29 Janeiro 2020
“Houve uma ‘guerra civil’ na Companhia. Arrupe foi traído de dentro”. O historiador Gianni la Bella é o autor de Los Jesuitas. Del Vaticano II al Papa Francisco, uma publicação do Grupo Loyola de Comunicação, apresentada esta semana em Madri. Com a ‘explosão’ da tentativa, por parte de Bertone e Bento XVI, de voltar a interferir nos jesuítas por meio do então cardeal Bergoglio, que recusou categoricamente.
Com La Bella, dissecamos a história da Companhia de antes do Concílio Vaticano II até o presente, em um momento em que “Francisco pede explicitamente ajuda aos jesuítas”. E a ordem “assume esse pedido do Papa como a vocação da Companhia”. Conversamos com ele.
A entrevista é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, 26-01-2020. A tradução é do Cepat.
Bem-vindo à Espanha, Gianni.
Obrigado.
Uma grande história dos jesuítas, que se concentra em sua etapa mais contemporânea.
Sim. É um percurso pelo período mais intenso da história da Companhia contemporânea, do pós-Concílio até hoje.
Primeiro, é muito importante entender a peculiar relação que existe entre o Concílio e os jesuítas. Pode-se dizer, cientificamente falando, que não existe uma constituição conciliar onde a mão dos jesuítas não esteja muito presente. Da Dei Verbum a todas as constituições do Concílio Vaticano II. É muito importante entender que os jesuítas fazem parte dos atores que pensam e organizam o Vaticano II. E, ao mesmo tempo, é uma das congregações religiosas que mais trabalha para implementar na vida da Igreja a ideia de fundo do Vaticano II.
Com uma figura muito clara, e nem sempre bem compreendida, que é a do padre Arrupe.
Padre Arrupe, para mim, foi um profeta. E por isso, em seu tempo, nem todos entenderam a visão que tinha.
O padre Arrupe vem de uma história muito tradicional. É um jesuíta do século passado, teve uma educação formal típica. No livro, falo de um jesuíta perfeito. De um jesuíta ideal enraizado em sua experiência missionária.
Teve uma experiência com a bomba atômica.
Passa grande parte de sua vida em um contexto cultural, teológico e histórico que nada tem a ver com a Europa, nem com a tradição cultural do catolicismo. Através de sua experiência de vida, compreende a necessidade de passar de uma ideia eurocêntrica do cristianismo a uma ideia de como viver um cristianismo inculturado.
Não é possível entender sua carta - muito importante - da vida da Igreja contemporânea, sobre a inculturação, sem conhecer algo de sua vida no Japão, onde dá um exemplo muito claro. O primeiro sermão do padre Arrupe no Japão foi a parábola do ‘bom pastor’. O padre, em seu japonês imperfeito, falou muito sobre ovelhas, e um jesuíta mais velho lhe explica que no Japão não há ovelhas. Então, o padre Arrupe entende que permanece meia hora falando do bom pastor e das ovelhas em um lugar onde não há, e reflete: “o que entenderam?”. É uma anedota que dá uma ideia mais concreta, experimental e pastoral do padre Arrupe, para dizer em uma linguagem de hoje.
Padre Arrupe, questionado sobre os efeitos da explosão de Hiroshima CNS (Foto: Religión Digital)
Essa reflexão sobre a necessidade de se adaptar a outra cultura, para entender e ser entendido, ele a assume quando é nomeado geral. E não apenas a necessidade de inculturação, mas a partir da inculturação, entender as necessidades do mundo que sofre. E daí surgem outras ideias.
Sim. A da justiça também. A tradição cultural dos jesuítas, a tradição cultural do catolicismo antes do Concílio, colocava o acento mais em uma dimensão vertical. Na relação Deus-eu. O padre Arrupe entende que, após o Concílio, a palavra mais fundamental é “comunhão”. A ideia da comunidade. Por isso, necessita que essa declinação “eu e Deus” seja transferida também, se encarne, na ideia dos pobres, dos mais necessitados. Essa visão implica uma revolução cultural, antropológica e teológica, que exige muito de uma família religiosa que está presente em todas as partes do mundo. Uma formação que vinha dos ‘marinheiros’ do papado para fazer uma mudança muito profunda, muito radical. E isso não se improvisa.
Esta história é a narração de um trabalho muito profundo, alguma vez dolorosa e complicada, que é necessário entender para ter uma visão mais clara dos jesuítas de hoje. Para isso, é muito importante sair de uma leitura ideológica ou apologética. O esforço para realizar um trabalho histórico seria entender o que aconteceu nesses cinquenta anos de história. E não dizer: os jesuítas são bons porque são jesuítas. Ou seja: os jesuítas se laicizaram.
A verdade é que a figura de Arrupe foi profética em seu momento. Que o Vaticano está repleto da presença jesuíta, transborda e é, provavelmente, a instituição que primeiro capta o Concílio e que primeiro o coloca em funcionamento. No entanto, quanto à figura de Arrupe, e da própria Companhia, não sei se cabe dizer que sofre ou é condenada ao esquecimento, a uma certa marginalização. Ao final, Arrupe morre como morre e nas circunstâncias em que morre, e há uma intervenção na Companhia, ou algo semelhante, nos primeiros anos de João Paulo II.
Sim, isso está claro. É muito importante entender que esse processo, quando digo que é doloroso, eu o entendo no sentido profundo da palavra. Também é necessário, para mim, dizer que os jesuítas são a família religiosa que chega ao Vaticano II mais contrária a ele.
Na Companhia convivem duas almas. Uma, a geração de Henri de Lubac, que foi a mão direita e esquerda do Concílio Vaticano II. E, ao mesmo tempo, a segunda alma, a contrára, que são os professores da escola romana, os arquitetos de Pio XII. Poderíamos dizer que no corpo da Companhia até o Vaticano II convivem estes dois tipos de tendências. No Concílio, há 52 peritos da Companhia: 52 jesuítas que trabalham a serviço dos bispos que estão no Concílio.
Mas, se você olha a biografia deste homem, encontra de tudo. De personagens da “direita” teológica daquele tempo, como o padre Salaverry, um teórico da tradição, a De Lubac, um homem que em 1935 estuda o budismo. Esta vida da Companhia, até o Vaticano II, é uma convivência. Após o Vaticano II, essa convivência explode. É um caminho muito doloroso. Quando chega João Paulo II, esse conflito ..., no livro falo de uma ‘guerra civil’.
Grande abraço de São João Paulo II e do Padre Arrupe (Fonte: Religión Digital)
Arrupe é traído dentro da Companhia?
Sim. Mas é muito importante para mim entender que esse conflito, que ocorre entre a Companhia e João Paulo II, é um conflito maior, que ocorre entre João Paulo II e a Vida Religiosa. Porque o Papa, que vem de uma tradição cultural que não tinha sensibilidade pela Vida Religiosa, tinha uma ideia episcopal e cêntrica.
Uma visão da Vida Religiosa, provavelmente, mais orientada ao ideológico, à esquerda, à Teologia da Libertação.
Bom, ao mesmo tempo, há um protesto muito forte, sobretudo de bispos jesuítas, contra Arrupe, que escrevem um monte de cartas ao Vaticano dizendo que não se pode aceitar o caminho que a Companhia está tomando.
Que a Companhia seja modelo da Vida Religiosa era algo muito claro para o Papa Paulo VI. E João Paulo II compreende isso, mas não com a clareza de Paulo VI. Para dar um exemplo, o padre Arrupe foi eleito superior geral. E, como superior geral, presidente da união dos superiores gerais, sem eleições, como se fazia na Idade Média, por aclamação. Três vezes. Por cerca de 20 anos, Arrupe foi um líder natural da Vida Religiosa.
Foi, verdadeiramente, o papa negro, mas da Vida Religiosa.
O papa negro, mas quando falava... Ele foi duas vezes capa da Newsweek. Do The Times também.
Foi visto como uma ameaça por João Paulo II?
Muito mais no sentido de que a Companhia poderia ter problemas, sobretudo, por um contexto muito particular, que era o contexto sul-americano. Nesse conflito da história inicial da Teologia da Libertação, os jesuítas, e isso não é verdade, são acusados de serem os mestres de todos os teólogos da libertação. Você sabe muito bem que a Teologia da Libertação é um mundo, que há de tudo. Existem posições mais moderadas e mais extremistas ... Bom. E também existem teólogos muito corajosos, além do filão da Teologia da Libertação. Jesuítas.
Como termina essa punição, essa proibição? Essa situação vivida pelos jesuítas e que Arrupe vive pessoalmente, com João Paulo II.
João Paulo II nomeia o padre Dezza como delegado. Dezza é um homem da velha Companhia que nunca teve problemas em dizer que não “concordava” com o governo de Arrupe. Não em relação à santidade de Arrupe, note.
Quando Dezza é nomeado delegado do Papa, assume uma postura muito oficial, mas muito clara em favor da Companhia. Explica ao Papa João Paulo II que a Companhia não é apenas a narrativa presente nas cartas contra eles, que chegam de diferentes partes do mundo. Que na Companhia há um monte de jesuítas que trabalham com os pobres, e se refere muitas vezes aos mártires jesuítas. Mais de 52, após o Vaticano II, morreram trabalhando pela paz, pela justiça, pela evangelização, pela inculturação, pelo trabalho com o meio ambiente ... Nesse sentido, Dezza atua como advogado da Companhia diante de João Paulo II. E João Paulo II - há muitos depoimentos sobre isso – se mostra muito impressionado com o silêncio dos jesuítas. Os jesuítas aceitaram essa condição. Protestaram 15 jesuítas em todo o mundo. O padre Rahner escreve sobre isto.
Quando o Papa, ao final de tudo, permite a 33ª Congregação Geral da Companhia, que elege Kolvenbach, em seu discurso, pergunta francamente: por que tinham um problema?
Eu tenho, no livro, uma carta, que é a síntese de um colóquio entre o Papa João Paulo II e Arrupe, onde João Paulo II diz a Arrupe: “você, quando lhe pedem para esperar, - o Papa pensa que Arrupe não lhe entende -, marcha como general. E os jesuítas, o que fazem?
Arrupe nem sempre obedece ao Papa.
Isso precisa ser polido no contexto do tempo, um pouco.
Chega Kolvenbach, permanece 25 ou 27 anos e a Companhia fica moderada. Vive um período de menos protagonismo. É pesquisado? Como entendemos o generalato de Kolvenbach? Porque, certamente, é o mais desconhecido.
Para mim, o generalato de Kolvenbach é tão importante como o de Arrupe. Não é possível entender Kolvenbach sem Arrupe, nem Arrupe sem Kolvenbach.
Arrupe foi um generalato vulcânico, profético, de vanguarda. O de Kolvenbach foi de sabedoria, de paciência.
Kolvenbach teve três orientações muito claras. A primeira, fazer tudo o que for possível para colocar fim à guerra com o Vaticano. Fazer todo esse trabalho de reconciliação com a Santa Sé. De recolocar a Companhia diante do pontífice romano. Segunda, colocar fim à guerra civil entre os jesuítas, entre esquerda e direita, para dizer de uma maneira um pouco superficial. E a terceira, pedir aos jesuítas para sair da desconfiança e da depressão que houve após a intervenção papal, dizendo: “Bom, este é um período passado da história. Agora, estamos em uma nova época e um novo período histórico, onde o problema é viver novamente a vocação”. A palavra que define mais claramente este generalato, tão extenso, é que Kolvenbach governou encorajando. Dizendo a todos: “bom, trabalhos juntos”. “Estou ao seu lado”. “Não se preocupe”... E, sobretudo, construindo cultura.
O magistério inaciano de Kolvenbach... Não é um especialista em espiritualidade inaciana, é mais um especialista em linguística. Contudo, empregou muito tempo no estudo. Foi um generalato de grande ensinamento teológico, de sabedoria.
O Papa abençoa Adolfo Nicolás, SJ. no Japão (Fonte: Religión Digital)
Ele renuncia pela primeira vez ...
Perguntou ao papa, mas o papa também tinha medo. João Paulo II teve uma relação muito estreita com Kolvenbach. De grande confiança nele, mas nem sempre na Companhia. Não apenas pelos os assuntos da Companhia, mas por outros assuntos da Igreja universal.
Kolvenbach renuncia e os jesuítas escolhem aquele que provavelmente pudesse ser, ao menos de fora, o mais parecido com Arrupe, que é Adolfo Nicolás. Um homem que também vem do oriente e é espanhol. Que viveu essa experiência, que você contava antes, da inculturação em outras localizações, especialmente japoneses. O espírito de Arrupe retorna e o que acontece com Nicolás?
Kolvenbach nunca falou contra Arrupe. Sempre disse: “o barco é o mesmo, só houve uma troca de capitão”. Kolvenbach mantém a orientação da Companhia de Arrupe.
Muitas vezes, perguntou-se a Nicolás se era o clone de Arrupe. Eu acredito que apesar das semelhanças, há uma história diferente. Mas, é um missionário, isso está claro. Para mim, Arrupe, Kolvenbach e Nicolás têm isso em comum, são gerais com um sentido missionário. Daí a ideia de buscar uma vida da Companhia diferente da anterior ao Concílio, quando o general era Jean-Baptiste Janssens, um homem de pensamento, de escrivaninha. O generalato de Nicolás é muito breve, de cinco anos. Contudo, há um ponto muito importante: concentra todo o seu magistério em colocar no eixo da vida dos jesuítas a ideia da disponibilidade. Isso significa afirmar que os jesuítas são homens de fronteira e que vão para onde for necessário. Onde ninguém quer ir.
Está preparando o caminho que, depois, Francisco assumirá, de alguma forma.
Entre Francisco e Nicolás não só existe amizade, há uma grande sintonia. Pertencem à mesma geração de jesuítas. Trabalharam juntos na 33ª Congregação que elege Kolvenbach. Pertencem à geração Arrupe. Possuem um entendimento de velhos companheiros de armas ... Está muito claro, após a eleição, Francisco pede explicitamente ajuda a Adolfo Nicolás. Não pode ser papa sem a Companhia ao seu lado. E Nicolás assume esta questão do Papa como a vocação da Companhia neste século.
Essa unidade de ação...
Podemos dizer que este é o momento em que esse conflito entre a Santa Sé e a Companhia está definitivamente concluído. Ela retorna ao coração do pontificado romano e assume, novamente, um protagonismo de grande nível.
O papa pede publicamente à Companhia uma ajuda específica: que os jesuítas trabalhem na Igreja para divulgar a ideia do discernimento. A herança mais importante de Francisco para a Igreja hoje é essa gramática. Esse estilo de governo, de vida da Igreja orientada para a sinodalidade. E o motor que move a sinodalidade é o discernimento espiritual. Os jesuítas são os maiores especialistas em discernimento do mundo e Francisco precisa disso, porque será, estou convencido, o “método” de governo do futuro da Igreja. Não é uma decisão que emerge da ideologia, da contraposição, mas, sim, o produto de um processo conjunto, dos sínodos como o da Amazônia, por exemplo, onde não há decisões prévias.
Que vai sendo assumido pelo que se decide nele.
O discernimento espiritual não é uma técnica oriental. Não é yoga católico. É uma gramática espiritual profunda que necessita de muitas coisas: confiança, atenção ao Espírito Santo, dimensão fraterna, comunhão, atenção à tradição bíblica ... Tudo isso é um pouco o futuro da vida da igreja.
Arturo Sosa é o primeiro geral latino-americano, assim como Bergoglio foi o primeiro papa, com uma visão muito, muito, muito parecida. E é um homem que, desde o início, percebe que o pontificado de Francisco não será fácil. Que existe uma oposição crescente. Inclusive, ultimamente, chega a falar, quase, de movimentos que podem fazer você pensar em um cisma. De ataques duros de personalidades importantes dentro da Igreja. Estamos vendo isso nas últimas semanas, com o livro de Sarah e o envolvimento ou não do papa emérito Ratzinger. Como a Companhia vive isso? Como se sente sabendo que está - porque o Papa pediu e por convicção - na vanguarda da defesa do pontificado?
Acredito que vive isso com muita atenção. E com a ideia clara de que esse ataque surge de uma ideia romântica de ressuscitar um passado que não existe. Ponto.
O Papa Francisco colocou a Igreja no mundo de hoje, aceitando viver como Igreja - na minha opinião - em um tempo de caos. Estamos no tempo do caos, mas também no tempo da globalização. O Papa fala de uma globalização da caridade, não apenas de uma globalização econômica. E é o primeiro papa que não foi um padre conciliar. Nesse sentido, Francisco não fala do Vaticano II, coloca-o em andamento na vida da Igreja. Penso que os ataques ao Papa estão na linha da não aceitação disso, do não desenvolvimento do Vaticano II: o dia da palavra de Deus, a relação com os pobres, a dimensão comunitária, o discernimento espiritual, a aceitação do diálogo cultural, a ideia da relação com o mundo da cultura, o diálogo com a religião, o espírito de Assis ... Todos esses são pilares de ação do Vaticano II. E claro que há uma parte dos católicos que espera retornar aos tempos da sociedade cristã.
Mas, como você bem disse, é uma sociedade que já não existe. E uma igreja que já não existe. Um passado sem continuidade hoje. Uma Igreja que não existe em um mundo que não existe.
Ou seja, não existe. E tampouco existe aquele mundo: o mundo cristão, no sentido antigo da palavra. No último discurso à cúria romana, o Papa comentou: “estamos em um momento de crise, um tempo diferente”. Não podemos voltar aos tempos anteriores à Revolução Francesa, para resumir.
Muito obrigado, Gianni! Foi um prazer.
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“Houve uma ‘guerra civil’ na Companhia. Arrupe foi traído de dentro” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU