04 Novembro 2020
O ensaísta, escritor e filósofo Santiago Alba Rico (Madrid, 1960) apresenta uma profunda e sincera reflexão sobre os efeitos produzidos pela pandemia, em todos os âmbitos, até transformar a sociedade tal e como a conhecíamos. Uma análise multidisciplinar que também expôs no ciclo de palestras organizado pelo Museu Etnográfico de Castela e Leão sobre “Pensamento e pandemia”.
A entrevista é de M. J. Fernández, publicada por El Correo de Zamora, 01-11-2020. A tradução é do Cepat.
Em sua conferência, em Zamora [Espanha], abordou os efeitos da recente crise sanitária e as carências que revelou. Temos um sistema mais frágil do que pensávamos?
Muito mais frágil e em duas direções. Por um lado, as políticas neoliberais de privatização e desmantelamento da saúde pública dos últimos anos revelaram como nós, espanhóis, estávamos muito menos protegidos do que acreditávamos. Por outro, em um sentido mais global, descobrimos, como à luz de um relâmpago, a fragilidade de um sistema que, em última instância, depende dos corpos, que são naturalmente frágeis.
Por anos, nosso sistema econômico gerou a ilusão de que se reproduzia à margem dos corpos, sem corpos, e a pandemia foi, por isso, uma tremenda bofetada de realidade. Descobrimos, de alguma forma, o limite mais radical do capitalismo: a morte, com a qual sempre é preciso contar.
Quais são as dificuldades geradas pela contradição entre movimento e imobilidade provenientes da pandemia?
Esta contradição sempre esteve presente em nossas vidas. As mercadorias, as notícias, as operações financeiras, os turistas, movimentavam-se a toda velocidade e sem obstáculos, ao passo que os mais pobres, os imigrantes, os refugiados, ficavam presos nas fronteiras e, por isso mesmo, ficavam presos em seus corpos. Quem se movimenta tem menos corpo do que aquele que não se movimenta. Assim, o capitalismo neoliberal precisa decidir a todo momento quem se movimenta e quem não se movimenta, a quem dá corpo e a quem não.
A pandemia obrigou a parar – ou seja, a corporificar – parte desse movimento. A solução para esta contradição, no marco da crise, foi tecnológica. Onde podemos estar imóveis e sem corpo? Na tecnologia. Por isso, o confinamento foi, entre outras coisas, um negócio para as grandes empresas tecnológicas. Vínhamos, por assim dizer, de um confinamento tecnológico que podia conciliar movimento e imobilidade e que agora se fechou sobre si.
Considera que os “bárbaros” de nossa civilização não estão no exterior. O que pretende dizer com isto?
Quero dizer que não há mais nenhum exterior. E isso significa duas coisas. A primeira que, ao contrário dos cristãos dos séculos IV e V em uma crise da civilização parecida, não podemos fugir ao deserto, nem à montanha. Mas também significa que não podemos ser salvos de fora, segundo o modelo clássico da decadência e renovação das civilizações.
Nossos bárbaros estão dentro e não são humanos: são pandemias e catástrofes climáticas, que vão desempenhar, por certo, um papel muito parecido ao do terrorismo em termos de governança global. Frente à catástrofe estrutural, será necessário tomar constantes medidas de exceção.
Como avalia que será a sociedade em um futuro, após a obrigatória revisão ou mudança de nossos modelos de gestão impostas pela pandemia?
Não me atrevo a fazer previsões. Limito-me a expressar meus temores. Se não compreendermos que a defesa da vida é indissociável da defesa da democracia, o mundo pós-pandemia aprofundará o processo de desdemocratização global já iniciado antes da ameaça da Covid-19.
Reside há vários anos fora da Espanha, na Tunísia. Quais são as diferenças que observa no tratamento da pandemia neste país e, em geral, entre o mundo ocidental e o árabe?
Poucas. A pandemia universalizou comportamentos e medidas. A humanidade foi traumaticamente globalizada de supetão. A diferença está em que a população do norte da África é muito mais jovem e, em contrapartida, seus sistemas de saúde muito mais frágeis.
Após sua incursão na política, em 2015, mostrou-se bastante crítico ao ‘Podemos’. Considera que a classe política não deu conta de enfrentar a crise sanitária?
Minhas críticas ao Podemos, que são muitas e muito profundas, são compatíveis ao alívio de que, nesta crise, faça parte de um governo que, de outro modo, teria agido pior. Além disso, se julgo pela forma como [Isabel Díaz] Ayuso está atuando em Madrid, também fico aliviado que neste momento o PP não esteja no governo central.
Em relação à classe política, não se pode generalizar. Em termos sanitários, não se fez nada muito diferente do que foi feito em outros países europeus. O que, sim, é diferente é a ideologização da crise por parte das direitas espanholas. É preciso exigir de todos, em todo caso, maior responsabilidade porque a democracia se baseia na confiança cidadã nas instituições. A presença de boa parte de nossa classe dirigente no Casino de Madrid, um dia desses, no ato de entrega de prêmios do jornal El Español, tem um efeito brutalmente desmoralizador.
Considera que nas próximas eleições a esquerda será punida nas urnas por sua gestão da pandemia?
Em um país em que as competências sanitárias estão nas mãos das Comunidades Autônomas, todos – esquerda, direita e nacionalistas – administram a pandemia. Minha impressão é que a esquerda que não atuou bem, não é a que atuou pior.
Em uma sociedade em que cada vez é mais difícil marcar os limites entre ficção e realidade, avalia que a pandemia voltou a demonstrar, mais uma vez, que a realidade supera a ficção?
Ocorre, sobretudo, que a realidade, quando nos coloca em contato coletivo com a morte, parece uma ficção. Não nos parece real. Entre outras coisas porque, como disse antes, nossas sociedades ocidentais não estavam preparadas para assumir esta repentina fragilidade. A pandemia é a primeira coisa real que nos ocorre em muito tempo e por isso parece um sonho.
A crise acentuou a fragmentação dos modelos de autoridade tradicionais e, em geral, de valores?
Mais que esses modelos e valores, já muito erodidos pelo neoliberalismo, o que a crise erodiu ainda mais foi a confiança nos discursos públicos e no conhecimento comum. A confiança é o fundamento de todo contrato social. Em sua ausência, impõem-se – como está ocorrendo – o negacionismo, a tristeza, a impotência e o cinismo.
Avalia que na sociedade atual há uma carência de líderes de opinião que não sejam “influencers” ou “youtubers”?
Nos anos 1980 e 1990, ocorreu uma mercantilização da “autoridade pública, de modo que os futebolistas e as estrelas de televisão ocuparam o lugar tradicional dos intelectuais. Nos últimos anos, a autoridade pública, em uma nova guinada, se tornou tecnológica e qualquer um que pretenda chegar a um público amplo – também os futebolistas, os políticos e os filósofos – precisam se tornar ‘influencer’ ou ‘youtuber’. O problema é que as redes não são feitas para pensar ou se comprometer, mas para reagir, e para reagir de um modo homogêneo a todos os estímulos: com as vísceras e com a amnésia.
As novas tecnologias estão produzindo um efeito alienante na sociedade?
Tem um efeito, sobretudo, “descorporificador”, roubam o nosso corpo, que agora é apenas um apêndice incômodo de nosso celular ou de nosso tablet, de nossa conexão à rede. O fato de nos roubar o corpo quer dizer que nos roubam a possibilidade de prestar atenção. E sem a atenção as coisas não têm valor.
Sendo assim, as tecnologias, na medida em que substituem a própria vida, facilitam os processos de desligamento dos outros corpos e de desvalorização do mundo. Diante delas, nossos corpos – quanto mais uma árvore! – são muito lentos. O capitalismo não pode se permitir a lentidão.
As novas restrições provenientes da crise sanitária aumentarão ainda mais as distâncias e a tendência à redução do contato pessoal?
Já ocorreu. Quando vemos o protagonista de um filme fumar, ficamos surpresos, mas não sentimos vontade de fumar: vemos com distância, como outro mundo já irrecuperável. Quando nesses dias vemos em um filme muitas pessoas juntas e sem máscara, em uma casa ou em uma praça, sentimos uma sacudida de estranheza e quase de ameaça. Todos os nossos filmes, neste sentido, nos falam do passado.
É sem dúvida bom que não recuperemos esse mundo em que os médicos fumavam na sala de cirurgia, mas não que renunciemos a esse outro – o de ontem mesmo – em que nos tocávamos sem medo e sem desconfiança. “Perdida nossa verdadeira natureza, tudo é nossa verdadeira natureza”, dizia Pascal. Nós, humanos, nos acostumamos a tudo. Confio em que o impulso de tocar seja mais imperativo e mais verdadeiramente natural que o de fumar.
Em muitas de suas publicações, teve especial interesse na informação tóxica, nos boatos e nas notícias falsas. Como avalia que podem ser combatidas em uma realidade mediatizada?
Sempre houve boatos e ‘fakes’, sobretudo em períodos de crises, pandemias e ameaça. E com uma propagação em velocidade vertiginosa, sem a necessidade de internet. Mas seu meio de vida é a ausência de marcos de credibilidade compartilhada, como a ausência de oxigênio é o meio de algumas bactérias.
Penso que se nossos políticos e nossos jornalistas não se tornassem difusores voluntários de boatos partidaristas e em oportunistas fabricantes de ‘fakes’ no espaço público – incluído o Parlamento - poderíamos nos permitir ter algumas bactérias no ar rarefeito das redes. É a corrupção do espaço público que torna os “fatos alternativos” credíveis. E essa corrupção é responsabilidade dos que têm um acesso privilegiado a ele.
Considera que é essa desinformação que sustenta os negacionistas da Covid e a falta de conscientização sobre a importância de se respeitar as medidas de prevenção?
Os negacionistas se sustentam, na realidade, na desconfiança, às vezes razoável, em relação ao “sistema”, suas instituições e seus saberes. E na necessidade de construir um mundo comum alternativo a este, no qual todo o mundo, segundo eles, viveria isolado e enganado.
Em períodos de crises, com frequência, o ceticismo se converte em niilismo, e o niilismo em credulidade. Quando não acreditamos mais em nada, podemos acreditar em qualquer coisa, por mais incoerente que seja, inclusive em que a Terra é plana.
O negacionismo tem um efeito analgésico e ansiolítico: evoca uma ameaça incontrolável e real e inventa um falso culpado concreto e manipulável. Preferimos acreditar em monstros do que no acaso. É um mecanismo de defesa tão perigoso como banal.
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“Descobrimos, de alguma forma, o limite mais radical do capitalismo: a morte”. Entrevista com Santiago Alba Rico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU