16 Junho 2020
Investigação da Repórter Brasil mostra como bois de fazendas desmatadas no Mato Grosso escapam ao controle de frigoríficos como a JBS e revela como ainda não há garantias de que a carne de qualquer frigorífico seja 100% livre de desmatamento.
A reportagem é de André Barros e Carlos Juliano Barros, publicada por Repórter Brasil, 12-06-2020.
Fazendas regularizadas que recebem bois criados em áreas proibidas e mascaram a origem ilegal do gado. Registros de propriedades que ludibriam o monitoramento de frigoríficos. Imóveis rurais arrendados a terceiros que escapam ao controle de abatedouros.
Essas são situações comuns no mercado de gado na Amazônia. Na prática, elas contribuem para burlar restrições em vigor há uma década que proíbem a comercialização de animais alimentados em pastagens repletas de irregularidades socioambientais.
Um dos gargalos do rastreamento do gado na Amazônia é a falta de transparência das Guias de Trânsito Animal (GTAs), documentos que informam a origem e o destino de qualquer carregamento de bois (Foto: João Laet/The Guardian/Repórter Brasil)
Desde 2009, um acordo firmado entre o Ministério Público Federal (MPF) com mais de uma centena de frigoríficos – como JBS, Marfrig e Frigol – veda o abate de bois criados em terras indígenas, reservas ambientais e fazendas abertas sem licença ambiental ou flagradas com trabalho escravo.
O chamado “TAC da Carne” (TAC quer dizer Termo de Ajustamento de Conduta) é considerado uma das principais ferramentas de contenção do desmatamento da Amazônia. Isso porque a formação de pastagens é reconhecidamente o principal vetor de expansão da fronteira agrícola e derrubada da mata nativa.
“O TAC teve uma efetividade muito forte no começo”, analisa Daniel Avelino, procurador do MPF no Pará e um dos idealizadores da iniciativa. Logo no primeiro ano de vigência, a redução do desmatamento na Amazônia bateu um recorde e ficou abaixo de 10 mil quilômetros quadrados. Três anos depois, em 2012, nova marca histórica: menos de 5 mil.
No entanto, a devastação na maior floresta tropical do planeta voltou a acelerar a partir de 2013 e quase rompeu novamente a preocupante barreira simbólica dos 10 mil quilômetros quadrados no ano passado. “É um número absurdo. Porém, considerando o desmonte da política ambiental e a falta de fiscalização, só não chegou a 15 ou 20 mil por causa do TAC”, afirma Avelino.
“Após 10 anos de TAC ainda não é possível dizer que algum frigorífico esteja, de fato, livre de desmatamento”, afirma Ritaumaria Pereira, pesquisadora do Imazon
Ao longo dos onze anos do compromisso firmado com o MPF, os frigoríficos — principalmente os de maior porte — desenvolveram sistemas próprios de monitoramento para cumprir as cláusulas do acordo. Apesar de reconhecer avanços na gestão de fornecedores por parte das empresas, a gerente de engajamento corporativo da WWF Brasil, Daniela Teston, ressalva que “continua havendo problemas técnicos, principalmente no que se refere à questão dos fornecedores indiretos”. Ao repassar gado a produtores regularizados, pecuaristas envolvidos em infrações socioambientais saem do radar das empresas de abate de bovinos. É a chamada “lavagem” ou “esquentamento” de bois.
De acordo com os termos originais do TAC da Carne, os frigoríficos deveriam ter criado mecanismos para rastrear fornecedores indiretos desde 2011. “Mas elas não fizeram. Essa vai ser a principal agenda para 2021”, afirma Lisandro Souza, coordenador do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola).
Em conjunto com o MPF e com as indústrias de carne, a organização ambientalista vem trabalhando em um protocolo para uniformizar a aplicação das regras previstas no TAC. “Existem muitas divergências entre os sistemas de monitoramento dos frigoríficos”, explica Souza. “Há casos em que uma empresa compra de um fornecedor que a outra bloqueia — e vice-versa”, acrescenta.
Uma primeira versão do protocolo passa a valer a partir de julho. A principal novidade é a estipulação de um teto de produtividade para tentar coibir fraudes: por ano, cada propriedade só poderá vender três cabeças de gado por hectare. Pecuaristas que superam esse índice precisarão apresentar um relatório para comprovar a capacidade de fornecer mais animais.
A Repórter Brasil investigou dois casos que exemplificam como criadores de boi na Amazônia conseguem burlar as restrições impostas pelo TAC da Carne.
O primeiro deles é o da Fazenda Leão, no município de Jauru (MT). O monitoramento por satélites do sistema Prodes, realizado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), mostra que em 2016 foram derrubados 36,5 hectares de vegetação na propriedade. No sistema de consulta da Sema-MT (Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso), não aparece nenhuma licença para o desmatamento.
Monitoramento de fornecedores indiretos, feito por pecuaristas, é frágil, o que termina colaborando para desmatamento da Amazônia (Foto: Marcio Isensee e Sá/Repórter Brasil)
Em fevereiro de 2019, a Fazenda Leão encaminhou animais para o abatedouro da JBS, maior companhia de proteína animal do mundo, em Araputanga (MT). De acordo com os compromissos firmados pela multinacional com o intuito de combater a devastação da Amazônia, a compra dos bois não poderia ter sido efetivada.
Para monitorar as fazendas fornecedoras de gado, os frigoríficos utilizam os dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) — sistema do governo federal em que a declaração das coordenadas geográficas do imóvel rural é realizada pelo próprio dono. No caso da Fazenda Leão, o registro no CAR foi desmembrado em duas áreas diferentes, apesar de contíguas. O desmatamento irregular aconteceu na maior das duas porções. Dessa maneira, a outra continuaria apta a comercializar o gado com as empresas signatárias do TAC da Carne.
O registro fracionado de lotes no CAR contraria as regras estabelecidas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) para preenchimento do cadastro. Segundo uma instrução normativa que regulamenta o assunto, “os proprietários ou possuidores de imóveis rurais, que dispõem de mais de uma propriedade ou posse em área contínua, deverão efetuar uma única inscrição para esses imóveis”.
“Existem fraudes no CAR de todo tipo e um dos tipos é esse [o fracionamento dos registros]”, explica o procurador Daniel Avelino, sem analisar especificamente o caso da Fazenda Leão. “O CAR é declaratório, não tem verificação. Inicialmente, era responsabilidade do governo federal. Depois, passou para os estados, que também não fizeram. Como não tem validação, fica muito fácil praticar fraude”, completa.
A Fazenda Leão está registrada em nome de Vanilda Ferreira Dutra. Ela foi localizada pela reportagem e questionada sobre o desmatamento na propriedade rural, mas não respondeu aos pedidos de esclarecimento.
O segundo caso investigado pela reportagem também diz respeito a três lotes de terra contíguos no município de Nova Ubiratã (MT). Apesar de na prática fazerem parte da Fazenda Bianchin, cada uma das áreas tem um registro próprio no CAR.
Ao todo, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) já aplicou R$ 29 milhões em multas por infrações ambientais diversas na Fazenda Bianchin – de desmatamento sem autorização a descumprimento de embargos ambientais. Entre 2012 e 2017, cerca de 1.200 hectares de floresta amazônica foram suprimidos no local segundo o monitoramento por satélites do sistema Prodes. Nas áreas embargadas, a criação de bois não é permitida para que a vegetação nativa consiga se recompor.
Em 2017, a fazenda foi arrendada por um produtor rural de grande porte, Gustavo Vigano Piccoli, ex-presidente da Associação Mato-grossense dos Produtores de Algodão (Ampa) e do Instituto Algodão Social (IAS). Rebatizada com nome Agropecuária GPC, a propriedade passou a fornecer animais à planta frigorífica da JBS no município de Diamantino (MT). O arrendamento é descrito em um relatório técnico sobre o manejo do gado na fazenda, publicado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Bois da área arrendada também são encaminhados a outra propriedade de Piccoli em Sorriso (MT), a Fazenda da Pedra. O imóvel rural, por sua vez, fornece a duas unidades da JBS no Mato Grosso. A chamada “triangulação” — transferência de gado entre fazendas de um mesmo dono — é outra prática que ainda passa despercebida pelos sistemas de monitoramento dos frigoríficos.
Gustavo Vigano Piccoli foi procurado diversas vezes pela reportagem. Seus assessores afirmaram que ele estava em viagem e que responderia aos questionamentos tão logo retornasse. Mas nenhuma resposta foi encaminhada à Repórter Brasil até o fechamento desta matéria.
Contactada, a JBS afirmou por meio de nota que “as operações de compras de gado e todo o sistema de monitoramento de fornecedores da Companhia são auditados anualmente, de forma independente”. Ainda segundo o texto, os resultados das auditorias — divulgados no site da empresa — “revelam que mais de 99,9% das compras de gado da JBS, de fazendas localizadas na região amazônica, cumprem com os critérios socioambientais da empresa”.
Um dos principais gargalos do rastreamento do gado na Amazônia é a falta de transparência das Guias de Trânsito Animal (GTAs). Emitidos por órgãos estaduais de defesa agropecuária, esses documentos informam basicamente a origem e o destino de qualquer carregamento de bois — entre propriedades rurais ou entre fazendas e frigoríficos.
Pecuaristas burlam restrições em vigor há 10 anos que proíbem a comercialização de animais alimentados em pastagens com irregularidades ambientais (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
“Falta fiscalização por parte das agências de defesa agropecuária, que deixam GTAs serem emitidas de forma aleatória, possibilitando que um pedaço mínimo de terra legal tenha quantidade enorme de animais registrados”, explica Ritaumaria Pereira, pesquisadora da organização ambientalista Imazon. “Um animal passa por duas ou três fazendas durante seu ciclo de vida e apenas a fornecedora direta (a última fazenda) pode ser monitorada pelas empresas que assinaram o TAC”, complementa.
Ela também critica a dificuldade para acessar as informações contidas nas GTAs. “Esses dados não são disponibilizados de ‘maneira didática’. As agências que disponibilizam essa informação fazem isso de forma agregada, através de um sistema de consulta que impossibilita acompanhar as transações em tempo real”, afirma a pesquisadora..
O atual sistema de GTAs também é criticado por algumas empresas de abate de animais por dificultar o monitoramento de fornecedores. A JBS, por exemplo, afirma que vem discutindo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) sobre a reformulação do procedimento de emissão desses documentos. A empresa propõe que um novo programa seja capaz de cruzar automaticamente diversos dados sobre as propriedades que solicitam as GTAs.
“A JBS passaria a solicitar que seus fornecedores diretos (terminação/engorda do gado) comprem bezerros e garrotes somente de fazendas que não estejam envolvidas em desmatamento ilegal, ou seja, apenas de propriedades que venderam seus animais com “GTA-Verde” e não figuram na lista pública de áreas embargadas pelo Ibama”, afirma a empresa em nota. A íntegra pode ser lida aqui.
“Após 10 anos de TAC ainda não é possível dizer que algum frigorífico esteja, de fato, livre de desmatamento”, afirma Pereira, do Imazon. E ela cita outro complicador: nem todas as companhias de proteína animal em funcionamento na região são signatárias do TAC da Carne. Um estudo do Imazon publicado em 2017 estima que 70% de todos os abates são feitos por empresas que assinaram o acordo com o MPF. Há, portanto, um número considerável de animais que escapam a qualquer controle. “Isso gera uma situação de concorrência desleal com os frigoríficos que assinaram o TAC da Carne.”
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Amazônia: como criadores de gado driblam acordo com MPF e incentivam desmatamento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU