro por terra, por água, por floresta, ela é no mundo inteiro, não é só aqui em Minas Gerais não.
Minas Gerais integra essa plataforma extrativista que está em muitos continentes, e que o Brasil é uma delas, onde as corporações deitam e rolam. Aqui é a nossa vez de sermos esmagados por esse tipo de capitalismo que destrói os ambientes e vai pra outro país depois.
Quando não der mais aqui eles vão pra outro lugar, vão para a Ásia, vão para a China. Então assim nós estamos vivendo no mundo interior uma mudança climática que já deveria ter proibido a atividade da mineração, assim como já deveria ter sido proibida a extração de petróleo. Os combustíveis fosseis e a mineração são duas atividades primitivas e já deveriam ter sidos encerradas no século 21.
Nós tínhamos que pensar em outras economias pra gente resfriar o clima do planeta, se não nos vamos fritar todo mundo. Quando a temperatura do país chegar ao ponto de começar a matar gente no meio da rua, talvez assim as petroleiras e as mineradoras vão finalmente entender que está na hora de elas mudarem de negócio.
“Comunidades de sacrifício”. Assim se refere aos territórios atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão, em 2015, a professora Dulce Maria Pereira, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), que organizou estudos sobre a contaminação das populações por metais pesados e o racismo ambiental presente nas frentes de reparação da Fundação Renova. A maioria dos distritos destruídos pela lama é majoritariamente negra, indígena, e estava nos territórios antes da exploração minerária e da construção da barragem. Você concorda com a análise de Dulce? A exploração minerária e a construção de barragens são escolhidas pelas mineradoras em áreas onde vivem populações que podem ser “exterminadas”?
Não podemos esquecer que Mariana é um povoado histórico. Mariana e Ouro Preto foram as primeiras capitais do Brasil. Elas foram sedes do governo colonial tão importantes quanto Potosí, para implantar o colonialismo aqui.
Não é novo o histórico de abuso e de violência contra as comunidades originárias, os povos indígenas, e depois os afrodescendentes e mesmo os africanos que foram trazidos como escravos pra cá. É bom não nos esquecermos que a matriz da mineração no Brasil é escravocrata. Quem furou as lavras de ouro nos séculos XVII e XVIII foram os negros escravos, foram os índios também quando eles conseguiam manter os índios presos.
Essa piada de que os índios não gostavam de trabalhar, ela nasceu da observação dos capatazes, que viam que os índios escapavam ao controle deles, porque conheciam o território e porque tinham relações com outros locais onde eles podiam se refugiar. Os negros demoraram para poder constituir as rotas de quilombos, que eram lugares de difícil acesso onde eles podiam fugir do controle dos capatazes da mineração.
A mineração não tem dignidade nenhuma não, ela paga salário porque é obrigado, se ela pudesse, continuaria escravizando as pessoas.
Aqueles corpos não importam, se a barragem passar em cima e matar todo mundo não tem problema nenhum, porque historicamente esses corpos nunca existiram. Nunca foi gente que morou naquelas vilas. Pros mineradores quem estavam lá eram os escravos. E escravo só tem valor quando está com saúde e trabalhando. Na história colonial do Brasil, um corpo não vale nada se ele não estiver produzindo
Aqueles patrimônios, aquelas vilas que foram destruídas e as pessoas foram assaltadas dentro de casa de noite, morrendo debaixo de lama, aquele evento não tem importância nenhuma do ponto de visto ético, do ponto de vista moral pros gerentes, pros grandes financiadores dessa atividade e, finalmente, pros seus chefes, CEO, diretores.
Tanto que nenhum deles veio a publico pedir desculpa pelo que aconteceu. Pelo contrário, quando houve audiência pública na assembleia aqui de Minas Gerais, o presidente da Vale escarneceu das famílias dizendo: "Bom, pra que desenterrar esses corpos se eles já morreram mesmo?"
Esse tipo de declaração, gente, é um tipo de declaração que está bem constituída na mentalidade dos administradores de garimpo e mineração desde a colônia. Vocês acham que essas empresas mineradoras bonitinhas cheias de tecnologias modernas mudaram de ideologia?
No final do século XIX, tinha um sujeito que era muito escutado por todo mundo aqui em Minas Gerais. Ele disse que a mineração só dá uma safra. Você tira, e aquilo que você tirou não se repõe, acabou. Principalmente se você botar em cima de um trem e mandar pro porto e botar em um navio. Aí acabou e foi pra longe – fica um buraco no lugar.
O Drummond passou a vida inteira dele dizendo que tinha um buraco onde ele vivia, que é Itabira. Itabira é um buraco. Você pensa que as mineradoras têm vergonha de ter transformado Itabira em um buraco? Não, pelo contrario, elas fazem introjetar na mentalidade dos moradores desses lugares como se ela tivesse ali pra favorecer as pessoas, proteger as pessoas, levar progresso pras pessoas.
Quem leu Drummond, vê o Drummond falando há 60 anos, o que as mineradoras estavam fazendo em Itabira e nas outras montanhas de Minas Gerais.
Não é falta de esclarecimento, é a persistência de uma atividade extrativista econômica e que não tem coragem de evoluir, porque se a mineração tivesse coragem de investir e evoluir ela não faria o dano que ela faz nos lugares onde ela se instala.
Mas se você pegar um diretor deles, um desses espertalhões, ele vai dizer pra você que eles nunca investiram tanto, que tem tecnologia de última geração e que a mineração que eles fazem é limpa, e eles botam outdoor para todos os lados dizendo que é sustentável.
Eles investem muito mais em propaganda pra fazer uma espécie de lavagem da sua história suja do que investir em tecnologia pra diminuir o dano ambiental da atividade que eles continuam fazendo como querem.
Todo mundo sabe que as barragens são obsoletas, malfeitas e que têm duração. Só eles é que não sabem, só os engenheiros é que não sabem. Qualquer morador da bacia do rio Doce sabe que essas barragens têm uma hora que elas estouram e derramam em cima de quem tá pra baixo. Os engenheiros precisavam voltar pra escola, então, pra aprender isso.
E, do ponto de vista dos indígenas, dos Krenak, como resistir a esse cenário de ampliação da hegemonia das mineradoras nos territórios?
Não tem só cinco anos que os Krenak enfrentam a mineração. Na década de 1920 do século passado, o governo da província de Minas Gerais separou uma reserva pras famílias que ainda estavam circulando na floresta do rio Doce pra ir pra dentro da reserva e liberar o entorno do nosso território para passar estrada de ferro.
Essa estrada de ferro aí, a Vitória-Minas, ela passou dentro do nosso território, ela atropelou muitos índios que nem sabiam o que era um trem, quando estavam abrindo a estrada. A manutenção daquela ferrovia sempre foi um ônus pro território e pra vida do povo Krenak.
Quando nós fechamos a estrada de ferro em 2005, não foi por causa da barragem. Nós fechamos a estrada em 2005 por causa do licenciamento adulterado da hidrelétrica de Aimorés. Essa barragem foi construída pra atender a demanda de energia da Vale do Rio Doce, e nós sabíamos disso. O povo Krenak fechou a ferrovia. Foi um escândalo. Isso foi dez anos antes da lama.
Não é de hoje, não é de ontem não. Nós estamos denunciando e enfrentando a arrogância das mineradoras desde que foi criada a reserva pra gente viver em um lugar onde eles estão predando o entorno todo. Se você olhar o Mato Grosso, lá onde está o Parque Nacional do Xingu, o Xingu é uma ilha de mata cercada de terra pelada por todos os lados pelos parceiros da mineração que é o agronegócio: hidroelétricas, mineração e agronegócio.
Estão destruindo os rios, destruindo os aquíferos, acabando com a vida das pessoas com uma atividade "vencedora", com uma atividade que acha que tem que ganhar um prêmio por causa disso.
São atividades de exportação, que não acrescentam nada a economia do Brasil. Os municípios que cedem territórios pras mineradoras, eles ganham uma mixaria. A sociedade tinha que botar em questão essas atividades predatórias e insustentáveis e essa enganação que é a propaganda de que eles estão promovendo o progresso.
Se a Vale estivesse promovendo o progresso, Minas Gerais não seria um estado tão atrasado socialmente, economicamente em relação aos outros estados brasileiros.
A resistência da cultura indígena e dos povos indígenas é de mais de 500 anos. Um momento marcante da tua trajetória pessoal é ter participado do processo de elaboração da Constituição de 1988, um marco importante para a luta pelos direitos indígenas. Agora a luta do povo Xonkleng está no STF e vai definir a validade ou não do chamado "marco temporal", que põe em xeque demarcações de território no Brasil. O julgamento foi novamente adiado, o que, na avaliação das organizações indígenas, pode ser uma manobra articulada por ruralistas para tentar manter o "marco temporal" em vigor. Como você avalia esse momento de luta pela pela permanência nos territórios?
Essa situação que vivemos nos últimos 30 anos, desde que temos a Constituição de 1988, ela reflete uma disputa constante entre as atividades da expansão econômica do capitalismo sobre territórios que deviam ser protegidos pela União, independente de serem terras indígenas ou não.
Os índios não têm terra. A terra que nós habitamos são terras da União, a Constituição diz isso. É oportunismo e cínico quem disputa território com os índios dizerem que estão em pé de igualdade. Eles não estão em pé de igualdade. Eles são particulares que estão querendo se apropriar de bens comuns, da terra publica.
Quando eu disse que o rio Doce ao ser destruído é um dano ao bem comum, um dano ao patrimônio do Brasil, patrimônio do povo brasileiro, eu digo também que quem disputa terra com povo indígena são criminosos que querem roubar patrimônio da União. E dentro do estado brasileiro, eles têm cumplices que apoiam as suas ações criminosas.
Mas você tem gente dentro do estado operando o sistema jurídico brasileiro que dá sustentação pra esse tipo de contrabando. De você pegar bens do estado, bens da União e transformar em propriedade privada. A história do Brasil é isso, os particulares se apropriando do que é comum e virando dono. Viram donos de ilhas, viram donos de beira de rio, viram de dono de margem de rodovia, viram dono de terras devolutas na Amazônia, dando golpe.
Quem deveria estar protegendo esses territórios era a União? O Estado brasileiro. Mas o Estado brasileiro está dominado pelo interesse privado que quer vender tudo, quer vender a Petrobras, quer vender o pré-sal, quer vender o SUS [Sistema Único de Saúde], quer vender a mãe deles. Então, o que a gente vai fazer? O povo indígena continua resistindo do mesmo jeito, tem 500 anos, não começou ontem não.
De que forma a matriz de pensamento indígena pode contribuir ou ser decisiva para salvar esse futuro?
Seria talvez um exagero imaginar que depois de uma história tão predatória e a constituição, a formação de uma sociedade desigual e complexa, como a brasileira, que o pensamento, que a perspectiva dessa minoria que são os povos indígenas, pudesse criar mudança nesse mundo, onde a infraestrutura e a governança da coisa é feita por não-indígenas.
Eles não respeitam nem os seres humanos que são mais ou menos parecidos com eles, imagina se vão respeitar um rio.
As coisas vão de mal a pior não é por falta de conhecimento, as coisas vão de mal a pior é por causa de uma ideologia, é uma ideologia individualista, que dá prêmio para meritocracia, que estimula competição e que não está interessada em aprender a viver bem. As pessoas estão interessadas em se dar bem, que é diferente de bem viver.
O pensamento indígena é o pensamento do bem viver e a sociedade estimula o se dar bem, então está cheio de gente que só quer se dar bem. O empreiteiro quer se dar bem, o diretor da mineração quer se dar bem, o cara que dá licença fajuta quer se dar bem, o membro do conselho que deveria votar sim ou não quer se dar bem.
Como toda essa cadeia cooperativa entre si quer se dar bem, vai demorar muito pra eles darem ouvido a um pensamento dos povos originários, de que a terra é nossa mãe e que a gente precisa respeitar a vida para além do humano. Não é só gente, homem, que vive. Eles não respeitam nem os seres humanos que são mais ou menos parecidos com eles, imagina se vão respeitar um rio.
Então, meus amigos, é necessário ver que o povo indígena é uma minoria ínfima e pretender que o povo indígena vá influenciar essa maioria escandalosa predatória seria querer muito, né?
Tomara que a gente consiga, pelo menos, ficar vivo – que já seria uma vitória.
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Ailton Krenak: “A mineração não tem dignidade, se pudesse continuaria escravizando” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU