29 Janeiro 2020
No encontro que celebrou os 25 anos do famoso encontro inter-religoso de Assis, Julia Kristeva fez uma comunicação sob o título "Ousar o humanismo". "É precisamente em torno dessa palavra quase mágica, mas também exorcizada por alguns, que queremos propor uma consideração breve e simplificada. O vocábulo, de fato, tem sido uma estrela-guia do pensamento desses últimos séculos, a partir do Renascimento, com a sua referência à civilização clássica greco-romana", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 26-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, a partir da luz de "iridescências bíblicas, compreende-se o esforço de um teólogo forasteiro como Hans Küng, que, no seu “Ser cristão”, defendia um “humanismo radical cristão, capaz de integrar e superar também o não verdadeiro, o não bom, o não belo e o não humano: não apenas tudo o que é positivo, mas também tudo o que é negativo, o próprio sofrimento, a culpa, a morte, o absurdo”.
No dia 27 de outubro de 2011, o Papa Bento XVI decidiu comemorar na cidade de São Francisco os 25 anos do famoso encontro inter-religioso de Assis, desejado pelo seu antecessor, João Paulo II.
A novidade foi representada pela presença, solicitada pelo pontífice, de um grupo de não crentes. A escolha das figuras a serem convidadas foi confiada a mim, que, à frente daquela delegação, propus a conhecida filósofa e psicanalista franco-búlgara Julia Kristeva. A sua fala, de grande originalidade e fineza, impressionou o papa, porque ela conseguiu entrelaçar em poucos parágrafos tanto o rigor da reflexão pós-iluminista, quanto o imenso patrimônio sociocultural das múltiplas tradições espirituais, inscrevendo-o na órbita da modernidade.
Pois bem, o título atribuído àquela comunicação era “Ousar o humanismo”, e é precisamente em torno dessa palavra quase mágica, mas também exorcizada por alguns, que queremos propor uma consideração breve e simplificada. O vocábulo, de fato, tem sido uma estrela-guia do pensamento desses últimos séculos, a partir do Renascimento, com a sua referência à civilização clássica greco-romana.
Porém, também tem sido uma espécie de estereótipo a ser aplicado a eventos de todos os tipos, até religiosos, como no caso do Congresso Eclesial Nacional, celebrado em Florença em 2015, sob a égide do título “Em Jesus Cristo, o novo humanismo”. O rótulo “novo humanismo” já se tornou comum, colocado em vários ensaios (alguns muito interessantes, como o de Michele Ciliberto) e até em documentos pastorais, como o sugestivo discurso de Santo Ambrósio em 2014, do cardeal Angelo Scola, sobre “Um novo humanismo para Milão e as terras ambrosianas”.
O certo é que a genealogia dessa categoria é imponente e registrou as mais diversas etapas, atravessando até textos sociopolíticos: pensemos na Declaração Universal das Nações Unidas (1948). Ou, melhor, teve um curioso desvio semântico do qual eu fui testemunha justamente no citado encontro de Assis. Naquela ocasião, de fato, acendeu-se uma discussão sobre a designação daquele grupo de “não crentes”: eles imediatamente rejeitaram o já arcaico “ateu”, assim como o epíteto “agnóstico” (os crentes seriam então “gnósticos”?) ou o negativo “não crente”, ou o demasiadamente politizado “laico/leigo”, aliás, passível também de um significado eclesial. No fim, optou-se por “humanistas”, acolhido com certa perplexidade de minha parte, que me sinto, também nos estudos, um “humanista”.
Na realidade, desde o “Humanist Manifesto” de 1933, que propunha o humanismo como nova fé capaz de debelar as outras (o filósofo John Dewey também aderiu a ele), já se chegou agora a uma inequívoca acepção “ateia” do termo, como atesta o slogan da American Humanist Association: “Good without a God” [Bom sem um Deus].
Nessa linha, os precursores foram duas vozes antitéticas. Por um lado, Sartre, com a sua conferência parisiense de 1945, publicada mais tarde com o título “L’existentialisme est un humanisme”: o nó ardente da liberdade humana exigia um apagamento da presença de um Deus, árbitro superior (obviamente, o seu pensamento era muito mais complexo, baseando-se no primado excedente da existência sobre a essência humana).
Por outro lado, tinha entrado em cena um teólogo igualmente famoso como Henri de Lubac, que representara, com uma obra muito ampla, aquilo que ele chamava de “O drama do humanismo ateu” (1943, retomado em outros ensaios subsequentes com novas nuances). Depois de se defrontar com os grandes sistemas modernos do positivismo, do marxismo e de Nietzsche, ele concluía que “não é verdade que o homem não pode organizar o mundo terrestre sem Deus. No entanto, é verdade que, sem Deus, no fim, ele só pode organizá-lo contra o homem. O humanismo exclusivo é um humanismo desumano”.
Na realidade, o primeiro a intervir sobre o tema de modo articulado e em perspectiva cristã foi o filósofo Jacques Maritain, com o sucesso do seu texto “Humanismo integral” (1936), desejoso de “integrar” na visão humanística também as categorias cristãs estruturais que haviam sido progressivamente expulsas dele. É significativa uma frase daquele texto: “O vício radical do humanismo antropocêntrico é o de ter sido antropocêntrico e não de ser humanismo”.
O leque temático, no entanto, havia se ampliado depois. Não é possível segui-lo, mas apenas aludir a ele com alguns exemplos. Pensemos na Carta sobre o “Humanismo”, que Heidegger retrabalhou várias vezes, também em dialética com Sartre, e que não excluía “a essência do divino que é mais próxima de nós do que a estranheza dos outros seres vivos (...), mais familiar à nossa essência existente do que o parentesco físico com o animal”. Um conceito desenvolvido na conhecida entrevista ao Spiegel, na qual Heidegger se revelava cético sobre a contribuição salvífica da filosofia na atual situação mundial, referindo-se a outro horizonte: “Somente um deus ainda pode nos salvar”, porque, “diante de um deus que se ausenta ou que declina, nós também declinamos”.
Nesse ponto, devemos trazer à tona uma robusta patrulha de importantes pensadores do século XX. É fácil rastrear dois “adversários” de grande calibre que cruzaram as lâminas em um grande congresso organizado em 1949 em Genebra, sob o título emblemático “Pour un nouvel humanisme”: estamos falando de Jaspers e Barth, que também se moviam no mesmo leito cristão, mas a partir de margens diferentes, antropologia para o primeiro, a cristologia para o segundo.
Além disso, sobre essa questão, seria muito significativa a contribuição de Lévinas com a sua silloge de intervenções entre 1961 e 1972, intitulada “Humanisme de l’autre homme”, baseada no projeto de fundar um novo humanismo anti-humanista que se libertasse de vários despojos tanto do passado metafísico, quanto do presente tecnológico autossuficiente. Nascia, assim, um humanismo baseado no encontro com o outro: “Os homens buscam-se um ao outro na condição de estrangeiros. Ninguém está na sua casa. A recordação da servidão une a humanidade”.
Nessa luz de iridescências bíblicas, compreende-se o esforço de um teólogo forasteiro como Hans Küng, que, no seu “Ser cristão”, defendia um “humanismo radical cristão, capaz de integrar e superar também o não verdadeiro, o não bom, o não belo e o não humano: não apenas tudo o que é positivo, mas também tudo o que é negativo, o próprio sofrimento, a culpa, a morte, o absurdo”.
Essa provocação, que é estrutural ao cristianismo, também revela a brecha com a clareza olímpica do humanismo renascentista, embora capital para a própria cristandade, um horizonte para o qual seria interessante retornar para descobrir – também em âmbito crítico – a sua trama ideal, cultural e espiritual. É o que gostaríamos de fazer no futuro.
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Humanismos diferentes para humanistas diferentes. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU