06 Julho 2020
"Fazem-se muitas escolhas no curso da própria existência. E podemos concordar ou não com essas escolhas; algumas podem até ser fortemente contestadas. Nenhuma escolha, porém, diz respeito ao próprio fato de ser mulher ou homem, ou à própria heterossexualidade ou à própria homossexualidade. O gênero e a orientação sexual são elementos da identidade de cada um de nós, aquela identidade com a qual, mais cedo ou mais tarde, todos devemos fazer as contas", escreve Michela Marzano, filósofa italiana e professora da Universidade de Paris V - René Descartes, na França, em artigo publicado por La Repubblica, 03-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nenhum de nós escolhe a própria orientação sexual ou a própria identidade de gênero. Assim como ninguém escolhe o próprio sexo.
A homossexualidade não tem nada a ver com a liberdade de viver a própria sexualidade como se acredita, assim como ser trans absolutamente não é um estilo de vida.
Talvez seja a partir daí que devamos recomeçar para esclarecer a controvérsia que eclodiu quando o movimento “Se non ora quando – Libere” – não confundir com “Se non ora quando – Factory” – escreveu uma carta aos signatários e às signatárias do projeto de lei contra a homotransfobia, pedindo para excluir toda referência à identidade de gênero.
O problema, para essas feministas, seria o de “dissolver a realidade dos corpos femininos”. Mas não são elas que, ao reduzir o conceito de gênero a um conjunto de estereótipos e de papéis, correm o risco de apagar um pedaço da realidade?
Quando Simone de Beauvoir, em “O Segundo Sexo” (1949), escreve que não se nasce mulher, mas se torna mulher, ela absolutamente não pretende dizer que uma pessoa pode escolher ou não ser mulher.
O seu objetivo é explicar que as mulheres têm o direito de repensar o seu papel saindo da prisão de subordinação ao “primeiro sexo”.
A batalha da intelectual francesa é contra os “estereótipos de gênero”, certamente não contra a “identidade de gênero” que, como já sabemos há muito tempo, indica a percepção precoce, profunda e permanente de si mesmo como homem ou como mulher. Percepção que coincide com o próprio sexo biológico, exceto quando se fala de pessoas trans.
E então? Então, talvez se deveria fazer o esforço de escutar essas pessoas. Entendendo quanto sofrimento há na vida de quem, desde a mais tenra idade, sente de maneira profunda e permanente que há algo que não está certo, algo que não funciona, algo que deu errado.
De fato, acontece que existem meninos, depois homens, que percebem desde o início que são prisioneiros em um corpo errado, porque, dentro de si, sentem-se meninas ou, melhor, são meninas.
Exatamente como existem meninas, depois mulheres, que desde o início sentem que são prisioneiras em um corpo errado, porque, dentro de si, sentem-se meninos ou, melhor, são meninos.
Dito assim, parece estranho. Quase incompreensível. Talvez absurdo. Mesmo que, em toda essa história, para as pessoas trans, absurdo é apenas o fato de se encontrar dentro de um corpo-prisão, que não corresponde àquilo que são.
E, além disso, algo ainda mais absurdo e inaceitável, há o fato de que essas pessoas são insultadas e agredidas precisamente por causa daquilo que são, embora absolutamente não o tenham escolhido. Exatamente como as pessoas homossexuais que, mesmo que algumas vezes ainda se diga isto, não escolhem a sua orientação sexual – que não é uma tendência, nem uma decisão, muito menos uma doença a ser curada. Embora seja mais uma vez por causa da própria homossexualidade que muitas meninas e tantos meninos são insultados e agredidos, vítimas inocentes de um ódio que, no nosso país, infelizmente ainda não foi punido.
Fazem-se muitas escolhas no curso da própria existência. E podemos concordar ou não com essas escolhas; algumas podem até ser fortemente contestadas. Nenhuma escolha, porém, diz respeito ao próprio fato de ser mulher ou homem, ou à própria heterossexualidade ou à própria homossexualidade. O gênero e a orientação sexual são elementos da identidade de cada um de nós, aquela identidade com a qual, mais cedo ou mais tarde, todos devemos fazer as contas, mesmo quando há coisas que gostaríamos que fossem diferentes, coisas que talvez não suportamos em nós mesmos, coisas com as quais, porém, não podemos deixar de conviver.
Em uma lei voltada a combater os crimes de ódio contra as pessoas homossexuais e trans, é necessário, então, falar de gênero, sem imaginar que se queria, assim, apagar a realidade dos corpos: esse é o único modo para realmente proteger quem é odiado por causa da sua orientação sexual ou da sua identidade de gênero, ou seja, por “aquilo que é”, redefinindo o feminino e o masculino sem esmagá-los – como infelizmente se fez durante séculos – sob o mero dado biológico.
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Por que é necessário falar de “gênero”. Artigo de Michela Marzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU