01 Setembro 2020
Lucro do Banco Central servirá para pagar juros da dívida interna, enquanto enfrentamento à covid-19 recebeu metade dos gastos autorizados. E não há plano de retomada para o país.
A reportagem é de Cláudia Motta, publicada por Rede Brasil Atual, 31-08-2020.
Diga para quem governas e te direi quem és. A máxima, no caso do governo Jair Bolsonaro, coloca por terra o suposto salvador dos pobres surgido após o auxílio emergencial. O valor obtido pela oposição no Congresso Nacional, de R$ 600 ao mês, nem existiria. Ou seria de no máximo R$ 200 se dependesse do governo federal e sua bancada. A lógica se repetiu com a autorização pelo Conselho Monetário Nacional, na semana passada, de repasse de R$ 325 bilhões, parte do lucro do Banco Central (BC), para que o Tesouro Nacional pague títulos da dívida pública. Por trás desses nomes de difícil compreensão há um projeto de governo.
Os gastos para financiar o enfrentamento à pandemia do novo coronavírus somaram até agora R$ 278 bilhões – metade do autorizado pelo orçamento, de R$ 511 bilhões. Enquanto isso, o repasse do BC ao Tesouro chegou a R$ 325 bi. Esse dinheiro irá para bancos e fundos de pensão, principais detentores dessa dívida pública interna. “Por que é aceita a transferência desse volume de recursos para garantir a remuneração dos financiadores do Estado, que seguem lucrando muito inclusive nesse período em que o país sofre tanto?”, questiona a economista Patrícia Pelatieri, diretora do Dieese. “E veta-se a discussão de transferir esse recurso para financiar, por exemplo, uma renda básica e promover trabalho para as pessoas.”
Isso seria possível com alterações na legislação, já propostas em projetos de lei como os do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) e do senador Paulo Rocha (PT-BA). “Os lucros do BC podem ser transferidos, apenas em 2020, ao Tesouro Nacional, e bancar o auxílio emergencial. O montante já apurado é mais do que o suficiente para o prorrogarmos (o benefício) até dezembro. Isso é fundamental para reduzirmos o impacto socioeconômico da crise sanitária sobre os mais pobres”, avalia o senador.
Esses R$ 325 bi do “lucro” do BC que será transferida ao Tesouro são, na realidade, resultado do ganho cambial, da valorização das reservas internacionais. “O câmbio teve alta, o real foi desvalorizado e as reservas que são em dólar tiveram um ganho, um ‘lucro’”, explica Patrícia Pelatieri. Mas, alerta ela, aquilo que foi ganho em um semestre, pode ser perda em outro, diante da flutuação do câmbio.
Para o economista Leandro Horie, também do Dieese, o problema em si não é o repasse dos R$ 325 bi do BC ao Tesouro. “Há um cenário fiscal muito difícil. A economia não cresce, e a base de arrecadação é muito vinculada ao desempenho econômico. E como a economia está à beira de uma depressão isso obviamente se reflete nas receitas. E vai diminuindo espaço para rolar a dívida pública”, diz. “Por isso o governo vai precisar de uma liquidez ou para resgatar essa dívida, ou refinanciar com uma taxa de juro maior. É uma estratégia que o governo está adotando para resgate da dívida.”
A questão, observa, é que o mercado aceita que isso seja feito sob a justificativa de uma saúde fiscal. “Mas na verdade o mercado é que detém esses papeis. Eles têm muitos títulos públicos em suas carteiras de investimento e seria muito ruim que qualquer problema afetasse a qualidade, ou levantasse dúvida sobre a solvência desses papeis. O mercado financeiro, ao defender esse tipo de política, está atuando em benefício próprio.”
Horie, que atua na subseção do Dieese da CUT, também descreve a conduta do governo quando se trata de discutir retomada da economia pós-pandemia. “Quando vai discutir política de retomada, ou como financiar um programa de renda mínima, o governo vem com a velha justificativa da questão fiscal. Não tem dinheiro, tem o teto dos gastos. É o poder de direcionar para onde vai a política fiscal”, afirma. “Nesse caso, o governo está utilizando uma sobra de investimento cambial num gasto direcionado. Esses tipos de soluções poderiam ser propostas para outras políticas. Mas não está sendo”.
O que de fato é relevante nessa discussão, segundo o economista Leandro Horie, é a completa ausência de qualquer plano de retomada desse governo. E, por outro lado, a facilidade que se tem para aprovar certos procedimentos fiscais, focados num determinado público que são os detentores da dívida pública. “Tudo para garantir a estabilidade do mercado de título público. E a gente sabe, são poucos os agentes econômicos que possuem. Mas quando a gente vai discutir a solução de políticas mais amplas, como o financiamento de políticas sociais, de gasto para retomada, um programa de renda mínima, daí o governo esquece essas muitas possibilidades que existem de financiamento.”
O economista Sérgio Mendonça, ex-secretário de Administração do Ministério do Planejamento, lembra que esse acúmulo de reservas cambiais veio dos governos do PT, principalmente nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, e também da gestão Dilma Rousseff.
Mendonça reconhece a importância de financiar a dívida nesse momento de “estresse”. “É uma questão de opção de política econômica. De um lado, vai financiar melhor o Estado. Vai resgatar títulos, e os bancos vão receber por esses títulos. A questão é botar na balança: aparentemente dar um recurso direto à população, seja por meio do auxílio emergencial ou com programas de investimentos em criação de empregos e renda, parece mais importante do que financiar a dívida pública. Mas garantir que consiga fazer a rolagem da dívida pública não deixa de ser importante para um momento de estresse como esse”, explica Mendonça, que atualmente dirige o site Reconta Aí.
Outras opções, avalia ele, envolveriam usar recursos, como os R$ 325 bilhões do BC, em contrapartida para alavancar crédito nos bancos públicos, por exemplo, no BNDES. Ou para investimento produtivo. “O projeto do senador Paulo Rocha, no sentido de bancar um período mais longo do auxílio emergencial, é interessante. E também tem outras possibilidades, como o PT propôs ano passado, que é dar lastro com as reservas cambiais para que o BNDES alavanque seus empréstimos para o investimento produtivo e para gerar renda com uma parcela dessas reservas cambiais.”
Apesar do efeito positivo sobre a dívida, ao resgatar títulos de médio e longo prazo por de curto prazo, você está pagando quem é dono daquele título – na maior parte bancos, mas também fundos de pensão. “E por trás dos títulos estão as aplicações no sistema financeiro que rentabilizam os investimentos de uma parcela da classe média alta, da classe rica.”
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Com R$ 325 bi do BC para o Tesouro, governo reforça prioridade a bancos em tempos de pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU