02 Março 2020
Há uma semana, o papa Francisco assinou o decreto que reconhece o padre Rutilio Grande, S.J., e seus companheiros leigos Manuel Solórzano e Nelson Rutilio Lemus, como mártires; assassinados pelo ódio à fé. Um passo importante que ocorre no processo de beatificação desses mártires.
Quatro décadas se passaram desde que o padre Rutilio e seus companheiros foram mortos no caminho de El Paisnal (El Salvador), mas hoje seu legado permanece em vigor. Ele viveu pela justiça, fé e reconciliação de seu povo, era amigo dos pobres e excluídos, mas, acima de tudo, era um colaborador apostólico fiel.
Para lembrá-lo, alguns dias após 43 anos de seu assassinato (12 de março de 1977), o Escritório de Comunicação Institucional da Conferência de Provinciais da América Latina e Caribe da Companhia de Jesus - CPAL entrou em contato com o padre Rodolfo Cardenal, S.J., biógrafo oficial do padre Rutilio e historiador da comissão da causa diocesana por sua beatificação, para nos falar sobre o legado do mártir salvadorenho.
A entrevista é de Carol Cuzcano G., publicada por Jesuítas da América Latina, 28-02-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Quem foi Rutilio Grande, como foi sua vida a serviço da Igreja e da Companhia de Jesus?
Rutilio Grande é um jesuíta que nunca esqueceu, apesar de suas viagens e estudos, a cidade pobre onde nasceu e onde foi criado até a adolescência. Ele voltou para a cidade quando adulto e no meio dela foi assassinado, juntamente com um velho e um jovem, símbolos do povo salvadorenho.
Filho de uma família disfuncional, algo que o fez sofrer muito até lhe causar uma grave crise de nervos, que o deixou sequelas por toda a vida, entrou muito jovem no seminário menor de San Salvador. Então ele se juntou à Companhia de Jesus. Ele estudou em Quito, Oña, Paris, Córdoba e Bruxelas. Ele passou a maior parte de sua vida formando o clero. Durante uma década, ele foi o prefeito do seminário. Apesar da dificuldade dessa responsabilidade, ele ganhou a apreciação de várias gerações de padres, que mais tarde o tiveram como amigo e diretor espiritual. Seu desejo de introduzir na formação do clero as diretrizes do Vaticano II, sua pregação profética e seu papel na atualização da pastoral arquidiocesana, segundo o magistério do Concílio e da Conferência de Medellín, fizeram com que os bispos vetassem sua nomeação como reitor do Seminário.
Então, ele decidiu que, se não gozava da confiança do episcopado, não poderia continuar na formação do clero. Em 1971 ele esteve, também como prefeito, na Escola Externa San José de San Salvador. Mas ele viu que este não é o lugar dele. Ele queria se dedicar à pastoral rural, em um país predominantemente camponês. Antes de assumir seu novo destino, ele fez o curso pastoral do Instituto Pastoral Latino-americano, em Quito.
Em meados de 1972, foi nomeado pastor da cidade de Aguilares. Embora ele fosse o pároco, “a equipe missionária”, três jesuítas e um padre diocesano são fundamentais na obra de evangelização. Em 12 de março de 1977, ele foi morto, juntamente com dois camponeses, quando ia celebrar a missa em sua cidade natal, que fazia parte da jurisdição da paróquia.
O padre Tilo, como era carinhosamente chamado, lutava para banir o clericalismo, dizia ele, do caciquismo do clero. Nisso, ele antecipa os esforços do papa Francisco. Ele queria um clero responsável e maduro, não servil à autoridade. Ele regularmente cultivava as raízes populares dos seminaristas. Eles deixaram a cidade e tiveram que voltar para servi-lo.
A paróquia de Aguilares não acentuou a administração dos sacramentos, mas a evangelização e a criação de comunidades. O padre Tilo sonhava com uma paróquia dirigida por leigos, onde o ministro ordenado se limitaria à administração de sacramentos. As duras condições socioeconômicas do campo estimularam a organização camponesa e a luta por seus direitos. Isso levantou a relação entre fé e política. O padre Tilo manteve um equilíbrio difícil, às vezes esmagador, e foi por isso que apresentou a demissão várias vezes. Mas nem o arcebispo, que confiava plenamente nele, nem o provincial o aceitaram.
O desenvolvimento da organização política e a defesa dos direitos dos camponeses fizeram com que o padre Tilo e a paróquia fossem percebidos pela oligarquia e pelo regime militar como uma ameaça à ordem estabelecida. Por esse motivo, eles os acusaram de comunistas. Em suma, essa opção pelos pobres e sua libertação de todos os tipos de opressão foi o motivo fundamental para o assassinato.
O padre Tilo contribuiu decisivamente na configuração do ministério pastoral arquidiocesano. A paróquia de Aguilares foi um modelo para outras paróquias, promoveu e defendeu as comunidades cristãs, a formação e promoção de agentes pastorais e o pastoralismo como um todo.
Com tantos acontecimentos sociais que vive El Salvador, qual é a importância da beatificação do padre Rutilio Grande para seu povo?
A vida e o ministério do padre Tilo estão associados a dom Romero. O ministério do arcebispo foi possível pelo trabalho que aquele e outros padres tinham feito. Dom Romero transitou pelos caminhos abertos pelo padre Tilo. O padre Tilo representa a luta para atualizar a Igreja a partir do Concílio e de Medellín. Nesse sentido foi um apóstolo do magistério conciliar e latino-americano. Esse apostolado resulta em seu martírio. Dom Romero aprovou seu ministério pastoral, o reconheceu como mártir e como uma graça para a Igreja salvadorenha.
O martírio do padre Tilo fez com que dom Romero fosse mais consciente de sua missão profética. Sua pregação torna-se então mais decidida, clara e forte. Por isso o papa Francisco diz que o grande milagre de Rutilio Grande é dom Romero.
Qual é o legado que Rutilio Grande deixa para os jovens de hoje?
O legado do padre Rutilio Grande para os jovens consiste, a meu ver, em não ceder às injustiças, às escravidões e às opressões. Esses males, pecados gravíssimos, devem ser combatidos para erradicá-los. Porém para combater eficazmente o pecado deste mundo é necessário uma esmerada preparação. Todos os saberes e as habilidades são necessárias para trabalhar pela construção do Reino do Deus.
Rutilio Grande foi um dos propulsores da “justiça social”. O que os jesuítas que estão em processo de formação têm que aprender com isso?
Jovens em formação, e todos os jesuítas, devemos aprender a discernir nos sinais dos tempos atuais a vontade de Deus de agir em conformidade. As injustiças, escravidão e opressões de hoje não são as mesmas do padre Rutilio, mas também matam os fracos e vulneráveis. Portanto, é necessário examinar, discernir e agir. Também hoje é necessário descer da cruz para a crucificação desses tempos difíceis.
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“O legado de Rutilio Grande está em não ceder frente às injustiças, às escravidões e às opressões”, destaca Rodolfo Cardenal, biógrafo do mártir salvadorenho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU