Na semana passada, o Pe. Hans Zollner, jesuíta alemão membro da Comissão para a Tutela dos Menores, do Vaticano, mostrou-se impaciente em uma sessão de perguntas e respostas quando um padre lhe perguntou por que ele, Zollner, não estava focalizando o seu trabalho na homossexualidade como sendo a causa real dos abusos sexuais clericais.
A ocasião aconteceu depois de o religioso ter proferido uma palestra em um congresso, ocorrido entre os dias 6 e 8 de novembro, sobre a prevenção de abuso sexual na América Latina organizado pelo centro interdisciplinar para a proteção infantil da Pontifícia Universidade do México, o Ceprome.
Em entrevista após o evento, Zollner explicou que se sentia um pouco triste, mas mesmo assim reafirmou o que disse em resposta à pergunta anteriormente a ele feita: “Têm coisas que podemos repetir e repetir, e mesmo assim as pessoas não entendem. Como disse na resposta que dei ao padre, é o mesmo de quando as pessoas repetem que é o celibato o que causa os abusos”.
“Podemos citar relatórios científicos ou governamentais que afirmem que essa não é a causa, mas mesmo assim as pessoas ainda vão continuar pensando que é”, disse Zollner.
Alguns continuam na insistência de que a causa originária dos abusos sexuais clericais é ou o celibato ou a homossexualidade, mas tendo visto as provas o jesuíta – que também coordena o Centro para a Proteção das Crianças, da Universidade Gregoriana de Roma – crê que estas duas ideias demonstram que “as pessoas pedem respostas simples a problemas muito complexos, e tendem a uma certa ideia simplesmente porque ela parece explicar muito facilmente onde reside o problema e como podemos nos livrar dele”.
Em conversa com o Crux depois de sua palestra, Zollner explicou que um problema que a maioria das pessoas nos países ocidentais têm, sobretudo nos EUA, é que elas põem muita fé nas leis e na capacidade delas de consertar as coisas do dia para a noite, quando a realidade mostra, repetidas vezes, que só porque uma lei foi escrita e promulgada, ela não altera o comportamento das pessoas. É preciso também educar e mudar a cultura.
Elas esperam que “ao delimitar o problema e criar instruções claras em um nível mais ou menos jurídico, nos livramos do problema, o que não corresponde à realidade, com certeza não em relação aos abusos, pois nós temos leis na Igreja. Temos os mandamentos”.
No entanto, simplesmente dizer “só precisamos seguir o ensino da Igreja” não basta. Se bastasse, não seria preciso se perguntar: “Por que as pessoas e os padres não o praticam?”
A entrevista é de Shannon Levitt e Ines San Martin, publicada por Crux, 13-11-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Antes de mais nada, o que achou do evento?
Achei fantástico ver quase 500 pessoas aqui, vindas de quase todos os países da América Latina.
Vimos todos os tipos de pessoa: arcebispos, bispos, provinciais, reitores de seminários, pessoas responsáveis pela salvaguarda, psicólogos, professores – pessoas altamente qualificadas. Com certeza, a América Latina tem, em comparação com outras regiões do mundo, recursos humanos e pessoas competentes. E o que é realmente fantástico é ver que estes que vieram aqui manifestaram claramente que têm um grande interesse no assunto, que querem fazer o que for possível em suas áreas de atuação para uma Igreja mais segura, e que querem aprender.
Existe também, creio eu, a sensação de que “precisamos estar conectados”. O que é obviamente mais fácil em um continente que fala praticamente uma língua, com a enorme exceção do Brasil, mas mesmo do Brasil tivemos participantes aqui. Portanto, isso facilita as coisas.
Pela primeira vez desde que o conheço, o senhor perdeu a paciência, o que aconteceu quando um padre perguntou sobre a homossexualidade como sendo a causa real dos abusos. Tenho certeza de que não foi a primeira vez que o senhor ouviu isso. Como lida com essa questão, sendo perguntado repetidas vezes sobre o assunto apesar das provas em contrário?
Antes de mais nada, estou adoecido. Então, não estou no melhor das minhas faculdades...
Têm coisas que podemos repetir e repetir, e mesmo assim as pessoas não entendem. Como disse na resposta que dei ao padre, é o mesmo de quando as pessoas repetem que é o celibato o que causa os abusos. Podemos citar relatórios científicos ou governamentais que afirmem que essa não é a causa, mas mesmo assim as pessoas ainda vão continuar pensando que é, e jornalistas ainda fazem a mesma pergunta sempre de novo [sobre o celibato como sendo a causa dos abusos]. E, sim, existe uma certa parcela pequena, porém bastante feroz, dos que acham que a homossexualidade provoca o comportamento abusivo, o que, se pensarmos um pouquinho, não faz o menor sentido, mas as pessoas não percebem.
A questão mais profunda – e aí o lugar para onde eu deveria ter levado a minha resposta dada ao padre – é que as pessoas pedem respostas simples a problemas muito complexos, e tendem a uma certa ideia simplesmente porque ela parece explicar muito facilmente onde reside o problema e como podemos nos livrar dele.
Os seres humanos são seres muito, muito complexos, e se os colocamos em uma sociedade, em uma igreja, comunidade, combinando as suas dinâmicas pessoais com todo o tipo de relacionamento, então as coisas ficam ainda mais complexas.
É apenas a imprensa ocidental que acha que o problema é o celibato?
Para dizer a verdade, é quase somente a imprensa ocidental quem se interessa pelo assunto. Quero dizer que essa questão não é uma prioridade constante da imprensa em outras partes do mundo.
Interesse na questão do celibato ou na proteção das crianças?
Quero dizer que toda essa crise dos abusos sexuais não é, na verdade, uma questão importante entre o público da África, da Ásia ou da Oceania. Quero dizer que é nas Américas e na Europa onde a imprensa tem um interesse contínuo... Vimos isso no encontro dos líderes eclesiásticos sobre a proteção infantil ocorrido em fevereiro. Quantos jornalistas africanos estavam nas coletivas de imprensa? Nenhum. Quantos asiáticos? Três ou 4. E o restante eram todos dos EUA e da Europa central, alguns da América Latina e do sul da Europa.
Então a América Latina está basicamente no mesmo patamar que o resto dos países ocidentais?
Pelos menos alguns países: Chile, México, um pouco menos no Peru, na Argentina e na Colômbia.
Quanto a pôr a culpa dos abusos no celibato ou na homossexualidade… Em parte é uma forma de negação? Simplesmente se livrar do problema e ele estaria resolvido?
Em primeiro lugar, a ideia é mais ou menos a seguinte: “Vamos encontrar uma solução fácil e uma estratégia clara”. Daí, identificamos os homossexuais ou os celibatários como o núcleo do problema, e nos livramos deles. Então o problema acaba. É um pensamento desejante, um “wishful thinking”, uma ilusão.
Em segundo lugar, trata-se de algo, creio eu, verdadeiro em alguns países ocidentais, isto é, acreditamos que, ao delimitar o problema e criar instruções claras em um nível mais ou menos jurídico, nos livramos do problema, o que não corresponde à realidade, com certeza não em relação aos abusos, pois nós temos leis na Igreja. Temos os mandamentos. Temos o Evangelho. Então, basta repeti-los e fazê-los. Por que precisamos de mais formação? Só precisamos crer nos mandamentos, só precisamos seguir o magistério católico e, então, tudo se resolve.
Entretanto, as pessoas – também os padres – simplesmente não entendem. Elas cometem pecados e crimes. Portanto, eu diria especialmente aos que acreditam no poder diretamente efetivo da lei: existe a crença de que, ao aprimorar sempre mais a lei, alcançamos os detalhes do problema e, ulteriormente, nos livramos dele. Mas não é esse o caso.
Na verdade, temos as leis para lidar com o abuso e o seu acobertamento que são necessárias na Igreja. Estas coisas também se fizeram necessárias décadas atrás. Temos os mandamentos. Como pode que os padres simplesmente não façam aquilo que o Evangelho pede que façamos: proteger os pequeninos? Então, a pergunta é: por que precisamos de um outro tipo de teologia?
A pergunta em teologia é, por exemplo, como compreender o sacerdócio no mundo de hoje e se uma tal compreensão renovada pode ajudar os padres e outros a viver melhor a mensagem evangélica. Este sempre foi o desafio da teologia, por quase 2000 anos.
O senhor já pensou como seria essa nova compreensão do sacerdócio?
A teologia precisaria repensar, por exemplo, a questão de quando se ordena um padre: para o que ele é ordenado? Como podemos compreender o sacerdócio diante da sociedade e de suas inquietudes atuais?
A Igreja tem se desenvolvido nos últimos 200 anos, e o sacerdócio, em quase todas as partes do mundo, mudou de configuração. Em muitas regiões, o espaço sagrado ou a áurea em torno dos padres se foi por causa da secularização e de outros desdobramentos e, claro, através do questionamento da autoridade – incluindo a autoridade espiritual e religiosa –, valendo para todo o tipo de autoridade.
O que temos falando tem a ver com uma volta às origens, isto é, tem a ver com a forma como os padres podem ser testemunhas de Jesus Cristo entre o povo, com quem compartilham o contexto e a cultura, tem a ver com a forma como podem acompanhar as pessoas para que elas possam descobrir a presença de Deus, a graça de Deus e o poder redentor de Deus nas circunstâncias nas quais vivem. Eu diria que nos últimos 200 anos a Igreja vem se esforçando na relação entre a Igreja e a fé e o “mundo”, e isso porque, depois do iluminismo, da Revolução Francesa, da secularização na Europa, ela passou a uma contraposição.
A Igreja lutou contra estes desdobramentos, incluindo a fundação dos Estados nacionais europeus que acontecia no século XIX e na América Latina. Essas fundações foram vistas como uma ameaça à Igreja. Portanto, como entender o ser cristão neste mundo? A resposta tem consequências e fundamentos teológicos.
Como entender o que se passa em nossa sociedade quando olhamos para ela com os olhos da fé: economia, política, as questões ambientais, os direitos humanos, os refugiados... tudo. Como podemos encontrar uma maneira, hoje, de ser cristão “no” mundo, mas não “do” mundo? Penso que estamos, de fato, há 200 anos lutando com a definição de onde nos encontramos e o que podemos dizer, o que não devemos dizer, onde precisamos nos pronunciar, e onde simplesmente precisamos aprender com os outros.
A ciência é um outro exemplo. A Igreja combateu a teoria da evolução, a psicanálise – e outras – nos últimos 150 anos. Não há uma forma de simplesmente reprimir ou negar algo que a razão humana pode descobrir. Podemos apreciar a criação divina como ela é, conforme diz a Carta aos Romanos. Sim, precisamos diferenciar e ajudar as pessoas a encontrar o próprio caminho em um mundo bastante confuso, e é aí onde vejo a Igreja e o sacerdote como um representante deste buscar e encontrar Deus em todas as coisas, como diria Santo Inácio.
O padre como um desbravador de quem ele é nesta jornada. Mas para isso se realizar de novo, ele necessita deixar de lado os cargos e privilégios que se ergueram ao longo dos séculos, e aqui chegamos às questões teológicas, canônicas e práticas. Por exemplo, o líder paroquial é necessariamente um padre e isso está ligado a todos os tipos de poder: financeiro, organizativo, e outros? Não, não está.
O Cardeal Oswald Gracias disse em um sínodo recente, e em algumas partes do mundo já está até aprovado, que, por exemplo, as mulheres são as líderes na organização de uma comunidade paroquial. Desde então o padre está livre para aquela que é a sua principal vocação, que é a de ser testemunha de Jesus Cristo no que faz, na forma como se põe no mundo e em sua disponibilidade ao povo.
Na maior parte do mundo onde há um número cada vez menor de paróquias e com um aumento das responsabilidades dos padres, estes dificilmente conseguem se encontrar com os fiéis, um a um, nos encontros pastorais ou nas tarefas do dia a dia. Em algumas regiões eles não têm contato com a vida normal das pessoas reais. O comportamento e a pregação deles se distanciam da realidade.
A forma como expressamos o nosso pensamento religioso e a nossa teologia com respeito à realidade expõe uma falta de entendimento de onde as pessoas se encontram em suas vidas e de suas questões a respeito do bem-viver. Não mais falamos a linguagem delas. Falamos uma linguagem que as pessoas muitas vezes simplesmente não entendem. A linguagem se tornou insular, isolada. Empregamos palavras que as pessoas não usam ou compreendem. Portanto, temos o desafio de encontrar uma outra forma de comunicar aquilo que compõe a nossa fé.
Fazer teologia católica sempre significou – desde os Padres da Igreja através de Tomás de Aquino até os nossos dias – tentar explicar o essencial da fé dentro dos limites necessários da nossa atual compreensão e relacioná-la com o contexto para que as pessoas possam encontrar motivos para acreditar no Deus de Jesus Cristo.