29 Julho 2020
A pandemia causada pelo coronavírus surpreendeu os sistemas de saúde pública da América Latina, que vivem situações deploráveis, após anos de cortes orçamentários, com escassez de médicos, leitos, unidades de terapia intensiva, sem suprimentos suficientes de medicamento, nem capacidade de enfrentar uma contingência sanitária dessa magnitude.
A reportagem é de Rafael Croda, publicada por Proceso, 26-07-2020. A tradução é do Cepat.
Essas carências têm sido um "fator decisivo" para a rápida expansão de infecções e mortes por covid-19 na região, explica Celia Iriart, doutora em saúde coletiva. "Essa pandemia expôs a dureza das reformas neoliberais que acabaram desarticulando os sistemas de saúde pública na América Latina e por dar maior proeminência à saúde privada, organizada com para o lucro", afirma a professora emérita da Faculdade de Saúde Populacional da Universidade do Novo México.
Segundo Iriart, nesta emergência de saúde, que deixou pelo menos 3,5 milhões de infectados e 150.000 mortes na região - projeção da sexta-feira, 17 de julho -, amplos segmentos da classe média latino-americana descobriram “que o Estado é importante, quando, há um ano, pensavam que o mercado resolvia tudo".
A realidade “mostra clara e dramaticamente que o Estado não pode se retirar da saúde, como vinha fazendo nas últimas décadas e, pelo contrário, deve ter um papel muito importante, não apenas no financiamento, mas na regulação do setor".
De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), os gastos em saúde dos governos da região permaneceram estagnados, nas últimas quatro décadas. Inclusive o do ano passado, que foi de 2,2% do PIB, resultou 0,4 ponto menor que o de 1960.
Autora de vários livros, ensaios e pesquisas acadêmicas sobre o impacto das reformas de mercado nos sistemas públicos de saúde na América Latina, Iriart argumenta que uma melhor infraestrutura sanitária na região teria atuado como um "muro de contenção" contra a pandemia, evitando milhares de mortes.
A falta de financiamento para a saúde pública impediu a região de tomar medidas preventivas contra uma eventual pandemia, apesar dos apelos da OPAS, nesse sentido.
Em sua mais recente edição do relatório quinzenal Saúde nas Américas, que é de 2017, a OPAS pede aos países da região que "aumentem a capacidade de resposta diante dos surtos epidêmicos" e estabelece como "ações prioritárias" melhorar a gestão de riscos de infecção e preparação para responder a epidemias.
José Antonio Ocampo, doutor em economia pela Universidade de Yale, explica que durante as mais de três décadas da etapa latino-americana de "industrialização dirigida pelo estado" (1945-1980), a economia da região cresceu com taxas anuais de 5,5%, em média, e alcançou um acelerado desenvolvimento social.
"A pobreza diminuiu mais de cinco pontos percentuais, nos anos 1970, e o Estado teve um papel maior na provisão de educação, moradia, seguridade social e, é claro, serviços de saúde", aponta o também ex-presidente do Comitê de Políticas de Desenvolvimento da Conselho Econômico e Social da ONU.
De acordo com as estatísticas da OPAS, o gasto público em saúde na América Latina cresceu de maneira constante entre os anos 1940 e 1970 e representavam 2,6% do PIB da região, em 1980, mas nessa década foram interrompidos e se reverteu essa tendência.
Francisco González, professor de política internacional da Universidade Johns Hopkins, destaca que quando eclodiu a crise da dívida na América Latina, entre 1982 e 1983, os países da área optaram por “sacrificar gastos sociais e os investimentos públicos para pagar pontualmente os seus credores". A opção de não pagar "estava aberta", afirma, e os países da região poderiam ter decidido uma moratória que lhes permitiria manter níveis básicos de bem-estar para sua população.
Mas os organismos financeiros multilaterais usaram o Peru - cujo presidente Alan García havia declarado, em 1985, que somente destinaria 10% das exportações como amortização da dívida externa - para demonstrar ao resto da América Latina até onde estavam dispostos a ir para evitar a opção do descumprimento dos pagamentos.
Então, o FMI declarou o Peru um país insolvente, o que fechou seu acesso aos mercados financeiros, reduziu o investimento estrangeiro e causou uma fuga massiva de capital. Isso se traduziu em uma severa recessão econômica que levou o país a perder um terço de seu PIB, entre 1988 e 1990, e um processo hiperinflacionário no qual os preços chegaram a subir até 400% em um mês.
"Os organismos financeiros fizeram do Peru um pária", disse González. Afirma que esse exemplo foi determinante para que a maior parte dos países latino-americanos, com o México à frente (na presidência de Miguel de la Madrid e seu estrategista econômico Carlos Salinas de Gortari), priorizassem o pagamento da dívida.
"Isso se traduziu em um corte brutal do gasto público", afirma o doutor em ciência política da Universidade de Oxford, “e se encolheu tudo o que tinha a ver com investimentos públicos, principalmente em educação, moradia e saúde".
A região priorizou o pagamento da dívida em troca de uma negociação com o FMI e isso implicou, nos anos 1980, em um ajuste de grandes proporções que interrompeu um processo de construção de um estado de bem-estar na região.
"De maneira geral, os países latino-americanos foram para o lado da mercantilização e comercialização de atividades que deveriam ser tarefas do Estado. Fomos mais para o lado da privatização de serviços públicos básicos, como a saúde", acrescenta González.
"Eu pensei que se a covid-19 tivesse atingido o México, nos anos 1960 e 1970, com o sistema de saúde que tínhamos, então, em termos de cobertura, qualidade e recursos, é muito provável que não tivéssemos ido tão mal, como estamos indo agora”, disse González.
Algo semelhante acontece no Brasil. Segundo Deisy Ventura, professora de saúde global da Universidade de São Paulo, existe um sistema de saúde pública que teve forte apoio do governo no passado, mas que foi enfraquecido por cortes no orçamento, nos últimos anos, impedindo enfrentar a pandemia com maior força.
Durante as primeiras semanas de julho, a América Latina concentrou 48% das 67.000 mortes por coronavírus que ocorreram em escala global e um quinto dos 2,6 milhões de novos casos.
Não há outra região no mundo que tenha registrado tantas mortes neste mês ou tantas novas infecções. E isso, segundo Iriart, está relacionado aos níveis de pobreza, desigualdade e enfraquecimento dos sistemas públicos de saúde na região.
As altas taxas de crescimento registradas pela América Latina entre os anos 1940 e 1970 permitiram que dobrasse a renda per capita e que se massificassem os serviços públicos de educação e saúde, graças a uma injeção massiva de recursos do Estado nesses setores.
No final dos anos 1970, os gastos sociais públicos na região atingiram 10,3% do PIB, um número sem precedentes que, desde então, começou a declinar quando a crise econômica decorrente do alto endividamento externo atingiu todos os países da região.
Os anos 1980 foram conhecidos como "a década perdida". A renda per capita retrocedeu - 0,88%, naquele período, e todos os governos cortaram programas sociais e, sob pressão dos organismos multilaterais de crédito, começaram a aplicar ajustes no orçamento e reformas de mercado que sacrificavam os níveis de bem-estar da população.
O gasto público em saúde pelos governos centrais, que em 1980 representavam 2,6% do PIB, caíram duas décadas depois, para 1,5%, e o investimento privado irrompeu com maior força no setor, indicam as estatísticas da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe - CEPAL.
Embora nos últimos 20 anos o gasto com saúde tenha se recuperado na região, ainda está abaixo dos níveis proporcionais alcançados em 1980. Em 2019, era de 2,2% do PIB, e em países como México e Argentina é equivalente à metade desse percentual, registra a CEPAL.
Celia Iriart ressalta que a queda dos orçamentos estaduais no setor implicou "na desarticulação" dos sistemas públicos de saúde. E as lacunas que permaneceram nesses serviços básicos, denuncia, foram preenchidas por conglomerados empresariais, "cujo principal objetivo é o lucro, não o bem-estar do povo".
Segundo a OMS, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE e a Associação Latino-Americana de Sistemas Privados de Saúde - ALAMI, a medicina privada agora tem mais peso na região.
A América Latina gasta 7,3% de seu PIB em serviços de saúde, mas apenas um terço corresponde à saúde pública. O restante é composto por aportes e cotizações dos cidadãos para os sistemas de medicina privada e os seguros médicos e para o que é conhecido como "despesas imediatas de saúde", que é o que as famílias pagam a médicos e hospitais particulares.
A ALAMI aponta que no México, por exemplo, 48% das despesas com saúde, em 2016, foram privados. No Brasil, o percentual subiu para 54%, abaixo apareceram Chile (51%), Argentina (45%) e Colômbia (25%).
A despesa média “imediata” com saúde nos países da OCDE é de 19,1%, o que indica que quanto maior o desenvolvimento de um país, melhor o sistema público de saúde, com mais cobertura e maior qualidade.
As "despesas imediatas de saúde" geram uma deterioração na qualidade de vida de milhões de latino-americanos e são um fator de desigualdade e empobrecimento, indica a OPAS.
No México, por exemplo, essa "despesa imediata" é equivalente a 44% do total de gastos com saúde. A porcentagem significa que milhões de famílias mexicanas devem alocar parte de seu orçamento para pagar uma parte significativa de seus serviços de saúde.
Na Venezuela, onde o governo de Nicolás Maduro se proclama socialista, o sistema público de saúde está tão deteriorado que "os custos imediatos" com médicos, hospitais, medicamentos e exames representam 66% do total de gastos na matéria.
Esse "processo de desmantelamento dos sistemas de saúde pública" na América Latina, conforme definido por Iriart, acabou impactando o bem-estar da saúde da população. A especialista em saúde pública ressalta que a privatização dos serviços médicos e hospitalares resultou em uma "desaceleração" na evolução de indicadores como a expectativa de vida ao nascer, que entre 1960 e 1980 aumentaram 15,3% na região, ao passo que, entre 2000 e 2019, avançou em 5,3% e chegou a 76 anos.
Em outros indicadores, como o número de leitos hospitalares por cada mil habitantes, a América Latina inclusive retrocedeu entre o final dos anos 1970 e 2018: de 3,4 passou para 2,3 leitos por mil habitantes. E no número de médicos por mil habitantes, apenas passou de 1,6, em 1960, para 2,3, em 2018.
“Na América Latina – disse Iriart - as políticas neoliberais destruíram empregos, qualidade de vida e sistemas de saúde pública. O que a pandemia está fazendo é colocar em evidência tudo isso e a população abriu os olhos para situações que antes preferia não olhar".
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A epidemia do neoliberalismo revela a fragilidade da América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU