08 Outubro 2020
"A Igreja Católica é uma organização de 1,3 bilhão de membros, presente nos cinco continentes. Os que estão no vértice - precisamente porque está em curso uma guerra civil na qual os adversários conservadores são obstinados e abundam os sabotadores - devem questionar-se continuamente se mobilizaram as suas tropas da forma mais cuidadosa e se todos os seus movimentos tiveram um bom êxito", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado Il Fatto Quotidiano, 07-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não há dúvida de que a caixa de Pandora destampada no Vaticano pelo escândalo de Becciu tirou a atenção da opinião pública sobre a nova encíclica do Papa Francisco, que, apesar disso, caminhará validamente nos próximos anos porque seu pensamento é poderoso. Mas, por enquanto, a catástrofe midiática pelo escândalo domina tudo.
Enquanto isso, a saga das malversações nos andares superiores do palácio apostólico é enriquecida com novos capítulos. Os lobos que descarnam as finanças do Vaticano agiram imperturbados por anos e o dano causado à Igreja e a Francisco é grave. No entanto, é precisamente o desastre evidente que deve levar os proponentes da linha reformista do pontífice a se perguntarem se Francisco também não teria cometido erros. O ícone do "Papa enganado" não é suficiente para explicar a complexidade da situação.
A Igreja Católica é uma organização de 1,3 bilhão de membros, presente nos cinco continentes. Os que estão no vértice - precisamente porque está em curso uma guerra civil na qual os adversários conservadores são obstinados e abundam os sabotadores - devem questionar-se continuamente se mobilizaram as suas tropas da forma mais cuidadosa e se todos os seus movimentos tiveram um bom êxito.
Francisco muitas vezes exorta bispos e cardeais à parrésia. É uma palavra grega que indica "falar francamente". Hoje em dia, muitos de seus apoiadores gostariam de falar sobre seus erros.
1) Em 29 de junho de 2017, ao ouvir sua acusação na Austrália por supostos atos de pedofilia (da qual seria absolvido este ano), Francisco dispensou o cardeal George Pell, prefeito do Secretariado para a Economia. Decisão impecável. Mas o Papa cometeu o erro de não nomear imediatamente um chefe de dicastério interino em seu lugar igualmente enérgico.
Todos sabem, de fato, que Pell conquistou numerosos inimigos no Vaticano pois não tolerava os feudos financeiros independentes e pedia, de acordo com seu mandato, um controle rigoroso sobre a transparência do uso dos fundos administrados pelas várias administrações da Santa Sé. A decisão papal de deixar o Secretariado ser limitado por dois longos anos à administração ordinária, confiando aos secretários do dicastério o "despacho dos assuntos ordinários" (comunicado oficial da Sala de Imprensa do Vaticano), enviou aos homens de poder da burocracia do Vaticano um sinal de que havia chegado a hora de acalmar a inquietação despertada pelo rude ativismo de Pell.
Um sinal duplamente errado, tanto porque levou à paralisação da ação reformista quanto porque não levou em conta o fato de que mesmo uma parte dos cardeais conservadores - incluindo personalidades próximas a Ratzinger - concordavam em uma operação de limpeza.
2) No mesmo mês de junho de 2017 foi afastado o Auditor Geral do Vaticano: Libero Milone, um profissional com um currículo impecável. Ele também percebeu que seu esforço para esclarecer as contas das administrações do Vaticano estava sendo sabotado. O então Substituto Angelo Becciu o convocou de repente para comunicá-lo que já não contava mais da confiança do Papa. O comandante da gendarmaria Domenico Giani ameaçou prendê-lo. Deveria confessar que era responsável pelo desvio de fundos e que havia confiado a uma agência externa as investigações sobre a vida privada de personalidades da Santa Sé.
Um ano depois, o tribunal do Vaticano é obrigado a certificar que nenhum processo foi aberto contra ele: nenhuma investigação, nenhuma condenação. Milone está limpo.
Milone enviou uma carta ao Papa por meio de um canal seguro para explicar que foi vítima de uma fraude. Do pontífice nunca recebeu uma resposta. Milone poderia contar muitas coisas a Francisco. Ao conceder-lhe uma audiência, o Papa poderia ter uma ideia mais realista das resistências e dos riscos de desvios por parte dos aparelhos vaticanos.
3) Em 2013, Francisco criou o Conselho de Cardeais. Nove cardeais de todas as partes do mundo e de diferentes tendências eclesiais, que não tinham apenas a tarefa de estudar a reforma da Cúria. O Papa especificou que eles tinham a "tarefa de ajudar-me no governo da Igreja universal".
É uma grande novidade, que vai além da imagem do pontífice como monarca absoluto. O Papa definiu o organismo como expressão da "comunhão episcopal" e da "ajuda" que o episcopado mundial pode dar à função papal.
Há dois anos, o Conselho está incompleto. O australiano George Pell, o chileno Francisco Javier Errazuriz (responsável por não informar o Papa sobre os bastidores do escândalo de abusos do caso Karadima-Barros) e o congolês Laurent Mosengwo foram removidos. Não fica claro porque o Conselho não foi recomposto. A grande crise do desvio de fundos secretos do Vaticano e do Óbolo de São Pedro, que já se arrasta há um ano, no mínimo, ao contrário deveriam fortalecer a função de um órgão eclesial de composição internacional com o qual o Papa pudesse se aconselhar.
4) Francisco inaugurou uma linha de grande clareza comunicativa. Não apenas com documentos, mas com palavras e gestos - aparentemente simples, mas expressão de uma complexidade teológica precisa ou dotados de um claro valor de política eclesial.
Que em julho dois protagonistas do escândalo, funcionários ativos no governo central da Igreja, os monsenhores Mauro Carlino e Alberto Perlasca, tenham sido destituídos do serviço diplomático da Santa Sé e enviados de volta às suas respectivas dioceses, não pode acontecer às escondidas, sem um comunicado oficial, revelados por via indireta por Avvenire. Nessas situações, uma comunicação transparente é tudo.
Como não entender, por exemplo, que a decisão inédita de transferir a liquidez dos vários dicastérios vaticanos sob o controle de uma única central, a Apsa (Administração da Sede Apostólica), assume um valor diferente nesta crise, dependendo se aparecer em um artigo-entrevista no Osservatore Romano ou se for comunicada à imprensa por altos funcionários do Vaticano para esclarecer todas as suas implicações?
5) Quando o Papa Francisco decidiu torpedear o Cardeal Becciu, demitindo-o do cargo de Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e expulsando-o do Colégio Cardinalício, não informou ao Secretário de Estado, o Cardeal Pietro Parolin, nem antes nem depois. A notícia de que da decapitação de Becciu chegou ao conhecimento de Parolin pelos noticiários, não foi desmentida.
O Secretário de Estado é - sob a orientação e autoridade do pontífice – o responsável de uma máquina que envolve um bilhão e trezentos milhões de fiéis. Parolin é uma personalidade mais do que leal, fiel à linha reformista de Francisco e inspirado por um grande sentimento religioso. Não o informar com antecedência é impensável.
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No caso Becciu, o rótulo de ‘Papa enganado’ já não basta mais. Aqui estão os cinco erros do Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU