28 Novembro 2019
“O feudalismo e a servidão que gerava eram um sistema brutal que causou extraordinária miséria humana, sim. No entanto, não foi o capitalismo que acabou com essa situação”, escreve Jason Hickel, escritor e antropólogo, da London School of Economics, na Inglaterra.
Em sua avaliação, “o progresso na expectativa de vida foi impulsionado por movimentos políticos progressistas que aproveitaram os recursos econômicos para criar bens públicos sólidos. A história mostra que, na ausência dessas forças progressistas, o crescimento muitas vezes foi contra o progresso social, não a seu favor”.
O artigo é publicado por El Diario, 26-11-2019. A tradução é do Cepat.
Nos últimos anos, proeminentes gurus como Steven Pinker, Jordan Peterson e Bill Gates invocaram os avanços na expectativa de vida no mundo para defender o capitalismo contra uma crescente onda de críticos.
É verdade, há muito o que comemorar neste âmbito. Afinal, a expectativa de vida aumentou consideravelmente. “Quando leem um texto que defende o capitalismo, os intelectuais tendem a cuspir”, escreve Pinker em seu livro recente, Enlightenment Now. No entanto, afirma, é “óbvio” que “o PIB per capita está correlacionado à longevidade, saúde e nutrição”.
Este argumento é familiar para mim. De acordo com essa narrativa predominante, o capitalismo foi uma força progressista que pôs fim à servidão e desencadeou uma considerável melhora no nível de vida. Na realidade, isso nada mais é do que um conto de fadas que não se sustenta com dados objetivos.
O feudalismo e a servidão que gerava eram um sistema brutal que causou extraordinária miséria humana, sim. No entanto, não foi o capitalismo que acabou com essa situação. Como demonstra a historiadora Silvia Federici, uma série de rebeliões camponesas bem-sucedidas em toda a Europa, nos séculos XIV e XV, derrubou os senhores feudais e deu aos camponeses mais controle sobre suas próprias terras e recursos. Os frutos desta revolução foram surpreendentes em termos de bem-estar. Os salários dobraram e a nutrição melhorou. Se olharmos para os parâmetros da época, naquele período o progresso social foi espetacular.
Então, veio a reação a essas mudanças. Indignada pelo crescente poder dos camponeses e trabalhadores, e pelo aumento dos salários, uma nova classe capitalista organizou uma contrarrevolução. Começaram a cercar os bens comuns e a expulsar os camponeses da terra, com a clara intenção de reduzir o custo dos salários. Com as economias de subsistência destruídas, as pessoas não tiveram outra opção a não ser trabalhar por pouco dinheiro para, simplesmente, sobreviver. Segundo os especialistas em economia de Oxford, Phelps Brown e Sheila Hopkins, do final do século XV ao XVII, os salários diminuíram até 70%. A fome se tornou cada vez mais normal e a nutrição se deteriorou. Na Inglaterra, a expectativa média de vida caiu de 43 anos, no século XVI, para 30 anos, no século XVIII.
Em resumo, a ascensão do capitalismo gerou um prolongado período de empobrecimento. Foi um dos momentos mais sangrentos e tumultuados da história da humanidade. No entanto, Pinker faz de conta que nada disso aconteceu. Ao contrário, esquiva-se desse fato e vai diretamente para o período industrial moderno. Foi o capitalismo industrial, afirma, que realmente impulsionou o aumento da expectativa de vida.
A verdade é que os historiadores oferecem uma versão mais complexa da história. Simon Szreter, um dos principais especialistas mundiais em dados históricos de saúde pública, mostra que o crescimento industrial, ao longo do século XIX, não levou a uma melhora na expectativa de vida, mas a uma notável deterioração. “Em quase todos os casos históricos, o primeiro e mais direto efeito do rápido crescimento econômico foi um impacto negativo na saúde da população”, escreve Szreter.
“A evidência desse trauma”, continua, “permanece claramente visível na forma de uma descontinuidade negativa de uma geração nas tendências históricas de expectativa de vida, mortalidade infantil e avanços na estatura”. Com base em uma ampla gama de estudos, Szreter mostra que as populações diretamente afetadas pelo crescimento industrial na Grã-Bretanha experimentaram um declínio constante na expectativa de vida, entre os anos 1780 e 1870, até níveis nunca vistos desde a Peste Negra, no século XIV.
De fato, foi justamente nos lugares onde o capitalismo estava mais desenvolvido que este retrocesso é mais pronunciado. Em Manchester e Liverpool, os dois gigantes da industrialização, a expectativa de vida diminuiu em comparação com as regiões não industrializadas do país. Em Manchester, caiu para apenas 25,3 anos. Em contraste, na zona rural de Surrey, a expectativa de vida da população era de 20 anos a mais.
O padrão não se repete apenas na Grã-Bretanha. Segundo Szreter, o mesmo aconteceu em “cada um dos países que se investigou”, incluindo Alemanha, Austrália e Japão. Em colônias como Irlanda, Índia e Congo, houve uma deterioração semelhante nesse mesmo período, já que foram amarradas à força ao sistema industrial europeu.
É difícil mensurar o sofrimento que esses números acarretam. Contam a história de populações inteiras que foram desapropriadas pela classe capitalista e reduzidas à servidão nas fábricas e instalações da revolução industrial. E, no entanto, nada disso aparece na narrativa suave de Pinker.
A expectativa de vida urbana não começou a aumentar, ao menos na Europa, até os anos 1880. Mas, o que impulsionou esse repentino progresso? Szreter descobre que foi devido a uma simples intervenção: o saneamento. Especialistas que defendem políticas de saúde pública descobriram que se fossem separadas as águas residuais da água potável, a saúde da população melhoraria. No entanto, a classe capitalista se opôs a essa melhora, não a permitia. Proprietários de terras liberais e os donos de fábricas se negavam a permitir que os funcionários construíssem sistemas de saneamento em suas propriedades e se negavam a pagar os impostos necessários para realizar o trabalho.
Só foi possível enfrentar sua recusa quando os plebeus obtiveram o direito ao voto e os trabalhadores se organizaram em sindicatos. Nas as décadas seguintes, esses movimentos fizeram com que Estado intervisse contra os proprietários de terras e proprietários de fábricas, para oferecer não apenas sistemas de saneamento, mas também assistência médica universal, educação e moradia pública. Segundo Szreter, o acesso a esses bens públicos estimulou o aumento da expectativa de vida, ao longo do século XX.
Pinker não menciona esse movimento. Seu argumento se baseia, ao contrário, em um gráfico de dispersão conhecido como curva de Preston, que mostra que países com um PIB per capita mais alto tendem a ter uma maior expectativa de vida. Não hesita em afirmar que se dá uma causalidade em situações que carecem de provas que o confirmem. De fato, uma nova pesquisa aponta que o fator causal por trás da curva de Preston não é o PIB, mas a educação.
Sem dúvida, uma rede de benefícios sociais precisa de recursos. E é importante reconhecer que o crescimento pode ajudar nesse fim. Mas, as intervenções que importam quando se trata de expectativa de vida não exigem altos níveis de PIB per capita. A União Europeia tem uma expectativa de vida mais alta que os Estados Unidos, com 40% menos de ingressos. Costa Rica e Cuba superam os Estados Unidos com apenas uma fração de sua renda, e ambos alcançaram seus maiores avanços em expectativa de vida em períodos em que o PIB não estava crescendo. Como? Por meio do desenvolvimento da atenção sanitária e a educação universais.
“Os dados históricos mostram que o crescimento econômico em si não tem implicações positivas diretas e necessárias para a saúde da população”, escreve Szreter. “O máximo que se pode dizer é que cria o potencial, a longo prazo, para melhorar a saúde da população”.
O fato de que esse potencial se materialize depende das forças políticas que determinam como a renda é distribuída. Portanto, a César o que é de César: o progresso na expectativa de vida foi impulsionado por movimentos políticos progressistas que aproveitaram os recursos econômicos para criar bens públicos sólidos. A história mostra que, na ausência dessas forças progressistas, o crescimento muitas vezes foi contra o progresso social, não a seu favor.
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Não vivemos mais e melhor graças ao capitalismo. Artigo de Jason Hickel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU