09 Janeiro 2019
As pregações do autor (ou dos autores) do “Sermão de Pietro da Barsegapè” contam “a história do ser humano e, depois, da alma, desde a criação do mundo até a expulsão dos progenitores, e, depois, do nascimento de Cristo até o Juízo Universal, mas também, e é uma seção muito viva e saborosa, de sete amigos perversos do ser humano, os Vícios capitais”.
O comentário é da historiadora italiana Chiara Frugoni, especialista em Idade Média e em história da Igreja. É uma das maiores especialistas na vida de São Francisco de Assis. Foi professora das universidades de Pisa, Roma e Paris. É autora de diversos livros, como “Invenções da Idade Média. Óculos, livros, bancos, botões e outras invenções geniais” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007).
O artigo foi publicado em Corriere della Sera, 07-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quem havia descido ao Além antes de Dante? Eneias, certamente, e depois o apóstolo Paulo: os manuais de literatura dizem isso. Eles são os dois viajantes mais famosos que foram além da fronteira do mundo dos vivos. Mas outros viajantes, menos conhecidos e igualmente corajosos e curiosos, cruzaram os limiares do Além-túmulo.
Hoje, outra viagem, uma descrição do Além-túmulo menos conhecida, mas contada em tintas fortes e terríveis, finalmente revê a luz, valorizada pela obra de recuperação por um grupo de estudiosos da Idade Média.
A descrição do Além está encerrada nos versos finais de uma obra, Il Sermone di Pietro da Barsegapè, transmitida a partir de um manuscrito conservado pela Biblioteca Nazionale Braidense, em Milão.
O código já era conhecido da crítica, que, nos últimos 100 anos, fez várias propostas de interpretação e de datação. Hoje, finalmente, esse manuscrito conhece um estudo em 360 graus e nos revela muitos dos seus segredos. Outros mistérios permanecem para serem descobertos e compreendidos.
O manuscrito AD XIII 48 contém um texto feito por várias pregações em dialeto milanês do fim do século XIII; cada página é decorada com miniaturas muito finas que as comentam e que contam para os olhos o que a leitura propõe à mente e ao imaginário dos leitores medievais.
Pela primeira vez, esse manuscrito é publicado na sua íntegra (Artemide Edizioni), com todas as miniaturas coloridas, junto com um longo comentário que ilustra o significado de todas as miniaturas, e ensaios sobre a composição do código, sobre a língua e sobre a personalidade do autor ou dos autores do texto.
(Foto: Divulgação)
As pregações contam, compondo uma antologia, a história do ser humano e, depois, da alma, desde a criação do mundo até a expulsão dos progenitores, e, depois, do nascimento de Cristo até o Juízo Universal, mas também, e é uma seção muito viva e saborosa, de sete amigos perversos do ser humano, os Vícios capitais.
Quem pregava queria atingir o seu público, e, por isso, há comparações e referências contínuas à vida cotidiana da Milão do século XIII.
Eis o mundo da cidade que ganha forma e cor. A coroa de Cristo tem espinhos mais agudos e pungentes do que o furador de um sapateiro; o apóstolo Pedro, para cortar a orelha daquele que em outros textos foi chamado de Malco, desembainha uma faca bem afiada com a mó, “ben amolao” [bem amolada]; a carne de Cristo flagelada se torna mais preta do que o caldeirão ao fogo encoberto pela fumaça preta: “plu negra ka caldera ela si pariva”.
Para evidenciar as culpáveis exigências do corpo, recorda-se que a barriga quer ser preenchida com carne de boi e com bom capão, pratos evidentemente apetecíveis e desejados.
Em suma, todo o mundo medieval, de uma cidade que estava se tornando importante, Milão justamente, encontra-se nos versos do Sermão. E, na cidade, nem sequer de propósito, há o problema das ruas, que – era Milão à época, como hoje Roma – tinham buracos e tinham se tornado perigosas.
Assim, o pregador-escritor, narrando a entrada de Cristo em Jerusalém, propõe ao seu público o espetáculo das ruas desalinhadas; em honra de Cristo, os habitantes tentam nivelar a estrada onde há pedras e lama, de modo que o burro prossiga sem sobressaltos: “la strada van tuti adeguando/ la o era le prede e lo fango,/ ke la asena non habia male/ e ke la vaga plu soave” (“a estrada vão todos adequando, lá onde havia pedras e lama, que o burro não passe dificuldades, e que o caminho seja mais suave”).
E, na Milão do século XIII, também há espaço para as compras. Quando Cristo expulsa os mercadores do Templo, não estão à venda os animais prontos para o sacrifício, mas a miniatura propõe uma loja medieval com bolsas, cintos de couro e chapéus de viagem.
Talvez o autor fosse um notário: prova disso é a sua familiaridade com condenações e tortura. Por exemplo, Judas se enforca com as mãos amarradas às costas: evidentemente, não é um suicídio, mas sim uma execução. Nas descrições dos Vícios capitais, são relatadas situações familiares de rixas por herança, de abusos e violências.
E também há o homem soberbo, cheio de raiva, desejoso de poder: o político, talvez, também naquela época? Obnubilado pela raiva, esse homem usa a razão que lhe resta para arruinar a vida de quem está submetido a ele. Ele pensa em:
“Viver a rapina aver dinar ad usura/ ...de fare le grande caxe con li richi solari/ fe grosse torre et alte depengie e ben merlae/ de ver calçe de saia et esser ben uestio/ d’aver riche vignie ke façan lo bon vino/ bosco da legnie lo molin e po lo forno/ ...lu uol asai ki ge stian detorno/ ora se sta superbo e molto iniquitoso” (“Viver de rapina, ter dinheiro para usura, fazer grandes casas com ricos solares, grandes torres, altas, pintadas e bem “merladas”, estar bem vestido, ter ricos vinhedos que façam um bom vinho, floresta de madeira, o moinho e depois o forno, ele quer muitas pessoas ao seu redor, e agora está soberbo e cheio de iniquidade”).
Poderia ser o retrato de Napo Della Torre, sempre em relações bastante tensas com o arcebispo Ottone Visconti, no exílio, do qual o nosso notário estaria a serviço. Precisamente o exílio explicaria por que o notário, seguindo os deslocamentos da cúria, pôde conhecer tantas cidades de cujos monumentos relata traços precisos nas miniaturas: cópia da catedral de Modena, de São Zeno em Verona, de São Jorge em Almenno San Salvatore, do Batistério de Parma e ainda de outras igrejas.
E, no fim, o pregador mostra ao seu público o terrível espetáculo do inferno:
“Vu andarì in fogo ardente/ crudel e pessimo e boliente/ in greve puça et in calor/ in tormenti et in dolor/ infimo grande e tenebroso (...)/ e çamai no trovarì bon logo/ e fame e sede aurì crudel/ ma non avrì lagie nì mel/ inançe auri diuerse pene/de crudelissime cadene/ ad un ad un firì ligai/ e molto firì marturiadi/ de scorpion e de serpenti/ e de dragon molti mordente” (“Vocês irão ao fogo ardente, cruel e péssimo e fervente, a um mau cheiro intenso e ao calor, aos tormentos e à dor ínfima, grande e tenebrosa (...) e nunca encontrarão descanso, e terão fome e sede cruel, mas não terão com que se saciar; ao contrário, terão diversas penas e crudelíssimas correntes, estarão amarrados um a um, e serão muito atormentados por escorpiões e por serpentes e por dragões muito insaciáveis”).
Condenada ao esquecimento quase total, a voz dessa pregação revê agora a luz, estudada em profundidade, na sua força e nos seus segredos, e nos conta o mundo da Milão do século XIII, mas também a viagem daqueles que, ultrapassadas as fronteiras da cidade dos vivos, viram e contam o Além. Uma cena terrível, que abria caminho para o Inferno de Dante.
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O inferno antes de Dante. Artigo de Chiara Frugoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU