25 Outubro 2019
O grande vício intelectual da economia moderna é criar a ilusão de que as transações são reais, enquanto todas as outras coisas (incluindo a própria realidade) o são somente em um nível inferior.
O comentário é de David James, publicado por Settimana News, 24-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
O dinheiro deveria estar a serviço e não ser o legislador de nossas vidas. Essencialmente, trata-se de um instrumento - e isso é tudo.
Reconhecer que os sistemas econômicos são criações humanas e não sistemas naturais governados pelo "fluxo do capital" (juntamente com todas as outras metáforas náuticas de baixo nível adoradas pelos economistas) seria um passo importante para a configuração de um sistema mais equilibrado e igualitário.
Perguntar que tipo de sociedade queremos e, só depois determinar o que queremos que o dinheiro faça por nós, significa finalmente recolocar o boi na frente da carroça.
Inclusive as críticas ao sistema capitalista caem no erro de considerar as transações econômicas como a realidade primária. Geralmente, afirma-se que o sistema capitalista não é sustentável porque se baseia na suposição de um crescimento infinito (e com isso entende-se um consumo sem fim) em um mundo onde os recursos são finitos, limitados.
Essa abordagem é enganosa. O capitalismo baseia-se, de fato, no crescimento das transações, e as transações não são a mesma coisa que o consumo. As atividades financeiras, por exemplo, são transações que consomem bem poucos recursos: geralmente, são apenas alguns bits de informações digitais. Pagar por fisioterapia é uma transação, para a qual não é necessário o consumo de praticamente nenhum recurso.
Por causa do aumento da eficiência na indústria primária e nas empresas secundárias, nas economias desenvolvidas é possível registrar uma deslocamento para os serviços e as chamadas "empresas do conhecimento" (que não opera devido a uma falta, pois o saber pode ser vendido ou compartilhado, mesmo sem ser perdido por quem o possui).
Isso levou à desmaterialização, sugerindo que, se houver um consumo excessivo dos recursos, isso acontece porque criamos sistemas baseados na criação de descartes. Essa condição pode ser reconfigurada tendo a disposição um sistema no qual as transações aumentam, enquanto o esgotamento dos recursos limitados diminui.
Outro mito criado pela economia contemporânea é a afirmação de que os mercados têm sempre isso facto razão; e que, se apenas os governos saíssem do caminho, as pessoas se auto organizariam sozinhas em uma espécie de utopia materialista. Como todos os melhores enganos, também essa afirmação tem um núcleo de verdade.
Os mercados se auto organizam, de fato, e parece que eles têm uma espécie de inteligência coletiva que é maior que a soma das partes. Pelo menos no nível local, os mercados são atividades sociais que, na maioria das vezes, produzem um bem geral.
Também é verdade que os governos podem ser insensíveis diante de interesses coletivos ou individuais e que podem produzir ineficiência devido ao excesso de burocracia. Mas qualquer um que tenha trabalhado em uma fábrica ou empresa privada sabe muito bem que essa não é uma prerrogativa exclusiva do setor público.
Assim que as alegações inerentes aos benefícios sem tempo e irrefutáveis do "livre mercado" são examinadas criticamente, seu jogo de prestígio intelectual se torna suficientemente claro. O capitalismo moderno (o que quer que seja, de fato) existe, no máximo, há dois séculos.
Da mesma forma, a clara dicotomia “mercados vs. governos" é fraca ou falaciosa. É verdade que parte do comportamento do mercado se auto-organiza, mas, para poder funcionar os mercados precisam também de uma série de normas externas - e essa é a função do governo público.
No caso dos mercados financeiros, que consistem apenas de normas, isso se torna ainda mais claro. As instituições públicas fornecem a base essencial de uma estrutura regulatória, mesmo que (como aconteceu no curso das coisas que levaram à crise financeira global) a bancos e traders privados, que nos enganaram usando o truque da "desregulamentação financeira", foi concedido inventar suas próprias e exclusivas normas sobre o dinheiro.
O fato de os governos e as instituições públicas terem sido consequentemente responsabilizados pela crise financeira global, apenas demonstra o quanto somos todos sugados pelo redemoinho capitalista.
Outro mito é que o capitalismo se baseia nos mercados livres. O capitalismo globalizado, que talvez seria melhor indicar como "corporatism", é algo bem distinto daquela liberdade que Adam Smith havia vislumbrado. Na realidade, estamos lidando com oligopólios que controlam os mercados através de uma miríade de técnicas de manipulação ultrarrápidas - muitas das quais são extra-legais (ou seja, ultrapassam os governos).
Se queremos ter uma ideia do quanto os governos sejam fracos diante do capitalismo globalizado, basta dizer que 8% do capital global está bem protegido em paraísos fiscais offshore.
O golpe chamado "transfer pricing", segundo o qual as empresas transnacionais e globais relatam ganhos em locais onde os lucros não são tributados para não ter que pagar impostos nos países em que foram efetivamente obtidos, é tão comum e de alto volume que o movimento de dinheiro interno de empresas desse tipo supera 2/3 no que diz respeito às transações internacionais de dinheiro.
É assim que as coisas realmente são: grande parte do chamado "comércio" entre nações diferentes é na realidade a manipulação dos balanços internos por parte das grandes corporações.
Fomos enganados por teorias econômicas insensatas ou imprecisas ao acreditar que algo criado por nós, o dinheiro, representa uma realidade primária. Isso tornou cada vez mais árduo perceber a crescente fragilidade dos sistemas econômicos modernos e a exigência de encontrar algo novo e diferente que tome o seu lugar.
Artigo retirado da revista dos jesuíta australianos Eureka Street (original aqui), tradução do inglês por Settimana News.
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Uma via de fuga do redemoinho capitalista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU