18 Agosto 2020
Se alguma vez a vida religiosa foi um navio de cruzeiro – imponente, estável e povoado – a transportar irmãs consagradas em uma jornada uniforme, hoje esta vocação exige embarcações menores, próprias para as águas desconhecidas em que cada comunidade deve navegar, ao mesmo tempo que olham para um mesmo horizonte. É o que diz a Irmã Jayne Helmlinger, presidente da Conferência de Liderança das Religiosas – LCWR, na sigla em inglês.
A reportagem é de Soli Salgado, publicada por Catholic News Service, 16-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Os destinos que se apresentam a cada irmã ou comunidade vão determinar a embarcação a ser escolhida para a viagem, continuou a Irmã de São José de Orange, na Califórnia, em seu discurso presidencial proferido a uma audiência virtual de 1 mil irmãs e convidados. Era o segundo dia da assembleia anual, realizada virtualmente, em 13 de agosto.
Assim como umas podem precisar descobrir como ancorar os navios em águas rasas, outras, segundo ela, talvez precisem de equipamentos de mergulho para chegar até os mais vulneráveis “invisibilizados e perdidos por baixo das ondas do capitalismo, das estruturas de exclusão, dos sistemas de poder que lhes negam entrada”.
Representando 80% das religiosas nos EUA, as coordenadoras das congregações-membro da LCWR discerniram, nos últimos anos, sobre o papel das religiosas consagradas na sociedade moderna, cada vez mais secular, diversa e interligada.
Agora, que o contexto inclui uma “pandemia dentro de uma pandemia”, como chamou Helmlinger ao se referir tanto ao coronavírus, que tira praticamente 1 mil vidas por dia nos EUA, quanto à questão do racismo sistêmico trazido ao centro do discurso nacional após as manifestações do movimento Black Lives Matter.
Esse discurso de Jayne Helmlinger foi a sua última tarefa como presidente da LCWR. Em 14 de agosto, ela uniu-se à presidência triunvirata ao lado da irmã dominicana Elise Garcia e da Irmã Jane Herb, do Imaculado Coração de Maria.
O tema da assembleia – “A visão infinita de Deus: a nossa caminhada às fronteiras e além” – levou a Irmã Helmlinger a refletir sobre as fronteiras em torno do racismo, da vida religiosa na atualidade, das orientações emergentes e do futuro das religiosas, bem como sobre a vulnerabilidade que acompanha cada uma dessas dimensões.
Helmlinger, para exemplificar o que dizia, pôs a sua própria vulnerabilidade em evidência.
Aquela que certa vez foi uma “santa inquietação” para a religiosa – sensação que lhe veio quando a pandemia começou a mudar as realidades no começo do ano –, agora transformou-se em uma “santa fúria”, disse ela, depois de ver as imagens, de 25 de maio, que mostram George Floyd ser sufocado sob custódia de policiais em Mineápolis.
“Essa parte da visão de Deus é infinitamente clara para mim: nós temos um trabalho a fazer, em nossa cumplicidade ao deixar que a insidiosidade do racismo tenha florescido dentro nós e em nosso entorno”, afirmou.
Inspirada pela narrativa bíblica da conversão de Saul a caminho de Damasco, Helmlinger declarou que, ao ver o vídeo da morte de Floyd, sentiu que as “escamas que cobriam os meus olhos foram arrancadas” diante do racismo sistêmico e do privilégio branco.
Em seguida, o seu trabalho vulnerável começou: o caminho para Damasco.
A religiosa lembrou de quando jogava basquete aos 13 anos em que presenciou, horrorizada, uma colega negra receber insultos raciais na quadra.
Helmlinger recordou de quando era noviça a ser enviada à fronteira com o México, quando teve uma sensação vaga de medo e ansiedade, o que mais tarde entendeu ser “um medo incutido em mim a respeito dos mexicanos”, como resultado de uma cosmovisão estreita vinda do fato de nascer e ter sido criada em um pequeno município do interior de Ohio.
“Não podemos ser, viver ou liderar de modo autêntico se não nos dispomos a realizar o trabalho interior exigido de nomear e erradicar o racismo que habita dentro”, disse.
Nos pequenos grupos de reflexão organizados após a fala da Irmã Helmlinger, a Irmã Eileen White, da Congregação do Sagrado Coração, falou que as participantes debateram o foco dado na vulnerabilidade, como para isso se manifesta no fato de elas não saberem “como ser líderes nestes tempos”, ao mesmo tempo que precisam confrontar a cumplicidade da Igreja e das congregações religiosas na questão do racismo. White preside a Região 3 da LCWR, área que inclui os estados da Pensilvânia e Nova Jersey.
Mesmo assim, como disse uma irmã na partilha em grupos: “Dolorosamente a vulnerabilidade me livra do excesso de responsabilidade, da necessidade de saber tudo, de que tudo depende de mim”.
Na fala à assembleia, Helmlinger salientou o trabalho interior que teve de realizar em relação ao racismo e aos privilégios, perguntando-se se “às vezes não ficamos desconfortáveis em nossa própria pele ao caminharmos pelo terreno do racismo, indo embora cedo demais, voltando a um lugar de conforto e proteção”, o que chamou de uma “falsa proteção”, uma vez que as fronteiras divisoras permanecem intactas.
Segundo a religiosa, somente quando escolhemos nos “aventurar nas profundezas do nosso ser” é que nos preencheremos com “a graça transformadora de Deus” em amar uns aos outros.
“É uma caminhada pela divisão imensa que as estruturas e os sistemas sociais tanto se esforçam para manter. É a nossa caminhada a Damasco, a nossa caminhada a Emaús, onde encontramos Deus em nosso meio”.
Embora a idade média das irmãs continue aumentando – hoje se aproxima dos 80 –, Helmlinger diz que a narrativa aqui não precisa ser a de encurtamento e escassez, mas aquela de oportunidades e imaginação: “Um tempo para canalizar a nossa criatividade coletiva para a própria vida religiosa”.
As irmãs que ouviram o discurso, mais tarde refletindo em pequenos grupos, citaram a analogia de Helmlinger que dizia dos navios cruzeiros e embarcações menores, como sendo uma imagem útil para expressar as necessidades diversas que enfrentam.
Como alguém do grupo de reflexão da Irmã Theresa Sandok falou: “Há muito espaço neste navio cruzeiro”, contou Sandok ao Global Sisters Report. Descer desse navio e encontrar novas embarcações que respondam às necessidades do mundo é o desafio posto diante das religiosas, completou Sandok, superiora das Servas de Maria e membra do conselho de diretoras da LCWR.
“É fundamental que abracemos este movimento de vida religiosa transnacional, transcarisma e transcultural, se quisermos florescer nos próximos anos”, disse.
Tratar a nossa congregação de origem “como se fossem ilhas em si mesmas” é um desserviço à vida religiosa, continuou Helmlinger, enfatizando a necessidade emergente de fronteiras porosas.
Parte deste trabalho inclui o conselho da LCWR e as várias comissões que exploram formas de incluir, nos encontros regionais, as irmãs mais jovens e aquelas pertencentes a outras etnias, além das lideranças que não participam da LCWR.
“Na medida em que, nos EUA e em outros lugares, a vida religiosa evolui, também as nossas estruturas devem evoluir enquanto organização a auxiliar as lideranças eleitas em seus ministérios”, disse.
As fundadoras dessas congregações aceitaram a situação de vulnerabilidade que havia, uniram-se na fé, sabedoria e criatividade e forjaram novas comunidades e ministérios em fronteiras difíceis, aventurando-se para além das fronteiras congregacionais enquanto seguiam o Espírito Santo.
Ao imaginar cada irmã ou congregação em suas próprias embarcações, Helmlinger disse ver uma “liberdade das nossas irmãs mais jovens em navegar”, seguindo o convite do Espírito, às vezes ao lado de irmãs mais velhas, com outras mais novas. “Será que deixaremos as condições para que elas consigam alcançar as praias mais distantes?”
“Subamos em nossas embarcações e saibamos que onde uma de nós estiver presente, estaremos todas presentes”, Helmlinger disse ao grupo. “O vento sagrado do Espírito está soprando. Navegaremos a favor ou contra?”
Após a fala da presidente, White refletiu sobre a sua própria comunidade religiosa e sobre a analogia traçada. “A nossa comunidade está em modo de encerramento”, disse a religiosa.
“Sabemos que a nossa congregação do Sagrado Coração não vai durar para sempre, mas a vida religiosa, sim. Ela vai ter uma aparência nova, a qual nós precisamos nos abrir para encontrar”.
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EUA. Presidente da LCWR reflete sobre o racismo, a vida religiosa e o futuro das vocações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU