27 Março 2020
"É a transparência, quase narrativa, dos vários ensaios que conquista o leitor que procede como um peregrino em um terreno onde os mistérios florescem, mas que também é salpicado de obstáculos, porque Francisco continua sendo uma figura provocativa, mesmo em formas ingênuas e esquisitas".
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 22-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A comparação é muito arriscada, mas rende a ideia. Conta-se que quando Thomas Mann estava elaborando um romance, ele reunia uma coleção de livros sobre o assunto em uma sala de sua residência: por exemplo, para a saga sobre o bíblico José e seus irmãos, que o envolveu por uma década, ele montou uma verdadeira biblioteca de egiptologia, hebraísmo e exegese, destinada a ser retirada no final do empreendimento. Em uma escala muito mais modesta, é isso que experimentei nos últimos dias, transferindo para outro lugar os livros sobre São Francisco que eu havia recebido ou comprado no ano passado. A justificativa para essa bulimia editorial estava ligada aos oito séculos passados desde junho de 1219, quando o santo embarcou para Damietta, sitiada pelos cruzados, e se encontrou - segundo a tradição – com o sultão do Egito Melek el-Kamel. Essa cena, assim como a imaginou Giotto na Basílica Superior do Convento de Assis, em uma cópia em afresco, estará no centro do pavilhão da Santa Sé na Expo Internacional de Dubai, a partir de outubro próximo. Percorrendo a sequência de obras a que acima me referia - pontuada precisamente pela sugestiva livre recriação daquele diálogo misterioso entre o trovador de Deus e o governante sarraceno, assim como Ernesto Ferrero a concebeu sob o título lapidário Francisco e o sultão - percebo que são vários os textos que poderiam intrigar os leitores, textos livres daquela incessante literatura hagiográfica patinada de retórica. Penso, por exemplo, na original coletânea de 23 ensaios editada por Marina Benedetti e Tomaso Subini, orientada a reconstruir a genealogia cultural descendente de Francisco.
Certamente, existem vários anéis da teologia, filosofia, iconografia, devoção, mas a psiquiatria também se apresenta por causa dos estigmas e visões do santo e até mesmo da numismática. Existe a música que dos louvores chega até ao Dolce é sentire de Riz Ortolani, cantada por Claudio Baglioni, mas também pela nacionalização "fascista" do "mais santo dos santos". Há o teatro que vê em ação até Grotowski e Dario Fo e a longa série de filmes, desde o Poverello di Assisi, de Enrico Guazzoni, de 1911, passando pelas reiteradas propostas de Cavani, até o açucarado Irmão Sola Imã Lua de Zeffirelli, e o Francisco trovador de Deus de Rossellini e a um inesperado e quase desconhecido frei Francisco de Antonioni. Mas, acima de tudo, há uma literatura apaixonada pelo santo de Assis de acordo com muitas iridescências, como no Frère François, de Julien Green, na devoção apaixonada do grego-ortodoxo Kazantzakis, para chegar a Tutta la luce del mondo, o romance de Aldo Nove de 2014. E, naturalmente, mesmo na literatura infantil, com uma fantasmagoria de "fioretti", não se pode abrir mão de uma figura tão luminosa.
Isso e muito mais estava na coleção editada pelos mencionados Benedetti e Subini. Agora, no final das celebrações do aniversário e depois da bibliografia arquivada, gostaríamos de reservar um espaço final para um livro especial, difícil de colocar em uma biblioteca devido à sua imponência que aspira imitar, embora em um registro mais modesto de viés moderno, a tradição dos antigos códigos e lecionários. Sua elaboração, sob a direção de Carlo Ossola, é de uma instituição clássica na cultura italiana, o Instituto da Enciclopédia Italiana, conhecido como "Treccani" pelo nome de seu fundador. No leque de suas publicações, também é reservado um espaço precioso para os livros amados pelos bibliófilos, um gênero editorial que possui seus próprios cânones e cultores. Na capa da encadernação em “couro de vaqueta curtido pela Conceria '800”, está um Francisco esboçado na essencialidade de alguns traços por Mimmo Paladino, enquanto a sequência das páginas é cravejada com uma extraordinária e imensa iconografia que tem seu início na reprodução de uma miniatura do manuscrito Harley 3229, contendo a Legenda et vita do santo de Assis, escrita por um dos maiores autores franciscanos medievais, São Boaventura de Bagnoregio. No final dessa longa trama, que é uma delícia gráfica e visual, entra em cena até o preto e branco do citado filme de Rossellini e também a foto do papa que tomou o nome de Francisco, enquanto sai da Porziuncola de Assis em 4 de agosto de 2016. Essa montagem iconográfica tão variegada acompanha os percursos temáticos confiados não apenas a figuras proeminentes no campo da crítica histórico-literária franciscana como, por exemplo, Jacques Dalarun ou Chiara Frugoni, mas também um frade como pe. Enzo Fortunato, que testemunha a vitalidade da herança franciscana na história e no mundo. Os itinerários de pesquisa obedecem a um mapa vinculante e partem dos escritos e das lendas do santo com dois traçados obrigatórios do Cântico do irmão Sol - cujo início deu o título a uma famosa encíclica papal, Laudato si' - e à constelação dos Fioretti. Dessas raízes, as outras linhas se ramificam, na literatura, na arte, no culto, nas missões, no cinema, nos assuntos atuais, na "mitologia" de um santo com halo de luz transcendente, como Alda Merini cantava: "Eu sou Francisco / aquele que, embalado por Deus, / remenda seus lençóis sujos / com diamantes escuros”.
É a transparência, quase narrativa, dos vários ensaios que conquista o leitor que procede como um peregrino em um terreno onde os mistérios florescem, mas que também é salpicado de obstáculos, porque Francisco continua sendo uma figura provocativa, mesmo em formas ingênuas e esquisitas, como aconteceu no último festival de Sanremo. Adotando um termo surpreendente em sua cunhagem, Ossolaricorda é o "excesso" desse personagem que invade não apenas a Comédia de Dante, mas também um missionário jesuíta português do século XVII no Brasil como Antonio Vieira, capaz de emocionar Pessoa e o diretor Manoel Oliveira, que lhe dedicará um filme, Palavra e utopia. O "excesso" de Francisco também toca o poeta nicaraguense Rubén Darío, que, sem medo, se aproxima do manso lobo de Gubbio. Muito mais poderia se tirar desse livro monumental, impedindo-lhe de ser apenas um número de coleção bibliófila, solenemente acampado em uma robusta prateleira da biblioteca. É emocionante, no entanto, deixar a última voz para Paul Celan, o trágico poeta judeu que morreu suicida em 1970, quase como se quisesse finalmente cancelar o incessante cheiro dos fornos crematórios nazistas que acompanhou seu “ter sido deixado vivo” como sobrevivente. Sua lírica Assis (1954), imersa em uma "noite da Úmbria", fecha-se de fato com um raio de luz que atravessa os túmulos: "Esplendor, que não sabe consolar. Esplendor. / Os mortos. Francisco, ainda imploram”. A propósito, o poeta havia chamado seu filho, morto ainda bebê, de François.
Autores Vários, San Francesco d'Assisi, editado por Carlo Ossola, Instituto da Enciclopédia Italiana, p. 559
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Francisco de Assis, um santo “em excesso”. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU