18 Junho 2020
"É urgente que a mídia atente para as diferenças e contradições existentes no mundo evangélico para que não coloque toda essa grei num mesmo balaio", escreve Edelberto Behs, jornalista, para a equipe de redação do jornal Brasil de Fato, sobre a entrevista do pastor batista Brian Kibuuka concedida ao jornal.
Li com bastante atenção a entrevista do pastor batista e professor de História Antiga na Universidade Estadual de Feira de Santana, Brian Kibuuka, que faz uma análise interessante da “etiqueta evangélica”, mas apresenta, a meu ver, lacunas históricas e de compreensão do que ele denomina de povo evangélico e que, em certo momento da entrevista, se reporta aos protestantes.
Assim como exposto, fica a impressão de que evangélicos são um balaio de gatos que chegaram ao Brasil no “século 19 pelos derrotados da Guerra de Secessão, no sul dos Estados Unidos. Eles aceitam a escravidão, entendem que os Estados Unidos têm um ‘destino manifesto’. A teologia que eles trazem não privilegia questões humanitárias, não prioriza a eliminação das desigualdades, das injustiças sociais”.
É admirável que um professor de História fixe o início do movimento evangélico no Brasil no século 19. Nada mais irreal. Dois anos depois da chegada de franceses comandados pelo almirante Nicolas Durand de Villegaignon, em 1555, que fundou em terras fluminenses a França Antártica, vieram crentes reformados, sob a liderança dos pastores Pierre Richier e Guillaume Chartier.
Em “O Protestantismo no Brasil"[1], o professor, teólogo, historiador, pastor presbiteriano e escritor Alderi Souza de Matos traz um resumo histórico sucinto sobre o desenvolvimento do protestantismo, ou evangélicos, no país. Ele destaca que em 10 de março de 1557, os reformados celebraram o primeiro culto evangélico do Brasil, e talvez das Américas!
Nove anos depois da expulsão dos franceses, parte do Nordeste brasileiro conheceu, a partir de 1624, a administração holandesa, destacando-se a governança de João Maurício de Nassau-Siegen, e a atuação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. E não é que reformados também vieram com os holandeses!
A historiadora Jaquelini de Souza, autora do livro “A Primeira Igreja Protestante do Brasil: Igreja Reformada Potiguara”, registra a criação dessa comunidade por volta de 1630, na atual região da Paraíba, em meio à ocupação holandesa.
O primeiro capelão anglicano, Robert C. Crane, chegou ao Rio de Janeiro em 1816 e seis anos depois inaugurou a primeira capela episcopal no país.
O pastor Brian não menciona uma linha sequer sobre as igrejas evangélicas históricas. Em 1824, um grupo de 324 imigrantes alemães, acompanhado do pastor Friedrich Oswald Sauerbronn, deu continuidade à colônia aberta por católicos em Nova Friburgo. Outra leva de imigrantes alemães, que professavam a fé luterana, estabeleceram-se em São Leopoldo e arredores, no Rio Grande do Sul, no mesmo ano.
Em 1827, era fundada a Comunidade Protestante Alemã-Francesa do Rio de Janeiro, que congregava luteranos e calvinistas. Depois vieram ainda denominações que nasceram de impulsos missionários, como metodistas e outros presbiterianos, para ficar no âmbito das igrejas históricas, que também são evangélicas, ou seja, têm origem, com exceção dos anglicanos, na Reforma Protestante de 1517.
Agora, sim, aparecem o pentecostalismo e o neopentecostalismo que, infere-se, são, na visão do pastor Brian, os herdeiros do evangelismo brasileiro. Destacam-se aí os fundadores da Assembleia de Deus, os suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren, que aportaram em Belém do Pará, em novembro de 1910.
Fiquemos por aí nas questões históricas. O pastor Brian afirma, na entrevista concedida a Daniel Giovanaz, que “os líderes evangélicos estão desesperados, mas não podem romper com o bolsonarismo”. Quais líderes? Gostaria que o pastor apontasse lideranças de igrejas históricas EVANGÉLICAS que não podem romper com o bolsonarismo porque precisam de empréstimos para compensar a queda de arrecadações.
Aliás, algumas dessa lideranças nunca estiveram com o bolsonarismo. Se o pastor acompanhar declarações do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) vai se dar conta que nem todos os evangélicos oram pelo governo que segue uma necropolitica! Assim, no dia da comemoração de Corpus Christi, igrejas brasileiras lançaram, por exemplo, a campanha Somente o silêncio pode ecoar nossa dor[2].
Então, colocar os evangélicos, genericamente, no segmento bolsonarista é um erro inconcebível para um professor de História. Se o pastor Brian se referisse a uma parte considerável dos evangélicos brasileiros, que estão vinculados, em boa parte, ao pentecostalismo e ao neopentecostalismo, e que são ou foram defensores do governo federal, até seria aceitável.
Metodistas, presbiterianos, luteranos, calvinistas em boa medida - de novo, destaque ao EM BOA MEDIDA, para evitar a compreensão de que todos estavam de acordo com as manifestações de apoio à lei da anistia, à reforma agrária, contra a ditadura cívico-militar, a uma justa distribuição da renda, por exemplo – tiveram posições proféticas, críticas, bastante acentuadas no decorrer da história recente do Brasil.
Assim, concluir que boa parte dos evangélicos vai abandonar o bolsonarismo para se associar ao lavajatismo é, de novo, analisar o comportamento relativo a UMA PARTE dessa família denominacional, que até pode ser maioria, mas não representa, de forma alguma, uma unicidade evangélica, porque há uma boa parcela de evangélicos que jamais seguiram Bolsonaro e discordam frontalmente do modus operandi do ex-ministro Sérgio Moro, apontado pelo pastor como paladino da moralidade, quando da condução da Lava-Jato. O mesmo vale para o evangélico Dallagnol! A atuação tanto de Moro como de Dallagnol na Lava Jato é bastante contestável! (Veja os diálogos entre os dois “paladinos” revelados pelo The Intercept Brasil!).
A mídia colabora com essa visão “generalista” dos evangélicos, sem se ater às diferentes teologias que essas igrejas propagam, como a Teologia da Prosperidade, em completa contradição com a Teologia da Cruz, a teologia da negociata do crente com Deus, que não tem afinidade alguma com a Teologia da Graça.
Então, é urgente que a mídia atente para as diferenças e contradições existentes no mundo evangélico para que não coloque toda essa grei num mesmo balaio. Também caberia à mídia, assim como o Brasil de Fato, dar espaço para vozes polifônicas, não apenas no campo político, mas também na área religiosa.
Notas:
[1] Disponível aqui. O Protestantismo no Brasil. ↑
[2] Disponível aqui. “Only silence can echo our pain” – Brazilian voices hush in solidarity with COVID-19 victims. ↑
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“Colocar os evangélicos, genericamente, no segmento bolsonarista é um erro inconcebível para um professor de História”. Artigo de Edelberto Behs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU