14 Agosto 2020
"A profunda crise econômica, já instalada antes da pandemia e por esta agravada, criou um quase consenso sobre a necessidade do Estado elevar os seus gastos sociais, de modo a garantir, por meio de uma renda emergencial, a sobrevivência de dezenas de milhões de pessoas. Trouxe também a discussão sobre uma renda básica permanente e as possíveis fontes tributárias de financiamento", escreve Paulo Gil Introíni, integrante do Instituto Justiça Fiscal e do Coletivo Auditores Fiscais pela Democracia, em artigo publicado por Teoria e Debate, e reproduzido por Outras Palavras, 12-08-2020.
Crise expõe injustiça da tributação brasileira, que aprofunda desigualdades. Cresce debate sobre imposto contra a hiperacumulação. Mas, para manter isenção, super-ricos munem-se de bravatas — aqui, devidamente desmontadas.
Um espectro ronda o topo da pirâmide social – o espectro da tributação progressiva sobre as altas rendas e o grande patrimônio.
A tributação sobre os mais ricos foi reabilitada no debate público. O cenário é o da tempestade perfeita, pela conjugação da crise sanitária com a falência das políticas de austeridade e todas as suas consequências: concentração de renda e de riqueza e a sua contra-face, o acelerado aumento da desigualdade, da pobreza e da miséria.
Entre as intenções sinceras para enfrentar a desigualdade, é surpreendente a maior popularidade do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) em comparação ao necessário acerto de contas com os endinheirados por meio da tributação das altas rendas. Evidentemente, a consciência sobre a necessidade de tributar os de cima deve ser comemorada e reflete uma mudança de percepção, no próprio campo popular, em relação aos últimos 25 anos.
É importante afirmar e reafirmar: a desoneração das rendas recebidas pelos sócios e acionistas a título de lucros e dividendos, instituída em 1995, é, de longe, a principal distorção da tributação brasileira e significa uma das manifestações mais perversas da elite econômica brasileira em relação às suas obrigações para com a sociedade.
Os dados divulgados pela Receita Federal demonstram que a tributação sobre a renda recai fundamentalmente sobre os rendimentos do trabalho. Empresários que recebem mais de 320 salários mínimos por mês sofrem uma carga média do Imposto de Renda da Pessoa Física em torno de 2%.
Na média, dois terços da renda dos mais ricos, empresários ou não, é isenta, por conta dos mecanismos de alívio tributário às rendas do capital. Esta renúncia fiscal [1] referente ao imposto de renda dos sócios e acionistas representa mais do que o dobro, ou até o triplo, em relação ao que poderia ser arrecadado pelo IGF.
De qualquer modo, os milionários e bilionários deste país, erigido a partir da herança colonial, do latifúndio e da escravidão, têm motivos de sobra para se preocupar, seja pela maior tributação do grande patrimônio ou da incidência sobre as altas rendas.
Não custa lembrar, conquanto o imposto progressivo sobre a renda pessoal seja mais eficaz e tenha maior potencial arrecadatório que o IGF, um não exclui o outro quanto aos objetivos de redistribuição e de arrecadação. O primeiro, ao incidir sobre o fluxo de renda, retarda a sua acumulação; o segundo ataca a concentração do estoque de renda já acumulado sob a forma de bens e direitos.
A fragilidade dos argumentos contrários ao IGF revela também a falta de legitimidade na defesa de quem tem sobrando. Vale a pena fazer um inventário dos argumentos de quem vê a taxação das riquezas como uma assombração.
Iniciemos pelos argumentos de natureza econômica. Um dos mantras liberais é o de que um bom sistema tributário deve ser orientado pela neutralidade e eficiência. A depender da incidência do tributo, haverá mudança de comportamento dos agentes econômicos. Alteram-se as suas decisões quanto à poupança, ao lazer, ao trabalho etc. e, consequentemente, aumentam os custos de eficiência do sistema, porque este sai do seu “leito natural”. É a carcomida história da autorregulação do mercado.
Os impostos sobre a renda ou o patrimônio seriam os que mais distorcem a eficiência econômica.
Sobre a teoria convencional, um fato curioso merece ser narrado aqui porque é melhor do que qualquer explicação acadêmica. Em 2018, sindicatos, associações e outras organizações sociais promoveram um seminário internacional em São Paulo. Num dos painéis, discutia-se a tributação dos países nórdicos, quando a representante sueca, de formação liberal, para espanto geral, indagou ao público: “Com que ânimo alguém levanta de manhã para trabalhar se houver uma alíquota de 70% do imposto de renda?” Será que ela falava do Silva de Cá ou do Silva de Lá? Certamente, não se referia a alguém das classes trabalhadoras nem à sua realidade. A palestrante foi lembrada de que, por estas terras, quem paga imposto de renda é, de certa forma, afortunado, porque tem emprego e renda suficiente para tal.
De acordo com essa visão, é fácil perceber que os tributos progressivos não serão bem vindos, pois irão afetar a situação do agente econômico após a sua incidência. O agente econômico pode não querer levantar da cama para ir trabalhar!
Também nessa ótica, retirar uma parte dos lucros das mãos dos empresários desestimularia a poupança e comprometeria os investimentos. Ora, o sentido da determinação investimento-poupança está invertido. E não é necessária poupança prévia para que haja investimento. Além do mais, se a redução da tributação dos lucros aumentasse o investimento, o Brasil não teria patinado tanto quando instituiu a desoneração das rendas do capital no primeiro ano do governo FHC.
Os porta-vozes do capital costumam também levantar um espantalho contra o IGF, o risco da fuga de capitais. Só vale falar disso em relação à riqueza financeira, ainda assim, há vários mecanismos que um Estado soberano pode adotar para controlar os fluxos de capital.
Afirmam ainda que o IGF incide sobre uma riqueza sem liquidez e a pessoa teria que vender o patrimônio para pagar o imposto. Nos tempos da dominância financeira, é pouco provável. Mas, afinal, o objetivo do IGF não é o de diminuir a riqueza pessoal extrema?
Há algumas “pérolas” no debate, como a de que a tributação da riqueza acelera o processo inflacionário por excesso de demanda. Descartados o exagero e o terrorismo econômico, não deixa de ser, por via transversa, um argumento de reconhecimento da viabilidade para uma redistribuição de renda aos mais pobres por meio do imposto.
Segundo esse argumento, o IGF estaria em franca decadência porque vários países deixaram de adotá-lo em virtude de sua baixa arrecadação e são poucos os que ainda o utilizam.
De fato, a partir da década de 1990 vários países extinguiram o Imposto sobre a Fortuna. No entanto, Pedro Humberto Carvalho Jr. e Luana Passos registram que: “Todos os países da Europa Ocidental adotam ou já adotaram um Wealth Tax, com exceção da Bélgica, Portugal e Reino Unido”. Mudou a orientação da política econômica nos países em que ascenderam governos de direita [2].
É importante ressalvar que mesmo os países que abandonaram o Imposto sobre a Fortuna, mantêm elevados níveis de imposição sobre o patrimônio, por meio de outros tributos.
Não é de se estranhar essa inflexão na tributação das fortunas. Uma das principais premissas do neoliberalismo é a desoneração dos rendimentos dos mais ricos.
Ainda segundo aqueles autores, o imposto consolidou-se atualmente na Espanha, Suíça, Noruega, França e Luxemburgo. “Na América Latina, o imposto atualmente existe na Argentina (desde 1972) [3], Uruguai (desde 1996) e Colômbia (desde 2002). (…) “Devido à crise fiscal e financeira de 2009, ele foi reintroduzido na Espanha e brevemente na Islândia entre 2010 e 2014.” [4]
No Chile, o parlamento aprovou recentemente a criação de um Imposto com alíquotas de 2,5% sobre o patrimônio dos super ricos. E, na Argentina, o governo de Alberto Fernández tomou a iniciativa de apresentar a proposta de um imposto extraordinário para quem tem patrimônio acima de US$ 3 milhões, cuja arrecadação será destinada para as políticas de saúde.
Nos EUA, ganha força a bandeira levantada pelos democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren de instituição de um imposto sobre a riqueza dos multimilionários.
A experiência internacional de modo algum desautoriza a instituição de um imposto sobre grandes fortunas, mas mostra que a criação de um tributo sobre as grandes riquezas depende unicamente da decisão política da sociedade sobre qual desigualdade irá tolerar. Quando o Reino Unido instituiu uma alíquota máxima do Imposto de Renda de 98%, a mensagem à sociedade era a de que a desigualdade é intolerável. [5]
Os assombrados com a tributação da riqueza alegam que o IGF tem baixo potencial arrecadatório e elevado custo de processamento (fiscalização e controle). Teria sido este o motivo de alguns países desistirem do imposto.
Preliminarmente, cabe destacar que a função primordial do IGF é extrafiscal: reduzir a desigualdade econômica. Neste sentido, é de se prever maior potencial arrecadatório em países com maiores disparidades de riqueza e arrecadação menor nos países mais igualitários. Quando a riqueza da sociedade for distribuída de forma mais homogênea, o imposto terá menor potencial arrecadatório e reduzida importância extrafiscal.
Ainda assim, com base nos dados agregados dos declarantes do Imposto de Renda da Pessoa Física, é possível estimar uma arrecadação entre R$ 30 e 60 bilhões, a depender da configuração do imposto (maior ou menor campo de incidência, calibragem das alíquotas progressivas e limite acima do qual incide o tributo). Aqui, também, o campo de batalha é a política.
De outra parte, a alegação de que é muito difícil e custoso identificar o patrimônio dos residentes no Brasil não se sustenta. Atualmente existe uma sólida estrutura informacional para processar gigantescas quantidades de dados de pessoas físicas e empresas. A troca de informações entre os fiscos e o cruzamento de cadastros de propriedades e proprietários por meio dos atuais sistemas informatizados por parte da Administração Tributária depende apenas, e mais uma vez, de vontade política.
Para alguns economistas liberais, o primeiro problema do IGF é representar bitributação, uma vez que a riqueza é renda acumulada e, supostamente, a renda já teria sido tributada. Friso o “supostamente” tributada, pois no Brasil, boa parte da renda do capital não paga imposto de renda e, assim, um montante muito maior de riqueza é acrescido por esse meio.
Além do conceito ser mal aplicado [6], por esse raciocínio, não deveríamos ter instituído o IPVA, o IPTU ou o ITR, porque a renda para adquirir o veículo, o imóvel urbano ou rural pode já ter sofrido incidência do Imposto de Renda. Também não poderíamos ter instituído qualquer tributo sobre o consumo, como o ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins pois a renda dos adquirentes dos bens ou serviços teria, por suposição, sido tributada.
O arranjo político do pós-guerra alçou os Estados nacionais a um novo patamar de protagonismo. Os países que lograram estabelecer Estados de bem-estar combinaram tributação fortemente progressiva sobre a renda e o patrimônio com gastos sociais bem orientados. Estes são traços marcantes daquele período histórico.
A revolta do capital [7] impulsionou a reação conservadora mirando, justamente, o Estado Social e as políticas universais. Caminharam, lado a lado, a celebração do individualismo e a contestação da prerrogativa fiscal do Estado [8]. Nos países da Europa Ocidental, o vento neoliberal bateu com menos força que na periferia. Lá, as políticas universais, mesmo enfraquecidas, permaneceram.
O Brasil fincou as bases de seu Estado de bem-estar com 40 anos de atraso em relação ao mundo desenvolvido, na Constituição Federal de 1988. E de lá para cá, as forças sociais conservadoras empenham-se, continuamente, em desmaterializar os objetivos fundamentais da denominada República Federativa do Brasil [9].
A profunda crise econômica, já instalada antes da pandemia e por esta agravada, criou um quase consenso sobre a necessidade do Estado elevar os seus gastos sociais, de modo a garantir, por meio de uma renda emergencial, a sobrevivência de dezenas de milhões de pessoas. Trouxe também a discussão sobre uma renda básica permanente e as possíveis fontes tributárias de financiamento. Os liberais aceitam a elevação temporária dos gastos públicos e o financiamento por meio de tributos que não incidam sobre os mais ricos. Vão somente até este ponto.
Ocorre que a prolongada crise econômica – agravada, agora, pela pandemia – expôs as vísceras sociais. Estampou as manifestações de desigualdade à vista de quem quiser ver. E, o que era inevitável aconteceu: os holofotes foram acesos sobre a baixa tributação dos ricos no Brasil.
O papel central dos tributos é reduzir as desigualdades. Mas, em passado não tão distante, era comum ouvir-se, mesmo no campo popular, que o importante é arrecadar e que justiça fiscal se faz pelo lado do gasto. À luz da experiência histórica, é urgente questionar: houve Estados de bem-estar sem tributação progressiva?
A boa notícia é o ânimo de luta das forças populares progressistas, que apontam, com base na realidade presente e passada, a artificialidade de muitas das restrições para que o Estado se submeta às políticas de austeridade. E, principalmente, a elevada compreensão da centralidade tributação dos ricos para a redução das desigualdades.
[1] Apesar da desoneração das rendas do capital previstas nos artigos 9º e 10º da Lei 9.249/95 não estarem incluídas nos Demonstrativos de Gastos Tributários, é disso que se trata: renúncia fiscal. Há alguma explicação plausível para que as destinações aos Fundos da Criança e do Adolescente, a isenção referente aos proventos de Aposentadoria por Moléstia Grave ou Acidente e as deduções do IRPF, para ficarmos em alguns exemplos, sejam consideradas gastos tributários, enquanto os benefícios às rendas do capital recebidas pelas pessoas físicas, da ordem de R$ 100 bilhões, não sejam relacionados nos demonstrativos da administração tributária?
[2] CARVALHO, P. H.; PASSOS, L. “Imposto sobre Grandes Fortunas”. In FAGNANI, E. (org). Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas. Brasília: Anfip: Fenafisco: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018. Disponível aqui.
[3] Trata-se do Imposto sobre bens pessoais.
[4] Idem.
[5] PIKETTY, T. O Capital no Século XXI. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
[6] Na bitributação, dois entes tributantes distintos cobram dois tributos sobre a mesma hipótese de incidência (fato jurídico tributário). Seria o caso, por exemplo, do imposto de renda norte-americano, em que os Estados podem cobrar um adicional. Não há vedação na Constituição Federal brasileira em relação à bitributação.
[7] Feliz expressão utilizada por Wolfgang Streeck para designar a reação ao protagonismo do Estado, em sua obra: Tempo Comprado, Editora Boitempo, 2018.
[8] BELLUZZO, L. G. Os Antecedentes da Tormenta – Origens da crise global. 1ª. Ed. São Paulo: Unesp; Campinas, SP: Facamp, 2009.
[9] Como sabemos, tais objetivos fundamentais encontram-se no artigo 2º da CF/1988: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
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Imposto sobre Grandes Fortunas e a elite aflita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU