02 Junho 2020
“Precisamos passar para um novo tipo de sistema econômico eficiente, sustentável do ponto de vista político e ecológico: uma economia política moral e democrática desenhada para o bem-estar de todas as pessoas. As corporações continuam tendo o controle com o único objetivo de gerar lucros a curto prazo. É hora de começar juntos a imaginar o desenho da empresa da próxima geração”, escreve Marjorie Kelly, pesquisadora superior e vice-presidente executiva de The Democracy Collaborative, em artigo publicado por Ctxt, 27-05-2020. A tradução é do Cepat.
O Instituto Federal de Tecnologia de Zurique descobriu, em 2011, que apenas 1.318 corporações de grande porte controlam 80% dos lucros empresariais. Estas corporações são, por sua vez, propriedade de uns poucos: os 10% mais ricos dos Estados Unidos possuem 84% das ações de empresas com ações na Bolsa. O mesmo estudo mostrou que 147 empresas controlam 40% da riqueza total da rede.
Fica claro que pretender controlar o enorme poder das corporações aprovando regulações, mas mantendo intacto seu objetivo de maximização de lucros, não funcionou. O que deve mudar é o desenho estrutural e a propriedade da própria corporação. Enquanto a estrutura corporativa permanecer intacta, não há suficiente retórica ou regulação externa que possa distanciar as empresas de seu objetivo atual: criar mais riqueza para os ricos, na maior velocidade possível.
No delicado contexto atual, no qual pairam a emergência climática e a desigualdade, é hora de tornar obsoleta a corporação maximizadora de lucros e controlada pelos acionistas. Precisamos criar um conceito completamente novo de companhia, uma empresa justa, desenhada de dentro para fora com um novo mandato: servir ao bem-estar geral.
Para que nossa civilização possa viver de maneira segura, com bem-estar dentro dos limites planetários, serão necessários processos mais democráticos de tomada de decisões econômicas. No epicentro desta mudança aparecem novos tipos de propriedade empresarial guiados por critérios de justiça. Uma empresa é justa se tem uma propriedade ampla e evolui para além da norma de maximizar o lucro para uns poucos, rumo à incorporação de uma nova norma de serviço para a maioria.
O propósito da economia é satisfazer as necessidades humanas. Quando as empresas existem somente para gerar lucros para o capital, a sociedade está em perigo. Hoje, estamos em uma economia do 1%, pelo 1%, para o 1%. Uma economia de, por e para as pessoas requer um novo arquétipo de empresa. Como destaquei em “Owning Our Future”, o desenho empresarial se define por cinco elementos centrais: propósito, propriedade, governança interna, capital e redes. Externamente, acima e envolta disso está a relação da empresa com o governo. Internamente, o desenho empresarial potencializa a liderança ética ou a liderança de extração com a intenção de acumular riqueza privada.
Diferente da monocultura da empresa controlada pelo capital, é possível vislumbrar um novo modelo com uma rica diversidade de desenhos que incluem cooperativas, empresas de propriedade dos empregados, bancos comunitários, cooperativas de crédito, empresas sociais, bancos estatais, empresas públicas e comunidades, entre outros. Nelas, a propriedade e o controle não estão nas mãos da economia de cassino, mas de pessoas com um interesse natural nas comunidades e ecossistemas saudáveis.
Os diversos modelos atuais mostram que a arquitetura de propriedade define o propósito do negócio e determina em grande medida se as empresas operam tendo em conta o bem comum. Tais empresas são precursoras de um modelo emergente que pode se tornar nosso guia até que possamos enfrentar o grande desafio de redesenhar as corporações. A geração emergente de empresas ainda requer capital, mas como seu sócio, não como seu dono. Redes éticas como as redes mundiais de cooperativas apoiam estas empresas. A maioria delas gera lucros, mas não os maximizam. Buscam equilibrar o lucro com a missão.
As empresas sociais também incorporam um claro propósito público e utilizam métodos empresariais para abordar problemas sociais, por exemplo, as criadas para contratar os desempregados de longa duração. Tech Dump em Minneapolis, por exemplo, treina ex-reclusos na reciclagem de produtos eletrônicos.
Cabe destacar o contraste com as empresas controladas pelo capital, onde apenas os acionistas – proprietários de capital – são considerados membros. Os empregados das empresas tradicionais não são membros. Estão marginalizados e desapropriados, não têm o direito de reivindicar os lucros que contribuem para criar e carecem de voz no comando, ganhando poder apenas através da filiação sindical. Mas em uma empresa de propriedade dos empregados, como JLP, os trabalhadores não estão conceitualmente fora da empresa. Eles são a firma.
O tipo de empresa alternativa mais antiga e extensa é o setor cooperativo – negócios que são propriedade das pessoas às quais servem –, que inclui, entre outras, cooperativas de crédito propriedade dos depositantes, cooperativas agrícolas e cooperativas de consumidores.
Também é vital para nosso futuro quem detém o sistema bancário, um tipo de serviço que proporciona um bem público e, portanto, apropriado para que seja de titularidade pública. A União Europeia (UE) possui mais de 200 bancos públicos e semipúblicos, com mais de 80 agencias de financiamento, que englobam 20% de todos os ativos bancários. As 413 caixas econômicas municipais de propriedade pública da Alemanha, Sparkassen, possuem mais de 1,1 trilhão de euros em ativos. Durante a crise financeira mundial, estes bancos se mantiveram a serviço do público, livres das demandas dos especuladores que levaram outras entidades financeiras a más práticas que quase afundaram a economia mundial.
Nossa sociedade está em um ponto de ruptura, mas também em um momento de profunda inovação e redesenho. Estes modelos de propriedade alternativa têm muito a nos ensinar sobre o que virá depois: como é possível aplicar suas lições de desenho ao grande desafio da corporação moderna.
Em um momento em que o planeta está à beira do abismo, milhões de pessoas vivem na ansiedade econômica e a extrema direita cresce em todas as partes, é evidente que as velhas formas de regular o capitalismo já não são adequadas para enfrentar os problemas atuais. A economia contemporânea, centrada no capital, está começando a se tornar insustentável inclusiva para si mesma. É um sistema programado para sua própria implosão. A comunidade financeira fala da “bolha de tudo”, o aumento insustentável no valor das ações, os bens raízes e outros ativos.
Dez anos após a crise financeira mundial, o que mudou é que os jovens estão se mobilizando de uma forma que não se via desde os anos 1960, e as ideias políticas radicais estão sobre a mesa como nunca antes. É possível que estejamos nos aproximando de um ponto de inflexão em que se vislumbra uma mudança histórica importante.
Se um sistema perde legitimidade, não importa quão forte pareça, finalmente cairá. O sistema capitalista já perdeu grande parte de sua legitimidade e este processo pode se aprofundar na medida em que mais pessoas enxerguem como e por qual motivo o sistema está falhando com a grande maioria.
O que muitas vezes mantém um sistema político-econômico agonizante em pé é o fracasso da imaginação. Mas os principais pensadores e ativistas de hoje estão perfurando a aparente invencibilidade do capitalismo com propostas e enfoques audazes.
Por exemplo, nos Estados Unidos, meu colega em The Democracy Collaborative, Thomas Hanna, propôs que na próxima crise financeira, os bancos que quebrarem deveriam passar a ser de titularidade pública. Seria uma forma de desfinanceirizar nossa economia, fragmentar grandes concentrações de capital e proporcionar os fundos necessários para prioridades como a energia verde.
Algo semelhante pode ser aplicado ao setor energético. Tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos, está ganhando impulso o compromisso com um sistema de energia renovável justo e controlado pela comunidade. Nos últimos anos, houve um aumento das campanhas por aquisição de serviços públicos, incluída a campanha Switched On London e a campanha #NationalizeGrid contra National Grid, uma companhia britânica com fins lucrativos que opera tanto na Nova Inglaterra como no Reino Unido.
Outro setor onde são necessárias empresas de nova geração é o da saúde, particularmente o setor farmacêutico, no qual o aumento de preços, a escassez recorrente, os problemas de segurança posteriores à comercialização e o aumento da financeirização são resultados naturais das empresas projetadas para maximizar lucros. Minha colega Dana Brown propôs desenvolver um setor farmacêutico público para os Estados Unidos, como um enfoque sistêmico que substitua a necessidade de reformas pouco sistemáticas que, na sequência, poderiam ser revertidas.
Além das estratégias setoriais, é possível promover empresas de nova geração através da propriedade dos empregados, uma opção já madura para ser aplicada em grande escala. Na Itália, por exemplo, os trabalhadores cujas empresas fecham têm o direito prioritário de se unir com seus companheiros e adquirir a empresa, em conformidade com a Lei Marcora. O Partido Trabalhista propôs um direito semelhante, no Reino Unido, e Bernie Sanders fez o mesmo nos Estados Unidos.
Também serão necessários novos modelos no setor da tecnologia. Existe um movimento a favor das cooperativas de plataformas de propriedade dos trabalhadores, como alternativas às empresas de alta tecnologia propriedade de bilionários. Um executivo da Microsoft sugeriu um modelo de “capital de usuário final”, no qual os usuários obtêm capital em empresas como Facebook, já que os dados dos usuários agregam valor. Uma startup chamada Driver’s Seat ajuda os motoristas de viagens em automóvel a agregar e capturar o valor de seus dados, em vez de que sejam extraídos por empresas como a Uber. Nestes variados enfoques, podemos ver como seria possível promover um novo paradigma da empresa justa.
Reconceitualizar a empresa, redesenhá-la, substituir a corporação do modo como a conhecemos é uma tarefa tão grande como a eliminação das emissões de carbono, ambas são igualmente necessárias. A diferença é que embora o desafio climático esteja muito mais avançado conceitualmente e amplamente aceito como essencial, a tarefa de redesenhar a corporação somente é reconhecida e continua sendo muito pouco teorizada. Em tudo isto, os movimentos sociais e ambientais têm um importante papel a desempenhar. Também são vitais os teóricos e os estudiosos do direito, necessários para avançar nas teorias acadêmicas da empresa justa.
O bem comum deve fazer parte do DNA das instituições e suas práticas econômicas. Se conseguirmos tal transformação, significará que o bem-estar econômico da comunidade e dos trabalhadores já não dependerá dos caprichos legislativos ou presidenciais em um determinado momento, mas estará respaldado por uma mudança duradoura na arquitetura subjacente do poder econômico: o desenho da propriedade e o controle.
Precisamos passar para um novo tipo de sistema econômico eficiente, sustentável do ponto de vista político e ecológico: uma economia política moral e democrática desenhada para o bem-estar de todas as pessoas. As corporações continuam tendo o controle com o único objetivo de gerar lucros a curto prazo. É hora de começar juntos a imaginar o desenho da empresa da próxima geração.
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O fim da corporação como paradigma capitalista. Artigo de Marjorie Kelly - Instituto Humanitas Unisinos - IHU