28 Outubro 2020
“Os atos humanos – como coroação da inclinação conatural – são bons ou maus dependendo se a relação que um homossexual mantém com a pessoa amada é única, fiel e gratuita. Quando mantém um tratamento nestes termos, está desenvolvendo aquilo que lhe constitui e qualifica como ser humano singular – a “alma” -, ou seja, está realizando e desenvolvendo plenamente sua existência de pessoa homossexual, sem ter que frustrar – como assim pede o Catecismo – sua conatural capacidade de amar”, escreve Jesús Martínez Gordo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Cristianisme i Justícia, 26-10-2020. A tradução é do Cepat.
As declarações de Francisco sobre as uniões civis (não matrimônios) de homossexuais, independentemente se foram pronunciadas na entrevista em questão ou não, volta a colocar sobre a mesa várias questões teológicas. Retomo uma delas, a referida à “naturalidade” ou não da homossexualidade, reaberta nos Sínodos de 2014 e 2015 dedicados à pastoral familiar e a moral sexual.
Como se sabe, esse foi um debate prematuramente fechado em tais Sínodos, graças à capacidade de bloqueio de uma minoria sinodal. Formada, nesta ocasião, por uma boa parte dos bispos africanos, por alguns estadunidenses (com o cardeal R. L. Burke à frente) e por outro grupo de prelados do leste europeu.
No entanto, semelhante bloqueio não impediu que houvesse contribuição que, como a do dominicano Adriano Oliva, sustentaram a procedência de uma mudança não só de perspectiva, mas também doutrinal, no tocante às pessoas homossexuais.
Enquanto a li, interessou-me por sua coerência argumentativa e pelo esforço em superar possíveis atavismos que, cedo ou tarde, teriam que desaparecer, apesar de continuarem apresentando uma enorme força em muitos lugares da Igreja e, é claro, em tantos mais fora dela.
Talvez por isso, disse-me, não custava muito escutá-la e ver se efetivamente abria as portas a um futuro mais integrador e menos excludente. Remeto, a quem esteja interessado em uma informação mais detalhada, a meu livro “Estuve divorciado y me acogisteis. Para comprender ‘Amoris laetitia’” (PPC, Madrid, 2016).
Segundo A. Oliva, seria necessário revisar a equiparação moral que o Catecismo acabava estabelecendo de fato entre comportamento homossexual e sodomia. Ao se considerar ambos como “intrinsecamente desordenados”, ao homossexual que pretendesse ser, por sua vez, cristão só lhe cabia renunciar qualquer relação sexual.
Sendo assim, prosseguiu, era uma exigência que lhes discriminava em respeito às pessoas heterossexuais, já que, ao lhes obrigar a não realizar “atos homossexuais” e lhes propor a vida celibatária como única alternativa, fechava-lhes a possibilidade de escolher. Urgia, por isso, repensar a doutrina moral reunida no Catecismo para desterrar qualquer vislumbre de injusta discriminação e poder acolher estas pessoas na Igreja “com sensibilidade e delicadeza”.
Metido em tal tarefa, denunciou, apoiado em outras pesquisas, a improcedência em identificar os “comportamentos homossexuais” com o pecado de “sodomia”. Semelhante associação não cabia. Era necessário descartá-la e, obviamente, não restava outro remédio a não ser revisar a suposta imoralidade dos atos homossexuais e da própria homossexualidade à luz de tal cenário. E propôs continuar neste assunto com a porta aberta por São Tomás.
O Santo de Aquino, informou A. Oliva, levava a sério a realidade e a vida concreta das pessoas. Por isso, não aceitava a existência da natureza humana em abstrato, mas somente a concretizada nas pessoas de carne e osso. E tampouco uma lei natural única e uniforme, sem gradualidade, sem uma diferenciada obrigatoriedade e à margem das exceções. Partindo desta maneira unitária de ver a realidade e a vida, perguntou-se, estudando o caso da sodomia, se esta de acordo com a condição humana a existência de uma inclinação e de um prazer inatural ou “contra a natureza”, ou seja, com pessoas do mesmo sexo.
Sua resposta foi que tal inclinação e, portanto, a busca do prazer correspondente, sem deixar de ir contra a natureza específica e geral do ser humano, era, no entanto, “conatural” ou “segundo a natureza” dessa pessoa individualmente considerada. Era “alma”, ou seja, o que constituía e qualificava cada ser humano enquanto tal.
Portanto, a inclinação homossexual não era para Santo Tomás uma questão cultural, mas antropológica. Infelizmente, uma vez que chegou a esta conclusão, não a desenvolveu. Limitou-se a continuar com suas considerações sobre o ato sodomítico como pecado contrário ao mandamento de Gênesis 1,28, de crescer e se multiplicar.
Esta contribuição, apontou A. Oliva, abria as portas a um oportuno desenvolvimento doutrinal em relação à concepção do amor, da sexualidade e do próprio matrimônio. E mais a partir do momento em que a Igreja havia reconhecido que na vida matrimonial ocorriam circunstâncias em que era possível desligar o mandato de procriar e a mútua comunicação do amor.
Mas não só facilitava articular a mútua comunicação do amor e a procriação, a partir da centralidade da primeira. Oportunamente atualizada, também permitia superar a discriminação dos homossexuais, possibilitava sua acolhida eclesial com sensibilidade e delicadeza e diferenciava a sodomia da homossexualidade.
Com efeito, apontou A. Oliva, a revelação cristã reconhece que o ato sexual – fundado na inclinação conatural – é moralmente aceitável se fica inserido em uma relação única, fiel e gratuita. Portanto, os atos humanos – como coroação da inclinação conatural – são bons ou maus dependendo se a relação que um homossexual mantém com a pessoa amada é única, fiel e gratuita. Quando mantém um tratamento nestes termos, está desenvolvendo aquilo que lhe constitui e qualifica como ser humano singular – a “alma” -, ou seja, está realizando e desenvolvendo plenamente sua existência de pessoa homossexual, sem ter que frustrar – como assim pede o Catecismo – sua conatural capacidade de amar. Se estaria falando de uma relação homossexual que, por se ater a tais notas, teria que ser acolhida pelos católicos como moralmente aceitável, de forma análoga à heterossexual.
À luz desta contribuição, era possível diferenciar a naturalidade e a conaturalidade da inclinação homossexual – aplicável à bissexualidade e à transexualidade – da sodomia. Este último seria um ato moralmente reprovável, porque mantém uma relação que em nada conta com amor exclusivo, fidelidade e gratuidade. Ao carecer disso, vai “contra a natureza” da pessoa homossexual que pretende ser cristã.
Evidentemente, a relação de um casal homossexual não é identificável com um matrimônio, porque não pode estar aberta, por si mesma, à procriação. Mas convém ter presente, apontou A. Oliva, que Santo Tomás não aceitou que tal procriação fosse a essência do matrimônio e do ato sexual. Se fosse aplicada semelhante doutrina, seria necessário concluir, sustentou o Aquinate, que a relação entre José e Maria também não foi matrimonial e que, por isso, não foi uma união verdadeira e perfeita, mas aparente e falsa. E outro tanto sustenta o magistério pontifício, na carta encíclica Humanae Vitae, quando, enfrentando a questão da paternidade responsável, admite a possibilidade de uma relação sexual única, fiel e gratuita, e excepcionalmente não aberta à procriação.
À luz destas considerações, concluiu o dominicano, quando a relação homossexual é vivida em tais termos, é difícil não a reconhecer como habitada por elementos de verdade e como um caminho de santificação. Por isso, não deveria haver problema algum que os homossexuais católicos pudessem participar nos sacramentos, nem que fossem integrados plenamente na comunidade eclesial.
Era uma reflexão – disse-me no ano de 2016 – que, indubitavelmente audaz, precisava ser retomada em outra ocasião e em outro momento mais propício. Agora, parece que chegou um deles que, sem dúvida, não será o último. Estou convencido disso.
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A conaturalidade da homossexualidade. Artigo de Jesús Martínez Gordo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU