23 Junho 2020
Com o avanço do desmatamento na Amazônia em 2020 e o início do período de seca e, consequentemente, das queimadas, a preocupação com o futuro da maior floresta tropical do mundo é inevitável. Muito antes da devastação do bioma atingir os patamares atuais, o climatologista brasileiro Carlos Nobre sugeriu, em 1991, a hipótese da savanização da Amazônia, como consequência do agravamento da destruição da floresta.
O pesquisador foi um dos membros do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) que, em 2007, ganhou um Nobel da Paz e é um dos maiores especialistas do país quando o assunto são mudanças climáticas. Atual presidente do Conselho Diretor do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, Carlos Nobre conversou com o jornalista Rafael Duarte durante o segundo episódio do Podcast Reconecta: “Amazônia em risco e a crise do clima que precisamos resolver”.
Em parceria com o Podcast Reconecta, ((o))eco traz para você parte da entrevista feita com Carlos Nobre, que falou sobre a savanização da Amazônia, as mudanças climáticas e o risco dos desequilíbrios ecológicos para nossa própria saúde, como vemos na pandemia atual. Para escutar na íntegra tudo que rolou no podcast, é só dar play no Spotify no final da matéria, ou acessar o conteúdo por outros agregadores de podcasts.
A entrevista é de Rafael Duarte, publicada por ((o))eco, 22-06-2020.
Você levantou essa hipótese da savanização da Amazônia há três décadas. Você pode explicar melhor esse conceito?
Nós temos levantado essa questão do risco de savanização da Amazônia, que é um risco que agora se torna cada dia mais presente, não só a partir de estudos teóricos como os que eu conduzi e divulgamos e publicamos em 1991, mas nós estamos vendo algumas dessas coisas acontecerem na Amazônia. Se nós olharmos, a Bacia Amazônica tem a maior floresta tropical do mundo, são 6 milhões de quilômetros quadrados de Floresta Amazônica, ao norte dela nós vemos vários tipos de savanas, na Venezuela, na Colômbia e um pedacinho de Roraima; ao sul, nós vemos 2-3 milhões de quilômetros quadrados de savana, o que nós chamamos Cerrado. A pergunta é: por que nós temos uma floresta tropical aí no meio, cercada no norte e no sul de savanas? O bioma floresta tropical evoluiu em dezenas de milhões de anos, numa condição de muita chuva.
A estação seca é muito curta, chove o ano todo e as raízes acessam água o ano todo. Essas condições – temperaturas não muito altas e nunca muito baixas, chuva o ano inteiro, fotossíntese o ano inteiro –, em milhões e milhões de anos, foram importantíssimos para gerar máxima biodiversidade. E porque ela é muito úmida, ela minimizou os riscos de incêndios. Quando havia uma descarga elétrica na floresta, que poderia dar início a um incêndio, as árvores, a serrapilheira – aquele material que fica depositado no chão da floresta – é tudo tão úmido, que aquela chama não propagava, não tinha combustível. Essa foi uma enorme evolução biológica na florestas tropicais e é uma diferença enorme das savanas, um bioma que evoluiu em dezenas de milhões de anos em equilíbrio com uma estação seca muito longa, são seis meses de estação seca, e o clima é muito sazonal, chuva intensa na estação chuvosa, e seca intensa. Alguns lugares do Cerrado às vezes ficam 2, 3 até 4 meses com zero chuva. E incêndio, fogo na vegetação, é um fenômeno em que a vegetação está totalmente ajustada. O Cerrado, a savana tropical, evoluiu com o fogo. São biomas que evoluíram em dezenas de milhões de anos em equilíbrio com o clima.
O que nós estamos vendo na Amazônia? A temperatura hoje na Amazônia é cerca de 1,5 graus mais quente do que 100 anos atrás, antes das mudanças climáticas globais, isso é em toda a Amazônia. O aquecimento global está fazendo as secas se tornarem mais intensas, como a seca de 2005 e 2010, anos que bateram recorde de seca na Bacia toda. E a floresta com temperatura mais alta e com a degradação que nós humanos estamos causando, ela se torna mais vulnerável à incêndios. Não tanto os incêndios gerados por descargas elétricas, que são muito poucos na Amazônia, mas é a ação humana. Quando a gente coloca tudo isso junto, mudanças climáticas devido ao aquecimento global e devido ao desmatamento, e a maior vulnerabilidade da floresta úmida aos incêndios, nós fizemos vários cálculos e chegamos à conclusão de que nós estamos muito próximos desse ponto de não-retorno, em que 50-60, até 70% da Amazônia vai virar uma savana degradada. Não é uma savana com a riquíssima biodiversidade do Cerrado porque essa transição seria muito rápida, em três a cinco décadas, não daria nem tempo da rica biodiversidade do Cerrado, já adaptada para um clima mais seco, se propagar nessa escala de tempo. Talvez as espécies do Cerrado levasse alguns séculos para cobrir esse ambiente.
E por que a nossa preocupação é muito manifesta hoje? Porque não é só um cálculo teórico baseado em modelos matemáticos do sistema terrestre, da Amazônia, da vegetação, das mudanças climáticas, do desmatamento, do fogo, mas é porque nós estamos vendo isso acontecer na Amazônia. Vários estudos observacionais estão mostrando que o sul e sudeste da Amazônia, particularmente no Brasil, mas também na Amazônia boliviana e peruana, a estação seca está ficando muito mais longa. Nos últimos 40 anos, ela já está três semanas mais longa em toda essa região. Em áreas altamente desmatadas, como o norte de Mato Grosso e sul do Pará, já está quatro semanas. A estação chuvosa está demorando um mês para recomeçar! Ela começava no início ou meio de setembro e agora elas estão começando no início e meio de outubro nessas regiões. E as temperaturas estão muito mais quentes durante a estação seca, dois, três graus mais quentes. Nós estamos vendo a capacidade imensa de reciclagem da água da floresta diminuir nessas regiões. São estudos observacionais. E o mais preocupante de todos: uma análise da taxa de mortalidade das árvores em toda a Amazônia mostrou que no sul e leste da Amazônia, as árvores características do clima úmido, são mais de 10 mil espécies de clima úmido, elas mostram uma taxa de mortalidade maior do que aquelas espécies que têm uma adaptabilidade maior à climas mais secos. O que nós estamos vendo são observações do risco da savanização na frente dos nossos olhos.
Pelas suas projeções, você estima que isso possa acontecer em quanto tempo?
Os nossos cálculos indicaram que se o desmatamento, se o aquecimento global continuar, se o uso do fogo na Amazônia, tanto para queimar a área desmatada quanto na agricultura com a renovação de pasto e culturas, se isso tudo continuar, nós estimamos algo em torno de três a cinco décadas para esse processo se completar. Quando que ele se tornará irreversível? Se o desmatamento passar de 20 a 25% da Amazônia. Hoje ele está em 17% de toda a Amazônia. Não é só uma projeção teórica, nós estamos vendo no dia a dia da Amazônia que nós estamos muito próximos disso. E se o desmatamento continuar nas taxas que nós estamos vendo, como em 2019 e 2020, com taxas crescentes de desmatamento na maior parte da Amazônia, principalmente na Amazônia brasileira, nós estamos estimando que esse ponto de não-retorno vai ser cruzado entre 15 e 30 anos.
Por que você acha que há tanta dificuldade em parcela da população de entender como essas questões climáticas afetam a nossa vida?
O que existe é uma quase falência total do regime democrático. Todas as pesquisas de opinião no Brasil nas últimas décadas mostram que 90% da população brasileira é contra o desmatamento da Amazônia. Pesquisa feita pelo Ibope em agosto de 2019, no pico das queimadas, 96% da população brasileira acredita que o presidente deve impedir o desmatamento ilegal na Amazônia. Unanimidade. Na própria Amazônia, 85% da população é contra. Em uma pesquisas internacional que pergunta a preocupação com as mudanças climáticas, o Brasil sempre esteve entre os 5 países do mundo com a população mais preocupada com as mudanças climáticas. E também entre os três países do mundo concordando que nós tínhamos que mudar nosso comportamento, nosso estilo de vida e tínhamos que combater as mudanças climáticas. Em 20 anos de pesquisa, esses números no Brasil são sempre acima de 80%. Até as pesquisas feitas ano passado, com já um governo federal ouve negacionistas climáticos e anticiência. Ainda assim, isso não mudou, o número continua, reduziu só 2-3 pontos percentuais.
Essa é uma percepção da população brasileira muito forte. O problema não é a percepção, mas a falta de eficiência da democracia representativa e também uma questão de que as pessoas precisam se sentir mais empoderadas e saber que a vontade delas têm que conduzir o processo econômico, político e social. Por exemplo, nós não temos no Brasil certificação de origem da carne. 90% dos brasileiros são contra o desmatamento na Amazônia, e o maior vetor de desmatamento na Amazônia é a expansão da pecuária. 70% da área desmatada na Amazônia foi para pecuária inicialmente. Hoje, 63% da área está em pecuária e uma parte considerável já foi abandonada e a floresta está recrescendo. Se as pessoas exigissem certificado de origem, isso seria um vetor de redução de desmatamento gigantesco. Gigantesco porque a produtividade da pecuária é muito baixa na Amazônia: 1 cabeça de gado por hectare, quando podia ser 2 ou 3. A dinâmica de expansão do desmatamento da Amazônia é muito mais ligada à posse da terra ao roubo de terra pública, à pequena valorização instantânea que uma área tem para venda. É uma dinâmica que tem muito pouco a ver com atendimento de mercado de carne ou de mercado de grãos, é de uma dinâmica social ainda muito ligada com o crime. Então o consumidor teria um enorme papel e poder. Vai comprar um material de madeira para construção, qual a origem? Hoje já tem madeira que é certificada. Nós brasileiros temos muito mais poder que nós não utilizamos.
Mas a questão mais importante é a falha da democracia representativa no Brasil. 90% dos brasileiros é contra o desmatamento na Amazônia. Qualquer votação que o Congresso coloca sobre políticas que vão aumentar o desmatamento na Amazônia, 60-65% dos deputados votam a favor. Ou seja, tem uma desconexão completa entre quem nós elegemos, os brasileiros como um todo, e como eles nos representam no Congresso. Estou falando aqui na lógica federal, mas isso é verdade também em âmbito estadual e municipal. Nós precisamos aprender a ser mais rigorosos em fazer com que aqueles que nos representam de fato nos representem. Essa história de que dois, três meses antes das eleições eles prometem e falam o que a gente quer ouvir, e no dia seguinte de tomar posse, começam a entrar numa agenda muito pequena, muito ligada com lobbies e interesses escusos. A grande maioria que tem votado essas leis “anti-Amazônia” votam de acordo com os interesses do lobby da expansão da pecuária, da expansão de todo esse modelo que não está dando certo na Amazônia.
Pesquisas internacionais alertam que se as mudanças climáticas continuarem no atual ritmo, cerca de 30 vírus novos que o ser humano nunca teve contato poderiam vir à tona, a questão climática é também uma emergência médica?
Mudança climática já é praticamente uma emergência médica. A origem do primeiro coronavírus, que criou a epidemia de SARS, e possivelmente desse novo coronavírus também, migrou do morcego, de áreas naturais onde viviam os morcegos na Ásia, na China. Ele migrou do morcego para o ser humano naqueles mercados de carne, porque lá eles comem carne de animais silvestres. Lá eles ainda levam os animais vivos, matam o animal ali na frente do consumidor e vendem. Nós estamos vendo a emergência muito frequente de epidemias que vêm de microrganismos do ambiente natural, que convivem com os ecossistemas, com as plantas e os animais. Mas quando eles são retirados de uma forma violenta daquele ambiente que está em equilíbrio, podem ser vírus, bactérias ou protozoários como a malária e a doença de chagas, eles acabam saindo daquele equilíbrio, encontram o corpo humano, que não está em equilíbrio com esses microrganismos e eles viram doença.
Esse desequilíbrio ecológico, que tem muito a ver com a ação humana, faz com que vírus, bactérias, protozoários cheguem próximo aos seres humanos. Isso já existe há milhares de anos, mas agora com a era moderna da comunicação entre humanos com muita rapidez, uma pandemia se projeta em semanas.
Há mais de 200 coronavírus já mapeados da biodiversidade da Amazônia e inúmeros morcegos amazônicos carregam esses coronavírus. Quando a gente olha a perturbação que nós estamos fazendo na Amazônia, o único elemento que não tem é, talvez, um enorme consumo de carne desses animais, porque as populações amazônicas são pequenas. Há caça e consumo desses animais, há mercados ilegais, porque as leis brasileiras e dos países amazônicas proíbem de fato a comercialização de animais selvagens. A caça de animais selvagens só é permitida por populações indígenas [e tradicionais], que mantém um enorme equilíbrio nos seus territórios. Quer dizer, esse veículo que vem através do consumo da carne dos animais selvagens é em menor escala na Amazônia, mas todo o resto ocorre: garimpo ilegal, roubo de madeira, fogo. Todos esses humanos chegando muito próximos desse ambiente perturbado, tudo isso cria uma enorme oportunidade para esses micro-organismos migrarem dos seus hospedeiros da biodiversidade amazônica para humanos. E a Amazônia tem o maior número de micro-organismos do mundo. É pura “sorte” que nós não tivemos ainda uma grande epidemia que iniciou na Amazônia. Na Amazônia nós temos leishmaniose, que é originária da Amazônia, mas a maior parte das zoonoses vieram de fora.
É pura “sorte” que o lugar com maior número de microrganismos do mundo e que está sendo violentamente perturbado nas últimas décadas, não ter gerado uma pandemia, mas nós não podemos contar com a sorte. Se nós não mudarmos a maneira de enxergar a Amazônia, se nós não pararmos com o desmatamento, com as queimadas, com a invasão, com o roubo de madeira, com o garimpo ilegal, nós vamos criar uma grande oportunidade para esses microrganismos passarem para nós como zoonoses e aí sim, nós vamos ter muito mais pandemias.
Em que pé a gente está hoje com o Acordo de Paris, estamos no trilho certo?
Se nós fossemos respeitar o Acordo de Paris na sua pauta mais cuidadosa e mais desafiadora, que é 1,5 grau máximo – nós já estamos 1,1 graus -, nós temos que zerar as emissões até 2050, emissões líquidas, de todos os gases de efeito estufa e na segunda metade deste século, retirar gás carbônico da atmosfera. Retirar gás carbônico é um papel excelente para as florestas. Nós podemos imaginar uma agricultura regenerativa muito avançada do século XXI, que diminui demais a demanda por área. Nós podemos manter segurança alimentar de 8, 9, 10 bilhões de pessoas com metade da área agrícola existente com uma agricultura regenerativa avançada. Portanto, nós podemos liberar uma enorme área, 5, 6, 8 milhões de quilômetros quadrados no globo todo, uma área do tamanho do Brasil, se nós fizéssemos isso e deixássemos a floresta crescendo, principalmente na segunda metade deste século. Assim nós vamos retirando gás carbônico da atmosfera e nós garantiríamos a manutenção de 1 grau e meio. Nós estamos nessa trajetória? Não. Essa trajetória exigiria que nós reduzíssemos em 6 a 8% por ano as emissões de gases de efeito estufa.
A Covid-19 traz uma luz, no sentido de que 2020, pelas projeções científicas publicadas nos últimos dias em função de quando a Covid vai passar no mundo, quando que a economia vai retomar e quando que as emissões vão voltar, indicam que nós ficaremos nessa faixa de 6 a 8%. Então 2020 seria o exemplo, mas em 2021, nós precisamos não voltar a subir, precisamos cair mais 6 a 8% e assim até 2050, quando, se continuássemos nessa trajetória, nós teríamos atingido zero de emissões líquidas. E com um papel importante também de restauração florestal para retirar gás carbônico da atmosfera. Talvez o único aspecto de nos iluminar dessa crise, em função da tragédia que é em termos humanos e de mortes, é mostrar onde nós deveríamos estar. O ano de 2020, em todas as projeções do Acordo de Paris, era o ano em que nós já deveríamos estar reduzindo. O máximo de emissões não poderia passar de 2020. Se não fosse a Covid, 2020 teria emissões maiores que 2019. A Covid nos chama atenção. E a saída da crise teria que ser uma trajetória verde, como os países europeus estão discutindo.
Um relatório, publicado pelo Observatório do Clima em maio, fez uma análise dos primeiros quatro meses deste ano das emissões brasileiras, e, infelizmente, nós estamos vendo uma tendência das emissões aumentarem. Tanto na agropecuária, até por uma razão difícil de prever, que a diminuição de consumo e das exportações de carne, fez com que a pecuária mantivesse o gado no pasto e o gado emite metano, que é a mais importante fonte de emissão da agropecuária brasileira e fez as emissões de metano aumentarem. Mas o mais preocupante é que as emissões do desmatamento da Amazônia estão crescendo. Estavam crescendo ano passado, continuaram crescendo esse ano. De janeiro a abril estavam 55% acima do período anterior. Mesmo com a redução de queima de combustíveis fósseis com o confinamento, menos uso de veículos, menos consumo de energia elétrica, que diminuíram sem dúvida as emissões e o Brasil nesse sentido estava parecido com os outros países do mundo. Mas as projeções do Observatório do Clima são terríveis de que, em 2020, nós teremos uma emissão maior do que 2019, totalmente na contramão do que vai acontecer globalmente.
Quer ouvir o resto da entrevista que foi ao ar no Podcast Reconecta com o Carlos Nobre?
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Destruição da Amazônia pode transformá-la em deserto e desencadear pandemias. Entrevista com Carlos Nobre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU