09 Julho 2020
Especialista da Fiocruz Amazônia alerta para os riscos da retomada das atividades do comércio, cinemas, creches e escolas em meio aos casos de Covid-19.
O Amazonas vive uma “naturalização da desgraça”, com a população ignorando os riscos de uma segunda onda de contaminação pelo novo coronavírus. A afirmação é do epidemiologista Jesem Orellana, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Para o especialista, só isso é capaz de explicar como a capital do Estado entra, a partir desta segunda-feira (6), na quarta fase da liberação de atividades econômicas mesmo com o sistema de saúde ainda fragilizado para enfrentar novos picos da Covid-19.
A reportagem é de Izabel Santos, publicada por Amazônia Real, 06-07-2020.
“As pessoas viram uma tragédia sem precedentes no Brasil, mas parece que muitos se acostumaram com aqueles números aterrorizantes, com centenas de mortes e milhares de doentes graves em uma mesma semana”, afirma Orellana. “Em nenhuma cidade do Brasil a pandemia de covid-19 foi tão avassaladora quanto em Manaus”, acrescenta, lembrando que a capital do Amazonas foi projetada para o Brasil e o mundo como um exemplo de “tragédia sanitária”.
Hoje, o Amazonas tem 76.427 casos confirmados da doença e 2.938 mortes, segundo o boletim epidemiológico da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) divulgado nesta segunda-feira (6). Sozinho, o estado tem mais mortes que os registrados em países como Portugal e Argentina – que possuem populações 5 ou 25 vezes maiores. Porém, a subnotificação é altíssima. Manaus enterrou 1.847 pessoas nos últimos quatro meses.
A retomada das atividades econômicas foi determinada pelo governador Wilson Lima (PSC), em decreto de 28 de maio, quando o Amazonas registrava 11.758 casos de Covid-19. De lá para cá, o número de infectados foi multiplicado por seis. A partir desta segunda-feira, estão liberados para retomada das atividades, com até 50% da capacidade, cinemas, creches, escolas e universidades da rede privada.
“Acredito que os números estão favoráveis e ao nosso lado. Assim eu me sinto mais segura para reabrir”, avalia a pedagoga Laura Cristina Vital, vice-presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino Privado do Estado do Amazonas (Sinepe-AM). A entidade representa 65 instituições privadas associadas. “Cada um vai voltar de acordo com as suas condições e prioridades”, esclarece ela. Manaus tem cerca de 250 estabelecimentos educacionais.
Para Laura, em particular, o retorno será marcado pela dor. “Vai fazer 60 dias que meu pai morreu”, lembra ela, que teve a família toda contaminada pela covid-19. “No início, eu não estava levando a situação a sério, mas eu peguei e toda a minha família, marido, filho e babá também”. A vice-presidente do Sinepe não precisou ser hospitalizada, mas sentiu perda de olfato, paladar e um pouco de falta de ar.
Embora Manaus tenha se tornado um epicentro da doença, o governo estadual nunca decretou medidas mais rígidas de isolamento social, como o lockdown. E tão logo a curva da doença começou a desacelerar, a partir de maio, Lima anunciou a retomada gradual das atividades em quatro ciclos: em 1, 15, 29 de junho e 6 de julho. Na reabertura do último dia 15, houve registros de aglomerações nas ruas do comércio e também nos flutuantes, os restaurantes montados à margem do rio Negro e que são uma opção de lazer aquático para os manauaras.
As aglomerações têm sido uma constante desde que o Decreto 42.099 definiu as regras do isolamento social, como a suspensão do atendimento em restaurantes, bares, lanchonetes, praças de alimentação. O Centro Integrado de Operações de Segurança (Ciops), da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, registrou 16.318 denúncias de aglomerações na capital amazonense desde a publicação do decreto, em 21 de março. “Especificamente sobre aglomerações, ou festas residenciais em casas de eventos, já foram realizadas 3.763 denúncias”, acrescenta a nota enviada pelo Ciops. Entre 20 e 21 de junho, a Polícia Militar fiscalizou mais de 600 bares na capital, que funcionavam de maneira irregular.
O Decreto nº 42.330, de 28 de maio, estabeleceu o cronograma de retomada gradual das atividades econômicas em Manaus. É nele que há a determinação do espaçamento de 1,5 metro entre pessoas, controle de aglomerações, uso obrigatório de máscara, disponibilização de álcool gel 70% e sanitização de ambientes.
Comércio aberto e movimento de pessoas sem máscara no centro de Manaus (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)
“Temos visto que alguns gestores, políticos e até pesquisadores têm vindo a público em lives e vídeos no Youtube dizer que o pior já passou e que a epidemia está acabando em Manaus. A primeira parte é verdade, mas a segunda, não, e pode voltar a custar muitas vidas e perdas econômicas ainda mais graves”, alerta o epidemiologista da Fiocruz Amazônia. O pesquisador Jesem Orellana é autor do estudo “Explosão da mortalidade no epicentro amazônico da epidemia de Covid-19”, que mostrou como a pandemia em Manaus foi muito pior do que em outras cidades do Brasil e do mundo.
“Não dá para retomar as atividades não essenciais com 4 mil novos casos em três semanas. Eu gostaria de saber como o governo do Amazonas e a Prefeitura de Manaus estão acompanhando e monitorando esses indivíduos infectados”, questiona o pesquisador Jesem Orellana, que também colabora em projetos sobre mudanças climáticas na Amazônia e sua relação com aspectos socioambientais e de saúde junto à Universidade de Lancaster (Reino Unido). “Muitos deles vão evoluir para autocura, mas outra parte vai precisar de atendimento médico ou hospitalar e UTI e, pior, uma pequena parte vai morrer. A prioridade deveria ser a preservação da vida”, diz.
“Se seguisse os critérios estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que leva em conta entre outros a velocidade de contágio e número de leitos de UTIs disponíveis, o governo do Amazonas não teria condições de decretar a retomada das atividades não essenciais”, afirma Orellana.
Mas foi o que fez Wilson Lima pouco mais de dois meses depois da adoção de medidas de isolamento, em 16 de março. Ele, que se elegeu na carona da campanha presidencial de Jair Bolsonaro, chegou a ter um pedido de prisão solicitado pela Polícia Federal (PF), em 30 de junho, pela Polícia Federal no âmbito da Operação Sangria. A investigação combate um esquema de corrupção que superfaturou a compra de 28 respiradores pela Secretaria de Saúde do Estado (Susam), conforme publicou o site UOL. O caso foi descoberto no mês de abril, quando a população doente agonizava por falta de leitos e UTIs. O sistema de saúde estava em colapso. Muitas dessas pessoas morreram a espera de leitos.
Em outras cidades brasileiras, houve um esforço do poder público para a construção de hospitais de campanha ou criação de UTIs em cidades menores, mas isso não ocorreu no Amazonas. O governo optou por concentrar o atendimento de pacientes graves de Covid-19, de todo o estado, em Manaus.
Em entrevista à Amazônia Real, o presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Hélio Leitão, classificou como um crime contra a Humanidade a falta de ações mais rígidas por parte do governador do Amazonas, no combate à covid-19 em Manaus e no interior do estado.
O prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), que chorou na mídia internacional os mortos enterrados coletivamente em valas comuns, não decretou o uso obrigatório de máscaras nas ruas; apenas em estabelecimentos comerciais e no transporte público e privado de Manaus. Ele também determinou o fechamento o hospital de campanha do município.
No último dia 29, Arthur Virgílio foi internado no Hospital Adventista de Manaus depois de testar positivo para a Covid-19. Nesta segunda-feira (6), ele foi transferido em UTI aérea particular para o Hospital Sírio Libanês com a justificativa de fazer um check-up.
Hospital de Campanha Gilberto Novaes foi fechado em Manaus (Foto: Nathalie Brasil | Semcom)
Por ser um vírus novo, a Sars-CoV-2 tem alto poder de contágio em toda a população. Os estudos têm demonstrado que a população ainda não tem imunidade alta à doença. Esse é um dos motivos para o declínio no número de casos não ter sido tão substancial.
“À medida que essa infecção se reproduz em determinada comunidade, nós vamos ter exatamente uma redução dessa população suscetível. Vamos chegar a um determinado ponto em que realmente atingimos um ápice e depois começamos o declínio. O que não parece ser a situação da covid-19, principalmente aqui na capital”, avalia o médico infectologista Bernardino Cláudio Albuquerque, presidente do Comitê Central de Combate à Covid-19 da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Bernardino, que já foi diretor-presidente da FVS, alerta sobre as diferenças regionais na evolução da doença. “Algumas sedes municipais iniciando o processo de ascensão, outros já no meio do caminho e outros que nitidamente têm um decréscimo importante”, diz. E depois de quatro meses desde o início da pandemia, os profissionais da saúde estão mais preparados, além de ter havido uma melhora da infraestrutura, com equipamentos e leitos.
Chama a atenção do infectologista um registro menor do número de mortes em municípios do interior. Embora o interior tenha mais casos confirmados, a taxa de letalidade dessas cidades é menor do que em Manaus. “Talvez aí tenha alguns fatores não muito visíveis. No interior, a cobertura da atenção básica é muito mais ampla do que na capital, o que possibilita uma detecção de casos precoce, um acompanhamento melhor e isso pode ter influenciado”, finaliza Bernardino Albuquerque, da UFAM.
Movimento no centro de Manaus (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)
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Com pressa pela reabertura, Amazonas vive a ‘naturalização da desgraça’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU