04 Fevereiro 2020
Caminhar é decisivo para nós, humanos, mas, infelizmente, descobrimos isso tarde, assim como percebemos tarde que a vida é um caminho a percorrer dia após dia, rumo a uma meta que nem sempre temos claramente diante de nós.
A reflexão é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado em La Repubblica, 03-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Caminhei muito na minha vida e agora que estou velho não posso mais caminhar muito, mas paradoxalmente cresceu muito em mim o desejo de fazer caminhadas.
Caminhar significa colocar um pé na frente do outro e ir para outro lugar, deixando que o próprio corpo se mova e percorra um trajeto marcado por outros que caminharam antes de nós, até deixarem as suas pegadas.
“Caminhando se abre o caminho”, intuiu bem o grande poeta Machado. Caminhar é decisivo para nós, humanos, mas, infelizmente, descobrimos isso tarde, assim como percebemos tarde que a vida é um caminho a percorrer dia após dia, rumo a uma meta que nem sempre temos claramente diante de nós. Portanto, não reflito sobre o caminho dos peregrinos pelos caminhos sagrados que levam a Compostela, Roma ou Jerusalém.
Hoje, caminhar não é mais uma prática cotidiana necessária, porque recorremos ao carro ou aos meios públicos. Antigamente, no entanto, ao longo da estrada, sempre havia pessoas que caminhavam com as suas malas, com as suas “trouxas” e com os seus pesos para carregar, às vezes esmagadores.
Hoje, os médicos recomendam dedicar pelo menos meia hora por dia para caminhar rapidamente, porque é um exercício benéfico para a saúde do corpo, mas, na minha opinião, é sobretudo para a saúde da mente e do espírito. Até porque, se caminharmos velozmente, fazemos isso sozinhos e, então, na concretude de dar um passo atrás do outro, silêncio e solidão se tornam fecundos, estimulados por todos os sentidos acesos pelo caminhar.
Não por acaso o filósofo grego Diógenes repetia, diante das interrogações mais difíceis: “Solvitur ambulando”, “caminhando, o problema será resolvido”. E, quando se caminha a dois, então a conversa, os olhares cruzados, tornam-se linguagens repletas de cumplicidade, afetividade e ternura.
Caminhar com um outro nunca é inútil, nunca é tempo perdido, mas ai de fazer uma caminhada, no meio da natureza, eliminando o silêncio com músicas ou vozes inseridas diretamente nos fones de ouvido. Só no silêncio, de fato, pode-se ter a experiência de que “nada é sem voz”, como escrevia Paulo de Tarso.
Sim, quando eu caminho e não permaneço distraído ou fechado em mim, cada coisa tem uma mensagem para me oferecer ou, melhor, ela mesma se torna uma palavra.
É assim que emergem presenças inesperadas, perguntas essenciais e também ocorrem diálogos imaginários com uma raposa que nos observa ou com um corvo que salta na nossa frente... Ao caminhar, especialmente no campo e na floresta, há uma adesão do corpo à terra que nos faz sentir mais do que nunca terrestres. Caminhar sobre esta terra é imergir em um fluxo de vida em que somos cocriaturas, todas convivendo – humanos, animais, árvores, musgos, flores, pedras –, e, nesse rio, cabe a nós fazermo-nos a voz e o pensamentos delas, em uma comunhão real.
Dizia-me um monge de Athos: “Caminhei muito na minha vida e, agora que estou velho e paralisado nas pernas, posso dizer para mim mesmo: ‘Senta-te e caminha!”.
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No caminho, o sentido da vida. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU