Programas de transferência de renda são fundamentais para construir uma rede de proteção social, diz o economista
Se de um lado a epidemia de covid-19 “revelou em cores ultranítidas todas as carências e iniquidades” da sociedade brasileira, marcada por profundas desigualdades sociais, de outro, a implementação do auxílio emergencial para pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica demonstrou, em apenas cinco meses, como os programas de transferência de renda “são fundamentais para construir uma rede de proteção social aos mais vulneráveis”, diz Waldir Quadros à IHU On-Line. “Sem dúvida, diante do impacto social da paralisia econômica, o auxílio emergencial foi decisivo para evitar que um enorme contingente de famílias pobres ficasse sem condições de atender suas necessidades básicas”, avalia.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o economista menciona que, apesar das negociações governamentais em curso para estender o auxílio emergencial até o final do ano e para reformular o Programa Bolsa Família, é preciso ter clareza de que “o auxílio emergencial foi instituído pelo Congresso Nacional e implantado com muita má vontade pelo governo, bastando mencionar as constantes objeções da área econômica”. A proposta de criar o Programa Renda Brasil, adverte, “está inserida na concepção geral da área econômica de preservar o teto de gastos, transferindo recursos de uma ação social para outra, preservando os interesses dominantes. Uma alternativa bastante discutida pelos setores progressistas seria enfrentar esses gastos, e outros, com taxação da riqueza e dos altos rendimentos”, pontua.
Os efeitos sociais do auxílio emergencial na vida das famílias que receberam o benefício trouxeram à tona novamente a discussão sobre a instituição de uma renda universal sem condicionantes. Para o economista, a implementação de uma política deste tipo é, sem dúvida, “uma imposição das profundas transformações no mundo do trabalho, em que a robotização e outras inovações eliminam rápida e profundamente os empregos, em todos os níveis de qualificação”.
Waldir Quadros (Foto: Unicamp)
Waldir Quadros é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo - USP e mestre e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde atualmente é professor associado do Instituto de Economia.
IHU On-Line - O que a pandemia de covid-19 demonstrou sobre a situação social do Brasil?
Waldir Quadros - A pandemia revelou em cores ultranítidas todas as carências e iniquidades que perpassam a sociedade brasileira. Além de agravar a condição social dos trabalhadores e aumentar brutalmente o sofrimento dos pobres.
IHU On-Line - Que análise qualitativa o senhor faz da atual situação social do Brasil, desde o início da pandemia? A desigualdade social aumentou ou não?
Waldir Quadros - Ficou evidente que nossa situação social é brutalmente desumana e insustentável em condições minimamente civilizadas. Fica difícil falar em aumento ou redução da desigualdade. Na verdade, os impactos da epidemia se dão em uma estrutura de enormes desigualdades já consolidadas.
IHU On-Line - A edição mais recente da Pnad Contínua indica um aumento da taxa de desemprego. No total, são mais de 12 milhões de brasileiros desempregados. Qual é o impacto disso neste momento?
Waldir Quadros - O desemprego e o desalento foram bastante agravados pela inédita paralisia econômica. Esta situação impacta diretamente os trabalhadores populares afetados e suas famílias, agravando as condições de vida e repercutindo na economia pela redução da demanda, principalmente de bens essenciais. Porém, uma parte desse desemprego afeta a classe média, com redução da demanda por serviços.
IHU On-Line - No início da crise pandêmica no Brasil, em março, o senhor mencionou a necessidade de “fazer o possível para dar o mínimo de suporte às pessoas mais vulneráveis” e advertiu para a necessidade de implementar medidas não usuais, porque a situação não é usual. Cinco meses depois, com a instituição do auxílio emergencial, o possível foi feito? Qual sua avaliação do modo como o governo tem enfrentado essa questão?
Waldir Quadros - O governo vem enfrentando muito mal a situação em função da orientação desumana da política econômica neoliberal, que privilegia os interesses financeiros. O teto nos gastos públicos impede uma ação mais vigorosa que busque minimamente estimular o crescimento econômico. Devemos ter claro que o auxílio emergencial foi instituído pelo Congresso Nacional e implantado com muita má vontade pelo governo, bastando mencionar as constantes objeções da área econômica.
IHU On-Line - Segundo um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), o auxílio emergencial possibilitou que a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza atingisse a sua menor marca em, pelo menos, 40 anos. Como o senhor interpreta essa informação e o que ela nos indica, especialmente sobre os programas de transferência de renda para enfrentar a pobreza?
Waldir Quadros - Sem dúvida, diante do impacto social da paralisia econômica, o auxílio emergencial foi decisivo para evitar que um enorme contingente de famílias pobres ficasse sem condições de atender suas necessidades básicas. Como já sabemos, os programas de transferência de renda são fundamentais para construir uma rede de proteção social aos mais vulneráveis.
IHU On-Line - Como a vida das pessoas mais vulneráveis mudou após receberem o auxílio emergencial?
Waldir Quadros - Sem o auxílio emergencial, estas famílias seriam levadas a uma situação de brutais carências e desespero.
IHU On-Line - Ontem [31-08-2020], o governo Bolsonaro prorrogou o auxílio emergencial no valor de 300 reais até o final do ano. Como o senhor avalia essa iniciativa?
Waldir Quadros - A prorrogação é fundamental, porém a redução do valor pela metade terá forte impacto negativo. Seria desejável uma resistência do Congresso Nacional, já que até o momento nossa sociedade está profundamente letárgica.
IHU On-Line - Qual sua avaliação acerca da proposta do governo de reformular o Programa Bolsa Família, aumentando o benefício e o número de beneficiários, mas, talvez, tendo que encerrar outros programas sociais, como a Farmácia Popular?
Waldir Quadros - Esta proposta está inserida na concepção geral da área econômica de preservar o teto de gastos, transferindo recursos de uma ação social para outra, preservando os interesses dominantes. Uma alternativa bastante discutida pelos setores progressistas seria enfrentar esses gastos, e outros, com taxação da riqueza e dos altos rendimentos.
IHU On-Line - Alguns pesquisadores dizem que o teto para os programas de transferência de renda é de 3% do PIB, enquanto outros argumentam que este é o momento de tentar instituir uma renda universal para todos os brasileiros, especialmente por conta da crise econômica e das mudanças que estão em curso no mundo do trabalho. Como o senhor tem pensado sobre essa questão? A renda universal é uma alternativa para o Brasil? Sim, não, por quê?
Waldir Quadros - Sem dúvida, a renda universal é uma imposição das profundas transformações no mundo do trabalho, em que a robotização e outras inovações eliminam rápida e profundamente os empregos, em todos os níveis de qualificação. Esta avaliação é, inclusive e crescentemente, acatada pelos setores internacionais conservadores e liberais mais civilizados. E mesmo por titulares de grandes fortunas, que advogam o aumento da tributação para sustentar esses gastos.
IHU On-Line - Alguns avaliam que propostas de renda básica, quando são feitas por liberais, têm o objetivo de encerrar outros serviços públicos. Qual sua avaliação?
Waldir Quadros - Como disse acima, esta concepção é dominante na atual e míope gestão econômica, regida exclusivamente pelos interesses da riqueza.
IHU On-Line - Quais são os principais desafios do Brasil neste momento, pós-pandemia?
Waldir Quadros - Enfrentar decididamente o agravamento da situação social e avançar na recuperação de níveis mínimos de crescimento econômico, fundamentalmente com projetos de infraestrutura e construção civil, particularmente a residencial, com o que também seria atacado o gravíssimo déficit habitacional.