23 Outubro 2020
“A maturidade de uma sociedade civil se mede pela possibilidade dada a cada cidadão de realizar o direito nativo ao amor integral. O Papa Francisco ensinou que também a maturidade da comunidade cristã se mede pela capacidade de acolher todos os filhos de Deus assim como vieram ao mundo, sem exceção”, escreve Vito Mancuso, teólogo italiano, em artigo publicado por Repubblica, 22-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Aquelas poucas palavras do Papa Francisco divulgadas ontem, emblematicamente contidas não na natureza oficial de um documento, mas na espontaneidade de um documentário, e que num instante rodaram o mundo, representam uma grande vitória do amor e da razão. Disse: “As pessoas homossexuais têm o direito de estar em uma família. Eles são filhos de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deve ser expulso de uma família ou tornar sua vida infeliz por isso. O que precisamos criar é uma lei sobre as uniões civis. Desta forma, eles estão amparados legalmente”.
Essas palavras representam uma vitória do amor porque reconhecem o direito natural de todo ser humano ao amor integral, entendendo por "integral" a possibilidade de explicitar todas as dimensões que uma verdadeira história de amor comporta e requer, ou seja, sentimentos, união física e reconhecimento público.
Aliás, é justamente este último aspecto que constitui a razão básica pela qual ainda hoje nos casamos, já que não nos casamos mais para fazer amor, para ter filhos, para vivermos juntos; quem se casa hoje o faz para declarar ao mundo, preto no branco, que aquela pessoa é uma coisa só com ele (ou com ela) sob todos os pontos de vista, incluindo as instituições. Dessa plenitude de amor o Papa declarou que as pessoas homossexuais não devem mais ser excluídas.
Ao dizer isso, ele reconheceu um processo imparável que está ocorrendo em um nível planetário, reconhecendo a igual dignidade do amor homossexual; e é neste sentido que suas palavras também representam uma vitória da razão. Não deve ter sido fácil para o Papa pronunciá-las e, antes mesmo, concebê-las. Mas fazer isso denota mente aberta, coragem pessoal, discernimento espiritual e capacidade de profecia.
Na verdade, trata-se de ler os “sinais dos tempos”, como exorta o Evangelho, e o sinal inequívoco do nosso tempo é a necessidade de ultrapassar os fechamentos doutrinais do passado para fazer com que o amor, de mero enunciado, se torne vida concreto para todos. Está sendo implementado o que Jesus anunciou: "O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado", o que também se aplica àquele tipo de sábado chamado "doutrina": foi feita para seres humanos, e não seres humanos para a serem esmagados por seu ditado.
Sabe-se o quanto as palavras de Jesus escandalizaram as elites sacerdotais da época, da mesma forma que essas palavras de Francisco caem como uma bomba no mundo católico. No Estado pontifício, a homossexualidade era um crime passível de perseguição penal, Pio V em 1568 instituiu a pena de morte com a bula Horrendum illud Scelus (“Esse horrendo crime”).
Todos os papas recentes reafirmaram a condenação explícita, assim consagrada pelo Catecismo: “Os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados. São contrários à lei natural, fecham o ato sexual ao dom da vida, não procedem de uma verdadeira complementaridade afetiva sexual, não podem, em caso algum, ser aprovados” (art. 2357). À luz desse texto, penso que fica clara a novidade explosiva das palavras de Francisco, segundo as quais as pessoas homossexuais “têm direito a uma família”.
A dificuldade não diz respeito apenas à Igreja Católica. O Dalai Lama em 2006 reafirmava assim a desaprovação budista: “Um casal gay veio me ver em busca de meu apoio e minha bênção. Tive que explicar nossos ensinamentos a eles. Uma mulher me apresentou outra mulher como sua esposa - desconcertante!” Alguns anos depois, porém, em 2014, ele tinha uma abordagem completamente diferente: “Se duas pessoas, um casal, realmente sentem que aquela forma é mais uma fonte de satisfação, e se ambos estão plenamente de acordo, então tudo bem”.
No início de seu pontificado, Francisco respondeu a um jornalista: “Se uma pessoa é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”. Hoje sabemos que aquela resposta não foi uma brincadeira para sair de uma saia justa diante de uma pergunta incômoda, porque em plena coerência pessoal a perspectiva é reiterada: para a autoridade máxima da Igreja Católica diante do amor homossexual não há mais julgamento, mas o reconhecimento da plenitude dos direitos.
A maturidade de uma sociedade civil se mede pela possibilidade dada a cada cidadão de realizar o direito nativo ao amor integral. O Papa Francisco ensinou que também a maturidade da comunidade cristã se mede pela capacidade de acolher todos os filhos de Deus assim como vieram ao mundo, sem exceção.
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Em nome do próximo. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU